sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

AO ANO QUE VEM. OU SAUDADES DE 2010

2009 foi um ano de sombras e retrocessos e será esquecido, um dia, espero. 2010 foi o oposto; um ano de paz, serenidade, iluminação e conquistas abundantes. Deixará muita, muita saudade. A 2011 que chega, uma reflexão repetida para um ano inédito. Mas tem funcionado até hoje:

“Mantenha-se simples, bom, puro, sério, livre de afetação, amigo da justiça, temente aos deuses, gentil, apaixonado, vigoroso em todas as suas atitudes. Lute para viver como a filosofia gostaria que vivesse. Reverencie os deuses e ajude os homens. A vida é curta.”
(Marco Aurélio)

ILUSTRANDO

Van Gogh - Noite sobre o Rhone

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ALICE E O FANTASMA

Quando Alice completou 18 anos, vivia um dos momentos mais complicados e decisivos de sua vida. Sentia-se presa, perdida, sem rumo. Devia escolher uma universidade, mas não tinha a menor ideia do que queria fazer de sua vida. Sonhava em desenvolver uma habilidade com a qual pudesse expressar o turbilhão de ideias que fervilhavam em seu peito, mas julgava-se incapaz de fazer isso. Achava medíocre tudo o que fazia. Suas fotos, poemas breves, desenhos com carvão. Alice se sentava à mesa e às vezes trabalhava por horas para então rasgar tudo em mil pedaços. Gritava em silêncio, olhando-se no espelho, todas as manhãs; os olhos avermelhados pela insônia recorrente, umedecidos por lágrimas que ansiavam por liberdade. Alice sentia-se só, mesmo entre os seus melhores amigos. Queria sair de sua cidade, seu país. Precisava deixar seus pais, precisava encontrar seu caminho.

Numa manhã qualquer, levemente nublada, Alice viu o sol nascer novamente na sua janela. Deitada em sua cama, num amaranhado de lençóis e travesseiros onde lutava desesperadamente para se aninhar, Alice já havia perdido a conta de quantas vezes acompanhou a passagem das horas, as madrugadas perdendo cor, o contorno do dia ganhando as paredes do seu quarto. Sentou-se, com desleixo, na beirada de sua cama e levantou o seu corpo com esforço, os pés descalços sobre o assoalho frio que a fez sentir calafrios. Sentia como se pesasse uma tonelada, ainda que seu peso real não fosse muito mais que 55 quilos.

Não devia ser ainda 6 da manhã e Alice percebeu que a casa dos seus pais ainda estava submersa naquela penumbra que antecede o começo oficial do dia. As portas fechadas, aquela atmosfera de sono que somente os insones conseguem perceber. A sensação de que todos no mundo dormem menos você. Alice sentia o sono dos outros em sua pele.

Caminhou vagarosamente para a cozinha, onde esquentou água numa chaleira para fazer café. Quando começaram os primeiros choros da água borbulhante, Alice correu para fechar a porta e evitar acordar a casa. Praguejou como se sentisse raiva, como se a chaleira fosse uma pessoa que gritava apenas pela vontade de pirraçá-la. E isso a angustiava porque, mais do que tudo no mundo, Alice temia enlouquecer.

O cheiro inebriante de café fresco tomou conta da cozinha, invadindo cada poro do corpo de Alice, acalmando-a como se ela pudesse levitar. Alice sabia dos efeitos medicinais do café em seu corpo e corria para ele como se fosse um antídoto para as suas dores mais secretas. Cada gole daquele líquido negro, fervente, descia a sua garganta como remédio e Alice sentia como se todo o caos do seu mundo ainda tivesse esperança. Como se as paredes ruídas estivessem se reconstruíndo, como mágica.

Com a caneca fumegante em mãos, Alice saiu da cozinha em direção ao grande sofá da sala. Terminaria ali o seu café onde, esperava, também adormeceria por algumas horas. Às vezes dava certo. Parou no meio do trajeto, porém, imobilizada por algo que até então não tinha notado. Havia um homem sentado no sofá, de costas para ela. A caneca se espatifou no chão, café derramado por todos os lados, Alice com as duas mãos sobre a boca ainda que não tivesse a menor intenção de gritar.

Vencido o susto, Alice caminhou a passos de gato, em direção à sala, contornando o sofá com o cuidado de um piloto de corrida, para ver um senhor de idade, bem vestido, de cabelos penteados, bigode aparado, sentado no sofá com os olhos fechados, como se cochilasse. Ele tinha uma daquelas caras, destas que conseguimos nos afeiçoar sem esforço. Parecia vindo de uma máquina do tempo, com suas roupas dos anos 50 e aquela aparência de limpeza, como se tivesse acabado de sair do banho e cheirasse à colônia cara.

Alice não fazia a menor ideia de quem fosse aquele homem mas algo dentro dela, completamente inexplicável, deu a Alice a certeza de que aquele era o seu avô.

Ela não o conhecera muito bem e tinha poucas lembranças dele. O avô de Alice havia morrido pouco antes de ela completar quatro anos e todas as memórias eram um grande emaranhado de imagens estáticas, borradas. Mas Alice poderia jurar que aquele era o seu avô. Ela era meio estranha, sabia, e tinha destas mediunidades. "Gostava de falar até com as árvores", sua mãe sempre dizia nas conversas para ilustrar o jeito diferente que Alice tinha para lidar com os lugares, pessoas e situações. Não havia dúvidas, aquele era o seu avô.

Sem medo algum daquele fantasma que parecia irradiar uma luz tênue na penumbra da sala, Alice aproximou-se com o receio de uma criança curiosa, em direção ao sofá. Sentou-se ao lado do homem, que abriu os olhos e sorriu para ela um sorriso que ela jamais havia conhecido. Um sorriso de bondade incandescente. Ele segurou em sua mão e os dois ficaram ali, trocando olhares, naquele parlamento silencioso e eloquente como se estivessem navegando pelas vidas e histórias um do outro, sem a necessidade de palavras banais.

Sem a menor cerimônia, Alice se aninhou no sofá, deitando a cabeça sobre o colo do seu avô que pouco depois começou a fazer carinhos delicados em sua cabeça. Movimentos circulares aleatórios em sua testa e cabelos. Alice fechou os olhos, como se estivesse submersa numa névoa que parecia tomar o seu corpo inteiro numa onda inédita de relaxamento.

Alice abriu os olhos. Sua mãe tocava seu ombro, levemente. "Porque dormiu no sofá, minha filha?".

Sentou-se, ainda inebriada, como se tivesse dormido por 100 anos. Olhou para os lados, mas encontrou a sala de sempre, apenas sua mãe estava lá, observando-a com olhos carinhosos. Inventou qualquer desculpa para a caneca quebrada, mas sua mãe parecia pouco se importar com aquele incidente. E sentiu aquela desolação de quem acorda de um sonho bom, percebendo a ingrata surpresa da realidade. Queria voltar a sonhar e encontrar o seu avô.

Abraçou sua mãe por um longo tempo. Pediu desculpas. Sentia-se à deriva. E voltou para o seu quarto, caminhando com a pressa de um turista, para mais um festival de repetições que seria o seu dia. Havia acordado, não havia mais nada a se fazer.

Mas eis que encontrou, sobre o seu travesseiro, um postal muito antigo, que quase se desfazia em suas mãos. Na foto, todo o esplendor do Coliseu, em Roma. Era um cartão-postal que o seu avô havia enviado, muitos anos atrás, para o seu pai. O fundo, amarelado, revelava uma caligrafia bonita, destas que não se vê mais hoje em dia, com um relato breve de dias ensolarados numa cidade incrível que transpirava história. A tinta, gasta, fazia com que as palavras quase desaparecessem.

A última linha, porém, estava escrita num azul vivo, recente, naquela mesma linda caligrafia de antigamente. Alice correu os dedos sobre as palavras, borrando-as levemente.

E sorriu, com os olhos umedecidos e o coração tomado por toda a serenidade de que precisava.

"Tudo vai dar certo, meu bem".

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

AS CRIANÇAS ESTÃO BEM

Como é difícil falar deste filme tão fácil de se encantar. Só consigo imaginar reflexões belas a respeito deste filme tão especial que por pouco não ignorei. "The kids are all right" (Minhas mães e meu pai) é uma das melhores surpresas-indie que vi nos últimos tempos. Poderia ser um irmão de alma de "Sideways", filme com uma energia muito semelhante e que me irradiou de forma muito parecida ao final. Há muito e muito pouco a se dizer sobre "The kids are all right", mas posso resumir muito bem ao dizer sem equívoco que este é um filme absolutamente imperdível.

A história, belamente dirigida por Lisa Chlolodenko, narra a vida nada convencional de uma moderna família americana. Nic (Annete Bening) e Jules (Julianne Moore) são casadas e resolveram ter dois filhos via inseminação artificial - e a partir do mesmo doador. Desta empreitada, nasceram Joni (filha de Nic) e Lazer (filho de Jules). Quando Joni faz 18 anos decide procurar o doador e assim conhecem Paul (Mark Ruffalo), um neo-hippie boa praça que deu certo na vida. Ele é dono de um restaurante da moda, vive de maneira ecologicamente correta e chega como um furacão na vida de Nic e Jules, mudando tudo de maneira aparentemente irreversível. 

No começo tudo vai muito bem e, de uma forma ou de outra, todos se enamoram com a construção desta família improvável. Mas rapidamente esta frágil estrutura se desfaz - de maneira quase previsível - numa trama de choros e risos que dá uma alma singular e muito honesta ao filme. Todos se relacionam de formas distintas com Paul e isso eventualmente cria uma série de conflitos que faz com que a anteriormente "perfeita" família de Nic e Jules pareça estar ruindo também.

Eis aqui um filme despretensioso e completamente adorável. O elenco brilha do começo ao fim com atuações muito verdadeiras que iluminam a história de quase duas horas. Uma comédia com toques de drama, um drama com toques de comédia. Mas não faz sentido buscar um gênero aqui, porque há espaço para tudo.

"The kids are all right" é um filme humano, sincero, engraçado, comovente, tocante, apaixonante sobre a vida possível. A vida que cada um pode realizar, cada um ao seu jeito. Sem expectativas, sem padrões, preconceitos ou ideais de perfeição. 

As crianças estão bem, sim.

Todos estão bem.

OS GATOS TÊM O PODER DE CONQUISTAR O MUNDO...

...mas isso dá uma preguiça...

AMOR PLATÔNICO

Sara Thomas, de Serendipity. Paixão à primeira vista, ao som de "I don´t want to wait in vain", de Annie Lennox. Sara, contemplativa, cruzando a baía de São Francisco. Ela vai se casar com um rockstar; vida de sonhos, viagens pelo mundo. Mas algo dentro dela, muito secreto, a impede de esquecer um estranho que conheceu comprando luvas na véspera de Natal. Conversas sem compromisso, patinação no gelo numa noite mágica, um café inesquecível, um par de luvas separadas. Quase anônimos, nunca esquecidos. Sara é o tipo de mulher que vira a nossa vida de ponta cabeça sem esforço. Ela acredita nas estrelas, nos sinais, nos astros, no destino. Nada é por acaso, não há coincidências. Há uma linha que une ou separa as pessoas e essa é sua religião. Apaixonante sob todos os pontos de vista. Linda sem intenção, engraçada, destemida. Sara invade uma cerimônia de casamento que nunca aconteceu. Lágrimas no olhos. Ela sempre esteve certa. Feliz casualidade, uma nota de cinco dólares e Amor nos tempos do cólera. Neve e calor. Mulher e criança. Sei exatamente o que Jonathan estava pensando. Não dá para tirar Sara da cabeça.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

PARA VER E OUVIR: PHOENIX ("LOVE LIKE SUNSET - PART 2")


Ainda tentando transpirar a embriaguez de "Somewhere". Mas sei que essa é uma catarse sem prazo de validade.

2010 - FILMES QUE FICARAM

Indiscutivelmente, o ano de 2010 foi um celeiro de filmes inesquecíveis. Foram muitos os filmes impactantes, relevantes, comoventes, engraçados, indispensáveis que assisti desde janeiro. Faço aqui uma singela retrospectiva daqueles que vi esse ano (tenham estreado em 2010 ou não) e me tocaram de alguma maneira. Filmes que ficam. Filmes que ficaram.
Direito de Amar (A Single Man)

A Fita Branca (Das Weisse Band)

O Golpista do Ano (I love you Phillip Morris)

A Origem (Inception)


O Pequeno Nicolau (Le Petit Nicolas)

Onde vivem os monstros (Where the wild things are)

O segredo dos seus olhos (El secreto de sus ojos)

O fantástico Sr. Raposo (Fantastic Mr. Fox)

A Estrada (The Road)

Tudo pode dar certo (Whatever works)
Zumbilândia (Zombieland)

Um lugar qualquer (Somewhere)

Minhas mães e meu pai (The kids are all right)

domingo, 26 de dezembro de 2010

SOFIA CONSEGUIU NOVAMENTE

Johnny Marco tem uma ferrari que ele gosta de rodar em círculos, como um carrinho de controle remoto. Johnny tem mulheres lindas ao seu redor, que se despem e dançam para o seu entretenimento. Johnny Marco tem o mundo aos seus pés, as luzes dos holofotes, a curiosidade da imprensa e milhões de dólares de sua carreira de ator bem sucedido de Hollywood. Como um príncipe, vive acastelado no clássico hotel Chateau Marmont, em Los Angeles, onde atravessa seus dias que correm de forma circular, como repetições, a base de whisky, remédios e falsas companhias. Johnny Marco tem tudo. E, ao mesmo tempo, não tem nada. O que Sofia Coppola quer nos dizer com esse seu novo filme? Onde ela quer chegar? Melancólico e agridoce, "Somewhere" (Um lugar qualquer) não é trágico como "As Virgens Suicidas", frenético como "Maria Antonieta", tampouco, comovente como "Encontros em Desencontros" mas, como tudo na obra de Coppola, carrega a sua marca registrada: a crônica minimalista e silenciosa de protagonistas solitários em busca do entendimento de suas próprias vidas.

Stephen Dorff vive Johnny, um ator beirando os 40 anos de idade, que se vê preso num universo solitário, vazio e sem rumo. Pobre menino rico, sem conseguir se envolver verdadeiramente com ninguém, Johnny caminha como um morto-vivo, entorpecido por remédios, álcool e pura melancolia. Falta de destino. Sem um lugar para ir. Mora num hotel, onde é um ilustre hóspede bajulado constantemente por homens e mulheres em busca de se aproveitar de sua fama e riqueza. Os seus dias são inexpressivos, superficiais, e ele parece correr as ruas de Los Angeles anestesiado. 

Tudo isso muda quando sua filha, Cleo (Elle Fanning), vem morar com ele. Sua ex-mulher vai viajar e deixa a filha sob seus cuidados. A chegada de Cleo é, justamente, um ponto de mutação e iluminação. O filme ganha novos contornos, ganha música, e descobrimos que, na companhia de sua filha, Johnny Marco encontra a melhor pessoa que poderia ter ao seu lado. Algo reconhecido num momento comovente do filme em que percebemos a breve - e fundamental - mudança que a menina de 11 anos fez na vida de seu pai que, aparentemente, já havia dado tudo por perdido. "Me desculpe por não estar por perto", ele confessa, abafado pelo barulho das hélices de um helicóptero.

A convivência com Cleo promove uma revolução silenciosa na vida de Johnny que, num momento final de catarse, se questiona seu papel no mundo e decide, enfim, sair de sua mimada letargia e fazer algo a respeito de sua vida. Ele se descobre feliz, completo, na companhia de sua filha. E a repentina saída dela escancara o vazio completo que ele somente parecia suspeitar. Enquanto Cleo estava por perto, Johnny redescobriu o sorriso, a paz de espírito; não bebeu, não se drogou. A solidão expõe as suas feridas abertas, que parecem pulsar enquanto ele resolve ligar, justamente, para a sua ex-mulher. "Eu não sou sequer uma pessoa", ele confessa.

Mas também a falta de sua filha ilumina Johnny com algumas certezas  tímidas. Ele percebe que ainda que não saiba qual seja o seu lugar, pelo menos não é mais trancafiado nas paredes daquele hotel impessoal. Johnny decide que é hora de rumar a algum lugar seu. "Somewhere".

A visita inesperada de sua filha, Cleo, transforma o mundo de Johnny Marco por completo. Mas onde Sofia Coppola quer chegar com "Somewhere"? 

Definitivamente, "Somewhere", ainda que irmão de alma de "Lost in Translation", não é tão imprescindível quanto o filme que deu à Sofia o Oscar de melhor roteiro original. "Somewhere" mostra uma nova cor, um novo traço de Sofia. Um lado mais maduro, sem dúvidas, mais árido, melancólico, certamente mais europeu que americano. Ela não abusa, jamais, de suas cenas, mantendo quase todo o filme em planos estáticos, com diálogos breves que dão lugar a metáforas e pouco uso de trilha sonora (algo que me causou certo estranhamento, já que é tradição em seus filmes a utilização de músicas emblemáticas para a construção de cenas e sequências).

O elenco, como sempre, é bem escolhido e Dorff e Fanning brilham juntos em grande sintonia, como se fossem realmente pai e filha ligados (e separados) pela falta de convivência. A ausência de Lance Accord (diretor de fotografia dos seus últimos 3 filmes) também não me passou despercebida. Senti falta, sem dúvidas, da iluminação poética e profunda de Accord que sempre enriqueceu os filmes de Sofia. 

Em hipótese alguma me permito sequer cogitar que "Somewhere" seja um filme ruim. Primeiro, pelo capricho mimado de fã. Segundo, porque fica evidente que o filme não é tão acessível quanto os últimos.  "Somewhere" é um filme que pede um pouco mais de paladar, um pouco mais de atenção, para que ele germine em nossas mentes. "Somewhere" não é um filme para ser visto. É um filme para ser REvisto.
"Um lugar qualquer", um filme sobre parenthood. Apenas isso. Ou tudo isso.

A grande discussão proposta por Sofia Coppola é a paternidade/maternidade, sem dúvidas, e também esse tema transita pela alienação e o limbo que Sofia sempre propõe em seus filmes. Pais "perdidos", filhos "perdidos". Não necessariamente. E aí entra Elle Fanning que brilha, como uma estrela doce e incandescente na tela. O nosso desejo imediato é de correr para ali, adotá-la, provê-la com carinho, atenção e curiosidade para suas histórias e atividades. Numa cena de profunda comoção vemos esta menina absolutamente rara, especial e encantadora engolindo um choro tão sentido porque sua mãe não disse quando voltaria e seu pai viaja o tempo inteiro. Um choro angustiado, de solidão antecipada. É uma das cenas mais comoventes do filme e que, como o próprio filme, pode ser partida em muitas camadas de reflexão. "Pais sejam bons para as suas filhas", poderia dizer John Mayer com a sua emblemática canção "Daughters"; "mães sejam boas para as suas filhas também". É a mais pura verdade.

Johnny descobre que precisa encontrar um lugar seu. Um destino. Um lugar qualquer.

"Somewhere", filme sobre o qual nutri tantas expectativas, surge, para mim, como um filme que mostra um pouco mais de Sofia Coppola como diretora, mulher e mãe. Seu filme, centrado na reflexão da responsabilidade de pais sobre os seus filhos, talvez seja um ato muito pessoal de Sofia sobre a sua própria maternidade recente. 

Este não é um filme sobre garotas adolescentes, sobre paixões inesperadas numa cidade improvável ou delírios de uma rainha infantil. É um exercício de arte sobre quem somos nós, primeiramente diante de nossas vidas, e, naturalmente, diante das vidas daqueles que trazemos ao mundo. O compromisso. A ideia de que esse é um contrato para sempre, imutável, sem espaço para negociação. E, possivelmente, o melhor contrato já concebido. "Os filhos são as melhores pessoas que você conhecerá", diz Bob à Charlotte, em "Lost in Translation". E, justamente sob esse prisma, "Somewhere" é um triunfo. E assim sorrio, diante dos créditos finais, com a certeza inquestionável de que Sofia conseguiu novamente.

domingo, 19 de dezembro de 2010

PARA VER E OUVIR: BROOKE FRASER ("DECIPHERING ME")


Um pouco de Lost in Translation e um pouco daquilo que me encanta em Sara Bareilles. Incrível descoberta. Passarei a ficar de olho nesta mocinha.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O AVISO QUE NINGUÉM QUIS ESCUTAR

De dentro de uma prisão, ainda nos anos 1920, Adolf Hitler escreveu um livro que até os dias de hoje é sinônimo de ódio e segregação: Mein Kampf (Minha Luta), a auto-biografia e programa político que dizia abertamente o que ele tinha em mente caso chegasse ao poder. Uma década depois, nomeado democraticamente chanceler da Alemanha, Hitler empreendeu cada um dos pontos defendidos no livro, como se seguisse um cronograma: a restrição dos direitos sociais, o rearmamento, a criação de um Estado policial, o belicismo, a tomada de territórios vizinhos, a invasão à União Sovitética e a perseguição e aniquilamento do povo judeu. E tudo isso foi anunciado anos antes, muito claramente. Por que ninguém fez nada? Ou melhor, por que o livro - apesar de ter sido um best-seller à época (e curiosamente até hoje!) - não fez com que os governos se mobilizassem contra o perigo latente e, assim, evitassem que a história fosse escrita da forma que foi, com a destruição das instituições, o extermínio de inocentes e a condução do mundo à guerra? Hitler foi lido, compreendido, e jamais escondeu as suas reais intenções. Documentou tudo neste livro que foi traduzido em todos os cantos do mundo. Ainda hoje, Mein Kampf é um livro carregado de dor, veneno e proibição, como se portasse uma maldição que muitos não querem tocar. No entanto, ainda bate recorde de vendas - sobretudo em países muçulmanos - criando dúvidas sem precedente: por que Hitler ainda desperta tanta curiosidade? Por que tantas pessoas ainda querem ler este livro? 
Quando ainda estava preso, Hitler destilou o ódio num livro que se tornou best-seller mundial. Ninguém parece ter levado-o a sério. E o resto é história

Antoine Vitkine tenta responder a esta e a muitas outras reflexões com seu livro "Mein Kampf: a história de um livro". Com um texto jornalístico e envolvente, Vitkine nos conduz por uma história que começa na prisão de Landsberg, na Alemanha dos anos 20, onde Hitler escreve o que viria a ser conhecido como "a Bíblia nazi". Contar a história de Mein Kampf leva, inevitavelmente, a contar uma história de guerra e morte num continente que jamais pode se dizer iludido pelos planos de Hitler. Ele sempre foi muito claro. O que espanta o autor - como a todos nós - é como este símbolo de totalitarismo e ódio ainda é tão cultuado em países que hoje tentam emular as circunstâncias que levaram o Nacional Socialismo ao poder, na década de 30. A crescente corrida por Mein Kampf e outras literaturas similares deixa muito claro que Hitler pode estar morto, mas suas ideias perduram como fantasmas que ainda demonstram vigor e sedução. O poder e o veneno das ideias destiladas no livro deixam claro que as sementes daquele movimento ainda estão vivas, ainda estão entre nós e ainda podem ser cultivadas. O perigo e a lição para que os mesmos erros não voltem a ser repetidos.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ANIVERSÁRIO

Não é uma questão de fé, crença ou religião; mas, para mim, é impossível não refletir - todos os anos - que celebramos em dezembro a vinda ao mundo de um menino tão pobre, nascido no deserto e em meio aos animais, mas que mudaria a história para sempre. Dois mil e dez anos que lembramos deste aniversário. E acho impossível também não me comover com este pensamento. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O NATAL TAMBÉM CHEGA PARA OS GATOS...

E não podia ser diferente com o gato do Simon. É Natal para ele também...

domingo, 12 de dezembro de 2010

IMPROVÁVEL E IMPERDÍVEL

Steven é um homem exemplar. Filho adotivo, criou uma família religiosa, é casado e pai de uma filha. Seria tudo perfeito se ele não descobrisse, repentinamente, que é gay e estelionatário. Que adorável surpresa esse filme "O Golpista do Ano" (I love you Phillip Morris), estrelado por Jim Carrey e Ewan Mcgregor. Não sabia muito da história, mas imaginava ser uma comédia típica de Jim Carrey. É e não é. O começo rende cenas insanas, inacreditáveis, nas quais Jim Carrey desfila as caretas e trejeitos que o fizeram famoso. Ele vive o pacato Steven, um homem que tem uma epifania após um acidente de carro que quase leva a sua vida. Ele descobre que é gay, que quer outra vida e parte em busca dela. No caminho, se envolve com Jimmy (vivido por Rodrigo Santoro em mais um papel de meia dúzia de falas) e percebe que a vida de gay não é barata. Para sustentar o luxo, então, ele decide fazer todo o tipo de golpes, transformando-se rapidamente num habilidoso estelionatário.

Ewan Mcgregor e Jim Carrey vivem um casal improvável em "O Golpista do Ano"

Inevitavelmente, esse comportamento criminoso o leva à cadeia, onde ele conhece Phillip Morris, vivido pelo sempre competente Ewan Mcgregor. Os dois se envolvem afetivamente na cadeia e, a partir daí, a história passa a contar os eventos do relacionamento dos dois. Mas os golpes continuam; e com eles, mais cadeia e surpreendentes tentativas de fuga. Este é um filme muito especial, porque transita com facilidade em vários gêneros sem jamais ser superficial. Quando quer ser comédia é hilário. Quando drama, comove. Quando romance, convence. Jim Carrey está maravilhoso, como há muitos anos não conseguia ser em cena, e sua atuação é enriquecida pela presença marcante de Ewan Mcgregor, que dá vida a Phillip Morris com muito realismo: um homem delicado, frágil e inocente por quem o golpista se apaixona. Esta é uma história de risos fartos e um romance verdadeiro, baseado em eventos reais que aconteceram no Texas durante a década de 90. Improvável e absolutamente imperdível.

sábado, 11 de dezembro de 2010

ILUSTRANDO

Mais um lindo desenho de Amarílis Lage (Blog Cartolina). Um devaneio emprestado. Às vezes é só isso que precisamos; um pouquinho de silêncio.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

"DESCE?"

O que aconteceria se fossem misturados, num mesmo filme, o Diabo e uma história da Agatha Christie? Bom, o resultado - apesar de não passar nem perto de ser um resultado perfeito - seria, sem dúvidas, esse filme: "Devil" (Demônio). "Nada dá certo, quando o Diabo decide fazer uma reunião. Ele se passa por um de nós e vem até a terra para primeiramente atormentar as almas que ele pretende capturar", nos diz o narrador logo nos primeiros minutos.

A trama e o cenário não poderiam ser mais simples: 5 estranhos se veem presos, por acaso, num elevador de um prédio comercial. Seria uma manhã qualquer, chuvosa, na Filadélfia, se não fosse pela série de eventos estranhos que aconteceriam sucessivamente. Primeiro, um suicídio que leva o oficial Bowden a investigar justamente o prédio onde as 5 pessoas estão presas num elevador: uma velha cleptomaníaca; um vendedor de colchões; um segurança; uma mulher misteriosa e um ex-fuzileiro naval. Mas que segredos esses estranhos escondem? E será que, de fato, eles estão presos ali por acaso?
Pessoas comuns estão presas num elevador qualquer, num dia qualquer. Será?

"Devil" não é um filme perfeito, tampouco inventa a roda; mas capturou minha atenção sem esforço. Bem dirigido por John Erick Dowdle ("Quarentena") e produzido por M. Night Shyamalan ("O Sexto Sentido"), o filme consegue criar uma atmosfera de perigo, suspeita, mistério e claustrofobia constantes e com tão poucos recursos disponíveis. Poucas pessoas, alguns metros quadrados de confinamento e, misteriosamente, cada um deles morre estranhamente sob o olhar - de espanto - de todos. As luzes se apagam e eis que surge mais uma vítima. 

O que está acontecendo? Alguém os está matando? Realmente existe uma energia maligna tomando conta daquele prédio ou esta é uma mera história de assassinato, com vítimas e um único culpado? "Devil" consegue sustentar esta dúvida até os instantes finais, onde tudo é revelado sem modéstia.

Confesso que me surpreendi muito com esse filme. Esperava bem menos dele e fui "assistindo para ver onde chegava". E, assim, me vi acompanhando os créditos finais. A impressão que tive era que apenas cinco minutos haviam se passado. Este é um filme modesto, enxuto, completamente despretensioso mas infalível na sua missão essencial de tensionar e assustar ao nos fazer refletir sobre o que está acontecendo a aquelas pessoas. 

Se você, como eu, decidir entrar no elevador em "Devil", esqueça da claustrofobia e esteja preparado para uma estranha viagem que vai mexer com a sua ideia sobre comuns e inofensivos elevadores. Não chega a ser como "Tubarão", de Spielberg, que conseguiu fazer com que o "mar nunca mais fosse o mesmo". Mas passa perto. Muito perto.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

domingo, 5 de dezembro de 2010

PRETTY MUCH IT...

Hoje eu acordei meio monossilábico. "My low-carb birthday". Pretty much it.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

MEU HERÓI NÃO É IMORTAL

Revendo "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" (o quarto da série) consegui compreender, mais claramente, o porquê de eu me sentir tão dividido em relação a este filme. Gosto e não gosto dele. Como fã, naturalmente, adorei o filme e a possibilidade de acompanhar mais uma aventura de Indy que, de todos os meus heróis, sempre ocupará a posição número 1. Mas, justamente como fã, há algo no filme que me é completamente devastador. Constatar que Indy não é imortal e que, como todos os homens, também ele envelheceu. Ele não decepciona, claro, nunca! E dá conta do recado 99% das vezes. Ainda mostra vigor, força. Continua charmoso, engraçado; não há como dizer que aquele ali na tela não é Indiana Jones.

Meu maior herói também envelheceu...

Mas é que, apesar de ser Indiana Jones, ele não é mais o jovem Indy da trilogia clássica. E mesmo torcendo por ele, neste último filme, não foram poucas as vezes em que senti um desejo desesperado de entrar na tela e pedir para que os vilões não batessem nele, não o machucassem demais. "Será que vocês não percebem que não podem mais tratá-lo desta maneira?!", queria muito dizer para os russos que, como os nazis, não demonstram nenhuma compaixão. Indy está velho. Mais frágil, mais cansado, demonstrando mesmo no seu sorriso mais heróico, que o tempo também passou para ele.

É uma constatação boba, óbvia, quase banal.
Indiana Jones não é mais jovem. Eu sei. Só não quero pensar muito sobre isso.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

POR TRÁS DAS CÂMERAS DE "UM LUGAR QUALQUER"

O IMDB acaba de publicar um featurette exclusivo de "Somewhere" ("Um lugar qualquer"). Apesar de curto, o vídeo oferece alguns insights de Sofia Coppola sobre o novo filme. Para quem, como eu, aguarda ansiosamente pela estreia, recomendo. Não consegui subí-lo para o blog, mas para quem quiser ver, o vídeo está AQUI (em ótima qualidade, por sinal).

DEZEMBRO. COM NAT


Que melhor forma de começar dezembro que com Nat King Cole cantando "The Xmas Song"?

domingo, 28 de novembro de 2010

PARA VER E OUVIR: PEABO BRYSON & REGINA BELLE ("A WHOLE NEW WORLD")


Alguém deveria tombar a voz deste sr. Peabo Bryson como patrimônio da humanidade.

AMOR PLATÔNICO

Sofia Coppola. O que dizer? Provavelmente, 40% deste blog é inteiramente dedicado a ela. Linda, sob todos os aspectos possíveis e imagináveis. Talento e sensibilidade à flor da pele. Doce melancolia. Perfeitamente imperfeita. Musa, ídolo, símbolo. Espelho definitivo da arte que me agrada. Referência inequívoca de como me entendo no mundo. A rainha máxima do silêncio eloquente. Japonesa, suicida, arquiduquesa, um turbilhão de emoções delicadamente sustentadas por um rosto de pura serenidade. Fico na fila para ver uma folha em branco apresentada por Sofia Coppola. Meu cinema de cabeceira. Porque Sofia me entende.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

ILUSTRANDO

Pablo Picasso - "Mere Tenant un Enfant"

28/01/2011

Estréia brasileira de "Somewhere" ("Um Lugar Qualquer") marcada para 28 de janeiro de 2011. Agora é esperar.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

PULANDO A CERCA

Vídeo promocional do novo livro do Simon's Cat: "Beyond the fence".

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

AMOR PLATÔNICO

Claire, de "Elizabethtown". Por onde começar para falar de Claire? A cada avião em que embarco fantasio a possibilidade impossível de que ela atenda ao meu voo. Um voo da madrugada, naturalmente. Um red light solitário e silencioso em que ela não consiga evitar me acordar com perguntas impertinentes, mapas de guardanapo e fotografias mentais. Mas ainda assim eu pediria ajuda a Claire para lidar com meus fantasmas e tentaria convencê-la de que ela é tão infinitamente mais especial do que imagina. Claire, difícil de lembrar e impossível de esquecer. Eu a entregaria meu mundo, de olhos fechados, para que ela o mudasse de ponta cabeça. O fracasso, como um sucesso, é só um conceito. Sem dúvidas. Claire, um mapa de som e de fúria, de lágrimas inesperadas e cinzas lançadas em homenagem a um dinossauro ou a uma árvore sobrevivente. Desisti das comédias românticas, Claire. Mas não desisti de você. Do meu microfone imaginário eu te diria, de peito aberto e a plenos pulmões, sem cerimônia: "I like you".

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

HISTÓRIA DE VAMPIRO

Esqueça tudo o que você ouviu falar até hoje sobre vampiros, porque a história que eu vou contar em nada se assemelha à cultura pop e milionária de livros e filmes da atualidade. Essa é a breve história sobre o curto tempo em que eu convivi com Andrzej Popescu.

Quando eu tinha 15 anos, consegui meu primeiro trabalho como assistente num velho teatro no centro da cidade. O local, apesar de ainda ostentar uma fachada art déco e cadeiras de veludo vermelho puído, era um pouco decadente e esquecido como tudo naquele emaranhado caótico de ruas e avenidas. No entanto, aquele era o último reduto que ainda oferecia projeção de filmes antigos e apresentações de peças independentes. Os demais teatros e cinemas do centro, como é comum, já haviam se transformado em pontos de encontro para todas as práticas sociais do submundo. 

Menos o Theatro Apolo. Quem ía até lá queria ver filmes e peças. Não estava interessado em outra coisa além disso. Eram pessoas solitárias, insones, um pouco marginais, que se encontravam ali, nas sessões que aconteciam tarde da noite. Era como se habitássemos numa ilha, cercada de tubarões. Mas ali, naquela ilha decadente, não havia riscos. E eu gostava de trabalhar lá.

O dono do velho teatro era um homem de meia idade, bem apessoado e muito discreto. Andrzej dizia ser filho de ciganos e o fato é que ele falava com certo sotaque. Era difícil adivinhar; a pele tinha um tom castanho incomum, olhos e cabelos muito escuros, mas nenhum traço identificável. Pelo menos não para mim. Mas eu era um menino de 15 anos, não um antropólogo. Ele era estrangeiro, não havia dúvidas. Muito silencioso, reservado, poucas vezes me recordo de ter conversado com ele mais do que alguns minutos e, sempre, para receber instruções. Ele não falava de sua vida ou de assuntos pessoais. Apenas trabalho.

Também o via muito pouco. E somente à noite, quando o espaço funcionava madrugada a dentro. Pela manhã, quando eu ía lá para fazer trabalhos diversos, geralmente nas sextas e segundas, nunca o encontrava. A chave estava, como sempre, escondida atrás de um tijolo falso. Eu entrava, fazia o que tinha que ser feito e ía embora, apenas para retornar à noite. Andrzej vivia como artista. Dormia ao longo do dia para respirar os ares da madrugada. Foi assim durante todos os dias em que convivemos.

Mas ele não era um boêmio. Nunca o vi beber, fumar ou apresentar qualquer tipo de conduta questionável. Nunca. Ele se encontrava com alguns rapazes, à noite, no seu quarto, mas o real sentido deste hábito eu só fui compreender muitos anos depois. Naquela época, ele me dizia que receberia alguns amigos e me dispensava mais cedo. No resto do tempo era um patrão agradável, educado e cordial. Parecia educado demais, até, refinado demais. Como se não pertencesse aquele resto de lugar.

Isso era evidente no seu tom de voz, baixo e melodioso, mas sem afetação. Os gestos contidos, elegantes, o caminhar imponente, de quem parece marchar. Um olhar penetrante, sábio e negro como o de um tubarão; um olhar de quem enxerga de cima, sem se misturar mas, ao mesmo tempo, sem ser pretensioso. Uma expressão impávida e sedutora. Algo de nobre.

As roupas, porém, eram muito simples, mas isso não desmerecia sua postura. Os cabelos, também muito negros, sempre mantidos curtos e nenhum acessório. Não usava relógios, correntes, pulseiras, chapéus. Havia um anel, pequeno, com uma pedra vermelha, que ele mantinha no dedo mindinho. E só. Andrzej era um homem fino, de hábitos simples e que se esforçava, justamente, em não chamar atenção.

Ele seria apenas mais um na multidão se não fosse por uma particularidade. Andrzej era um vampiro.

Mas ele não era sombrio. Não rejeitava crucifixos, nem alho, nem espelhos. Dormia manhãs e tardes inteiras, é verdade, mas de resto, era um homem comum. Se bebia sangue, não sei. Nunca o presenciei fazendo isso. No entanto, tampouco lembro de tê-lo visto bebendo ou comendo qualquer coisa. Andrzej também não dormia num caixão. Na única vez em que vi o seu quarto, quando suspeitei que o teatro poderia ter sido roubado, vi um cômodo pequeno, simples, sem nenhum luxo. Cortinas pesadas, uma cômoda, uma cama de solteiro e só. O quarto parecia muito mais com uma cela num monastério.

Como eu sei, então, que ele era um vampiro, você me perguntaria.

Porque ele simplesmente assim me disse. Foi a única vez em que falou sobre ele mesmo. E, mesmo assim, não me disse em pessoa, mas por meio de uma carta que guardo até hoje. Num dia qualquer em que cheguei para trabalhar, encontrei o lugar completamente abandonado. Primeiramente imaginei que o teatro havia sido assaltado. Subi às escadas nos bastidores em direção ao quarto de Andrzej e não o encontrei lá. Em nenhum lugar. Ele havia ido embora.

A única coisa que havia restado era uma carta, escrita em papel cartão grosso, com uma linda caligrafia e um selo em cera. Coisa de filme, pensei. Andrzej era um fugitivo, como todos da sua estirpe, ele relatou. Nômades, sem lar, sem família, sem laços. Eram hóspedes de um tempo e de lugares que jamais pertenceriam a eles verdadeiramente. Partiam, sem deixar rastro, no momento em que percebiam que seus refúgios poderiam ser maculados. Há algo de sagrado no repouso de um vampiro, como um santuário que não pode ser invadido. É assim que se mantém um segredo tão antigo quanto o homem. Eles estão entre nós, disse-me Andrzej.

"Procure-nos entre os insones, entre os solitários, entre poetas desolados e os músicos mais melancólicos. Procure-nos nas ruas da noite porque nós estaremos lá".

Andrzej me desejou boa sorte. Agradeceu pelos serviços que eu havia prestado e deixou outro envelope com dinheiro suficiente para pelo menos quatro meses de salário. Um tempo razoável para que eu arrumasse outro emprego. Não deixou endereços, nem contatos ou uma pista qualquer de seu destino. Flertava com a luz, dizia ele na carta, mas tomaria precaução em se refugiar num lugar tão confortável quanto o velho teatro. E assinou, sem datar a carta, com um simples "A.P".

Atualmente, já não existe nenhuma sombra do velho Theatro Apolo. Meses depois que Andrzej foi embora, o lugar acabou sendo demolido e reformado. A prefeitura o transformou num centro de auxílio social e recolocação profissional. Até pesquisei, à época, os detalhes da transação para descobrir alguma novidade sobre o paradeiro de Andrzej Popescu, mas fui informado que a prefeitura recebeu o prédio como doação de um estrangeiro que estava indo embora do país. Não havia nenhum detalhe, nada. Andrzej havia desaparecido.

Ainda hoje, tantos anos depois, me pego ocasionalmente pensando onde estaria Andrzej Popescu. Se estaria vivo, se seria mentira toda aquela história, se ele não seria um louco para quem eu havia trabalhado alguns meses. Provavelmente. Eu jamais teria como saber. Mas sempre gostei, secretamente, de imaginar que um dia trabalhei para um vampiro. Melhor, no teatro de um vampiro.

* * *

"Imagine que este conto pertence ao meu bisavô. Meu pai dizia que ele era um ótimo contador de histórias, mas que esta seria a única que ele havia registrado em papel. Era a sua história preferida". 

* * *
"Empresário europeu reforma velho hotel no centro da cidade", dizia notícia do caderno Cidades no dia em que Bento releu o conto do seu bisavô pela centésima vez. Ele folheava o jornal à procura de emprego e a notícia parecia animadora.

Anotou o endereço. Hotel Apolo, aparentemente.

domingo, 21 de novembro de 2010

PARA VER E OUVIR: "HEY JUDE" (DE "ACROSS THE UNIVERSE")

ELES NÃO ESTÃO NEM AÍ...

Talvez por isso, justamente, a gente goste tanto deles...

sábado, 20 de novembro de 2010

SOFIA COPPOLA E O CONFINAMENTO

Me ocorreu que o tema central da obra de Sofia Coppola é o confinamento. Num primeiro instante, mais óbvio, o confinamento espacial, real. Mas, nas entrelinhas, um confinamento extremamente subjetivo (sua marca registrada e que faz seus filmes serem inconfundíveis). Porque os personagens de Sofia, se pararmos para pensar, são prisioneiros circunstanciais e de si mesmos. Eles gostam de contemplar horizontes, de observar janelas, com um olhar perdido como se estivessem buscando por respostas. E, de dentro destas prisões, constroem situações que fazem com que todos os filmes sejam especiais em inúmeras formas. 
As virgens de Sofia Coppola: prisioneiras circunstanciais

Se pensarmos sobre "As Virgens Suicidas", por exemplo, vamos observar um grupo de lindas meninas, reféns de pais excêntricos. Elas são prisioneiras, de fato, daquela casa onde suas liberdades e sexualidades são reprimidas de tal forma que ocasiona o trágico final retratado por Coppola com delicadeza e brilhantismo. As meninas são cativas de seus pais, mas essencialmente são cativas de si mesmas. Da falta de opções, das confusões da adolescência, de uma vida sobre a qual elas não tinham a menor compreensão ou controle. São punidas pela beleza, pelo corpo, pelo medo de seus pais que elas fossem machucadas. "Obviamente doutor, o senhor nunca foi uma menina de 13 anos". Confinadas naquela casa, não havia nenhuma fuga para as meninas Lisbon a não ser aquela que os garotos da rua jamais esqueceriam.
Charlotte e Bob querem fugir. Mas para onde?

Em "Encontros e Desencontros", temos um hotel do qual Bob anseia desesperadamente por um "plano de fuga". Ele quer fugir daqueles compromissos, daquele lugar, daquele idioma incompreensível. Mas, principalmente, ele quer fugir da estagnação da sua própria vida. Um casamento falido, uma carreira desaparecendo, a quase indiferença sobre si mesmo. Charlotte, igualmente presa à sombra do seu marido ausente, perambula pelo hotel e pelas ruas, sem a menor ideia de onde está indo pela simples vontade de se movimentar. "Estou presa", ela diz. Jovem, cheia de dúvidas sobre a vida, o casamento, a profissão, Charlotte observa a janela com os olhos do pássaro que sonha em fugir da gaiola. E os dois experimentam, na companhia um do outro, um suave sabor de liberdade, mas com prazo de validade. Há liberdade enquanto caminham juntos, mas os dois sabem que a separação é inevitável. Para onde fugir, então?

Maria Antoineta. Prisioneira de um palácio de sonhos artificiais

Mesmo em "Maria Antonieta", que poderia ser meramente um filme de caráter histórico, fica evidente essa reflexão. Uma rainha criança, estrangeira, indesejada, aprisionada por um conjunto de regras sociais num palácio que jamais seria o seu lar. "Lá vem a austríaca". Versalhes também é um hotel, se pararmos para pensar, e uma cadeia para Maria Antonieta que, não por acaso, demonstra inúmeras vezes o desejo de quase sufocado de fugir. Luís XVI até fabrica um refúgio para ela brincar de liberdade. Mas não havia nenhuma rota de fuga para Maria Antonieta a não ser uma festa sem fim, "a festa que antecedeu a revolução", para entorpecer a dor de sua existência e que, eventualmente, lhe custaria a cabeça. 

Um hotel nunca é um lar. Expectativas sobre "Somewhere"

As expectativas para "Somewhere", na minha opinião, também não ficam distantes deste pensamento recorrente. Não vi o filme, mas sei o suficiente para imaginar que também aqui Sofia Coppola não se afastará da sua reflexão do confinamento. Um astro de Hollywood, novamente preso numa vida superficial, num hotel de luxo, é sacudido pela visita de sua filha. Uma desculpa, uma rota de fuga ou, pelo menos, um novo prisma para repensar a sua vida.

Sofia Coppola aprisiona seus heróis e tenta compor uma linha, ainda que tênue, que possa dar-lhes uma esperança de fuga. É onde ela parece exorcizar seus fantasmas, suas próprias dores. Sua reflexão sobre a solidão na multidão, possivelmente o pior de todos os confinamentos. Os heróis de Sofia Coppola são frágeis, solitários, silenciosos. E com a ajuda deles ela cria esses filmes delicados, preciosos e absolutamente seus. E, de alguma maneira, "nossos" também. Nós que também enxergamos as dores camufladas, que ninguém faz muita questão de descobrir. Uma honestidade que despe a ela e a nós,  transpirada por todas as cenas, enquadramentos característicos e músicas que, juntos, fazem com que um filme de Sofia Coppola não seja como nenhum outro. Nunca. Sua compaixão pela fragilidade humana comove, é o seu maior trunfo, e a matéria com a qual ela costura estes filmes até imperfeitos, claro, mas simplesmente inesquecíveis.

O FERIADO

Naquela noite, particularmente fria e chuvosa, Joachim sentiu ainda mais medo do homem que gritava no rádio. Trovões e relâmpagos insistentes criavam sombras estranhas no apartamento e faziam aquela voz estridente ecoar pelas paredes e assoalhos como se ele estivesse ali, gigante, monstruoso, cheio de chifres, como Joachim assim o imaginava. O homem no rádio aterrorizava Joachim em seus sonhos e tudo o que ele mais desejava na vida era que ele desaparecesse. 

Correu para abraçar a barra da saia de sua mãe, que repousava diante da janela. Joachim queria saber "quando o homem que gritava no rádio morreria".

"Ele morrerá num feriado, meu filho", disse, olhando-o nos olhos e acariciando o rosto do menino.

Ao que Joachim observou-a, sem entender.

"Porque o dia em que ele morrer será um feriado".

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

ÀS VEZES, TUDO O QUE A GENTE MAIS QUER...

É ficar bem escondidinho...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

ILUSTRANDO

Alguns pôsteres internacionais do filme "Maria Antoineta", de Sofia Coppola
Brasil
Estados Unidos
França
Alemanha
Holanda
Itália (meu preferido) 
Japão
Taiwan