quarta-feira, 29 de maio de 2013

segunda-feira, 27 de maio de 2013

"MADDIE ON THINGS"

 O fotógrafo americano, Theron Humphrey, tem uma série de fotos maravilhosa chamada "Maddie on things" ("Maddie sobre as coisas"), na qual retrata a sua carismática cadelinha coonhound, Maddie, em todo o tipo de pose e situação. O charme, na minha opinião, é a completa falta de sentido de algumas fotos. Imperdível.



sábado, 25 de maio de 2013

CHUVA SOBRE O VALE

"Onde está o meu filho, meu bom senhor?", a mulher perguntava, quase aleatoriamente  aos transeuntes daquele vale desolado. Caminhava, lentamente, os pés descalços quase em carne viva, sobre a lama molhada, imunda, vermelha, onde muitas vezes tinha que lutar para desenterrar as canelas.  Atrás dela, conseguia ouvir um punhado de homens com seus tambores.

Rat, tat, rat, tat, rat. Rat, tat, rat, tat, rat.

Homens caminhavam em todas as direções, com suas roupas em farrapos, ensopadas de terra, água de chuva e sangue. Olhos vazios, tapados de forma artesanal com ataduras, braços cortados em todas as alturas.

Alguns vinham sem mãos, outros rastejando; centenas, milhares, espalhados sem vida em cada canto que ela olhava. Aquele cenário cinza, terrível, onde vivos e mortos disputavam o espaço com cães, cavalos, bois, ladrões, mulheres em prantos, carroças em pedaços, flâmulas de todas as cores e desenhos amarradas em estacas. 

"Onde está o meu filho, meu bom senhor?", ela segurava um pelo ombro, sem resposta. Aqueles milhares de meninos, alguns tão mais novos que o seu filho, pavimentando o chão daquela batalha recente. O cheiro de carne apodrecendo azedava em seu nariz mas ela seguia em frente, a barra do vestido puído se arrastando no solo imundo.

Ela lembrava do dia em que ele havia partido para defender uma causa da qual ela mesmo não sabia ao certo a essência. O menino vestia um gibão velho, calças de fazendeiro e botas furadas. E uma lança de madeira lascada. E ele sorria, contaminado pelo desejo pueril pela batalha.

E acenava, feliz, ao longe, até se perder no horizonte daquela marcha enorme que rasgava o vilarejo como uma serpente.

"Onde está o meu filho, meu bom senhor?", ela tentou um homem que serrava a perna de um outro já desacordado. Sem resposta. Continuou caminhando, por entre uma dezena de cavalos com as barrigas abertas, muitos soterrando os seus senhores. Aqueles rostos sem nome, aquele resto do que um dia foi a marcha orgulhosa.

A chuva molhava os seus cabelos ralos, que escorriam pelo rosto como um véu amarelado. A camisa remendada, repleta de furos, colando no corpo magricela que há semanas era sustentado por biscoitos de aveia e pão velho. Ela não se lembrava, havia muito tempo, de outro gosto que não aquele. Eram tempos difíceis.

E ela caminhava pelo campo desolado, como um fantasma.

Gritos ecoavam pelos lados, alguns próximos, outros tão distantes. Não muito longe, um homem entoava tristemente uma canção numa flauta, ao redor de uma pequena fogueira. Outros abraçavam-se para caminhar juntos, outros tantos despencavam no chão como torres emplodidas.

Aquele cenário absurdo que ela não conseguia ao certo fazer juízo a respeito. Homens de bom nascimento, com roupas coloridas intactas, vinham à cavalo na direção contrária a ela, com suas espadas brilhantes e estandartes orgulhosos. Agarrou-se ao estribo de um cavaleiro de meia idade, a barba vermelha cobrindo o seu rosto como um urso.

"Onde está o meu filho, meu bom senhor?", ela perguntou. Ao que o homem simplesmente ignorou, retomando a marcha. Os cavalos enormes passavam por ela e, por um momento, ela imaginou como seria bom ser pisoteada por aqueles animais gigantescos, até o seu corpo desaparecer sob a lama, a chuva e o sangue. 

Ela poderia enfim descansar os seus ossos. "Ah, como seria bom".

Seguiu os seus passos tortos e exaustos até que encontrou um corpo afogado numa poça vermelha. Um rapaz, regiamente vestido, com uma armadura de peito tão polida que ela podia ver o seu rosto. Uma calça grossa de algodão, com listras amarelas e vermelhas, e uma capa onde um leão orgulhoso mostrava as garras num campo de estrelas. Um príncipe, sem dúvidas, com a cabeça afundada em sangue mercenário.

Trovões tamborilavam no céu e raios rasgavam o ar ao seu redor. 

Ela correu ao encontro do rapaz, retirando-o da sujeira e limpando-o com um lenço puído. O rosto, sem vida, era jovem, imberbe, com lindos cabelos negros, lisos feito seda, cascateando sobre uma máscara branca feito leite, imóvel, marcada por penetrantes olhos azuis. 

"Que rapaz lindo", ela disse, ajoelhada, com a sua cabeça sobre o seu colo. 

E ficou ali, sentada na lama, embalando o corpo do jovem príncipe, ninando-o com canções antigas.

"Eu encontrei o meu filho, meu bom senhor", ela dizia aos homens que passavam, sorrindo. 

"Eu encontrei o meu filho"

ILUSTRANDO

Joseph Minton - "Departures"

sexta-feira, 24 de maio de 2013

NERDICES

 
Em homenagem ao 25/05.





segunda-feira, 20 de maio de 2013

"ANTES DA MEIA-NOITE"


Quase duas décadas se passaram desde que Celine e Jesse se apaixonaram numa viagem de trem rumo a Viena. E aqui estão eles, de volta, em seus 40 e poucos numa viagem pela Grécia. E, num tempo efêmero, antes do final de um dia, saberemos um pouco sobre a vida que eles, afinal, viveram juntos desde que se reencontraram em Paris. Na lista dos IMPERDÍVEIS, naturalmente.

terça-feira, 14 de maio de 2013

segunda-feira, 13 de maio de 2013

PARA VER E OUVIR: DAVID BOWIE ("SPACE ODDITY")

ALGUNS FILMES SÃO COMO VINHO...

...e realmente ficam melhores quanto mais o tempo passa. "The Savages", certamente, é um destes filmes. Absolutamente imperdível.

sábado, 11 de maio de 2013

PARA VER E OUVIR: AUGUSTIN BARROS MANGORÉ ("LA CATEDRAL", ALLEGRO SOLEMNE)

A EXPERIÊNCIA VIVA

"Não é apenas a inércia a responsável pelo fato de as relações humanas se repetirem caso após caso, indescritivelmente monótonas e viciadas. É a inibição frente a qualquer experiência nova e imprevista, com a qual não nos achamos capazes de lidar. Mas só alguém que esteja corajosamente disposto a qualquer coisa, que não exclua nada, nem mesmo o mais enigmático, viverá a relação com o outro como uma experiência viva".

(Rainer Maria Rilke).


A MENINA QUE ESPERARIA POR COLE PORTER

Não deviam ser nem 8 horas da noite quando ela girou a chave na porta. Seu gato, Petit, veio imediatamente reclamar a demora, misturando miados de fome e inconformação a enroscadas infinitas por entre as suas pernas. Ela se agachou e acariciou o gato sob as orelhas, que ficou ali parado, saboreando os carinhos.

Ela entrou e depositou uma sacola de compras sobre a pequena mesa da cozinha. Dois itens, apenas, que retirou de forma quase cerimonial: uma caixa de chocolates belgas e uma garrafa de Jack Daniel's.

"Esta será uma noite selvagem...", sorriu consigo mesma.

Não é que ela estivesse triste ou coisa assim. Bem o contrário. Estava feliz, centrada - talvez pela primeira vez -, cercada de bons amigos, seguindo uma carreira promissora e com planos sólidos de viajar, após tantos anos, para a Índia, como sempre havia sonhado, desde menina. 

Sozinha.

A verdade é que ela teve uma epifania, repentina, enquanto virava a esquina para voltar para casa. Fez uma inversão proibida e entrou na primeira delicatessen que encontrou. É que ela queria chocolates e whisky. Queria sentar no sofá da sua sala, vestindo nada além de uma camisa gigante e um par de meias surradas, vendo filmes românticos, com seu gato Petit adormecido sobre o seu colo, acompanhando as luzes da cidade desaparecendo na janela, como constelações sem nome. 

Era isso que ela queria. Somente isso.

Havia se obrigado a tanta coisa, submetido o seu corpo, o seu prazer, o seu desejo, os seus planos a um plano que não era dela. E por tanto tempo. O plano dele. Queria estar magra para ele, atraente para ele, e se sacrificava com dietas malucas e sessões suicidas de academia, onde saia quase arrastada pela exaustão. 

"E para quê?", perguntava-se ao voltante, "gente, para quê?".

Quando aquele relacionamento inútil chegou ao fim, aquela lesma de relacionamento que se arrastara sem propósito por tanto tempo enfim foi salgada até a morte, ela descobriu que não queria mais perder tempo. Nunca mais.

Não queria mais entregar o seu melhor ao vento, ao abismo, aquela troca sem volta. Seria feliz, com seus 10, 15 quilos a mais. Com seu gato, com seus amigos, com seu trabalho louco e a sua sonhada viagem para a Índia. E seria feliz, verdadeiramente, pela primeira vez em sua vida.

Entrecortava bicadas do whisky com mordidas do chocolate e suspirava, quase enamorada, enquanto sentia aquela mistura cremosa, doce, ácida, morna, mergulhando o seu rosto numa névoa de relaxamento sublime. 

Lamentava aquele tempo perdido. Lamentava tê-lo elogiado tanto quando ele mesmo era o oposto de qualquer padrão de beleza. Ele, sempre ele, sempre ele; aquela vida patética, em torno do trabalho que ele julgava ser o mais importante do mundo; o seu carro de luxo, o seu cachorro de raça estúpido. Seus hábitos e manias esquisitas, sua egomania, a maior de todas, ele que se amava tanto.

"Ah, benzinho, se você soubesse como não está com essa bola toda...".

Ria, mordendo com gosto mais um chocolate.

Ela preferiu desaparecer. Sumir. Evaporar. Ignorou as suas ligações que foram, gradualmente, se extinguindo; ele, que perdia interesse em tudo que não tivesse interesse por ele. E notou, então, enfim, como a vida era mais leve, mais simples, mais colorida, quando se pode vivê-la para si e não para os outros. 

Ela percebia que todos aqueles clichês de filmes banais e livros de quinta categoria eram mesmo reais. E queria, realmente, que ele se danasse, que fosse para o inferno, que sumisse do mapa. E sorriu, num bálsamo inédito, quando chegou a essas conclusões tão óbvias e repentinas.

Decidiu que seria sozinha. E daí? Melhor, decidiu que seria sozinha até encontrar um rapaz que cantasse canções de Cole Porter. Até esse dia chegar, seria sozinha. E abraçaria a felicidade, plena, inegável, inquestionável, incorruptível, insequestrável, de sê-lo.

A noite ía navegando em sua janela, pesando o peso do mundo sobre as suas pálpebras. Ela estava adormecendo, lentamente, sob uma fumaça açucarada, entorpecida. Um casal trocava um beijo apaixonado na televisão, era tudo o que ela se lembrava, enquanto o mundo ficava cada vez mais escuro e silencioso. 

Ela havia dormido.

O dia amanheceu preguiçoso na janela, lentamente fazendo-a acordar. Cuidou do seu gato, ligou a cafeteira, lavou o rosto, escovou os dentes, ainda semi-acordada. Os cabelos revoltos, a maquiagem borrada, a camiseta surrada balançando como uma bandeira, as meias encardidas lustrando o chão com o seu caminhar desinteressado. 

"Você deveveria me ver agora, benzinho", riu de si mesma com a escova de dentes enfiada na boca. 

Arrumou-se para mais um dia de trabalho. Os cabelos cor de areia amarrados num rabo de cavalo, um traje executivo, uma bolsa pequena, uma pasta de couro, a maquiagem simples, sapatos bonitos, simples mas elegantes. 

Beijou seu o gato na boca, "comporte-se!", e fechou a porta atrás de si. Respirou fundo e caminhou pelo longo corredor de apartamentos rumo à lata de lixo do seu andar, onde depositou a garrafa vazia e uma caixa bonbons que chacoalhava com uma centena de papéis amassados.

Sorriu quando arremessou-os na grande lata ferro. A sua noite selvagem.

E então caminhou para o elevador. Foi aí que ouviu, sim, ouviu, para o seu espanto. Aquele assobio, cada vez mais perto, inconfundível. Aquela voz docemente desafinada, chegando aos seus ouvidos como uma prece. O rapaz vinha na mesma direção que ela. E ele sorria, cantarolando, alheio ao mundo.

"When I knew that you could care,
So taunt me, and hurt me,
Deceive me, desert me,
I'm yours, till I die
So in love...
So in love with you..."

Ela parou, flutuante, observando-o, em silêncio. Uma lágrima solitária escorreu pela sua bochecha, amparada por um sorriso que vinha iluminar o seu rosto. 

É que ela havia encontrado um rapaz que cantava as canções de Cole Porter.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

ILUSTRANDO

"Stormborn", fanart fenomenal da Daenerys (de Game of Thrones), por Mischievous Martian.

terça-feira, 7 de maio de 2013

domingo, 5 de maio de 2013

ALGUMAS HISTÓRIAS

Após alguns minutos de silêncio, ele percebeu que a fumaça que pairava sobre o seu café começava a dissipar. Foi só então que ele notou que não estava bebendo, apenas segurando o copo descartável em suas mãos.

"Seu café está frio", o monge lhe disse. 

Era uma manhã ensolarada, com cheiro de mato e barulho de pássaros; e um vento frio que despertava vontade de cobrir o pescoço. Ele sentou com o seu amigo, o monge, num banco de frente para uma pequena lagoa, onde um punhado de patos desfilavam suas alegrias inocentes. Ele gostava daqueles momentos em que passava com o seu amigo; era quando conseguia administrar a confusão dos seus pensamentos que, vez ou outra, vinham embaralhar a sua mente.

"É possível amar alguém de quem não gostamos?", ele perguntou ao seu amigo, o olhar fixo no horizonte, bebericando o café sem muito interesse.

"Claro que sim", seu amigo respondeu, com um daqueles sorrisos sapientes. "Da mesma forma que é possível gostar de alguém que não amamos". Mais algum silêncio. "As relações humanas não são tão complexas; a gente é que torna tudo tão difícil".

Ele riu, consigo mesmo, bebendo um último gole de café e se levantando rapidamente para jogar o copo descartável no lixo. O monge tinha razão; para variar ele tinha razão. 

A verdade é que ele vinha sofrendo, obcecado com pensamentos relacionados à finitude das coisas. Ou melhor, a falta de finitude, de encerramentos. Ultimamente, ele tinha a sensação de que muitas coisas ficavam no ar, pairando pendentes, órfãs de resolução e esse era um pensamento que o aterrorizava.

"O seu problema é que você se obriga a dar um final a tudo", o monge o olhou nos olhos de forma penetrante. E, sério, continuou o seu raciocínio. "Algumas histórias possuem finais felizes; outras finais trágicos", pausou brevemente. "Algumas histórias simplesmente não possuem final algum". Sorriu, as mãos entrelaçadas sobre o seu colo. 

Raios de luz cortavam as copas das árvores ao redor dos dois, construindo uma catedral de silêncios que tornava aquele o mais aconchegante de todos os lugares.

Ele ainda lembrava o dia em que ela fora embora. Aqueles pensamentos em preto e branco, cada vez mais borrados, com costuras cada vez mais folgadas, prontas para arrebentar. Ele dedilhava o violão de forma preguiçosa enquanto a acompanhava com os olhos, disfarçando; ela arrumava as últimas sacolas, fechava um punhado de caixas e, nas poucas vezes que trocavam alguma palavra era basicamente para combinar o momento ideal para ela vir buscar as suas coisas e ir embora, de forma definitiva.

E ele ia colando, por cima daquela realidade infeliz, simulações de momentos vividos nos mesmos cantos em que ela transitava. Quando eles cozinhavam juntos, rindo, bebericando algum vinho. Ou quando dançavam na sala, embriagados pela felicidade. 

Quando se abraçavam diante da televisão, vendo algum filme marcante ou quando faziam amor sobre o tapete felpudo da sala, alheios ao barulho que faziam, tomados pelo sentimento de serem as únicas pessoas do mundo. Quando tomavam banho juntos, no pequeno banheiro ou quando ele a via entrar pela porta, equilibrando sacolas e correspondências demais, gargalhando com a sua falta de coordenação. 

Os dois sujos de tinta, da cabeça aos pés, quando decidiram pintar a sala; os móveis que compraram aos poucos, naquela vida repleta de privações. Eles eram jovens, não tinham dinheiro mas, ao mesmo tempo, eram as pessoas mais felizes do mundo.

De repente, tudo aquilo tinha sumido; apagado, como arquivo de computador. Todas aquelas lembranças substituídas pela imagem dela, caminhando apressada pelo apartamento; os olhos baixos, a cara amarrada, impaciente, ansiando por ir embora dali. Ele observava o decote na blusa e o cumprimento da saia, as pernas dela, tão bonitas, escondidas ali. Aquela pele que não o pertencia mais. 

Não é que ele ainda gostasse dela; os dois, há muito tempo, não se gostavam mais. Era apenas a ideia de vê-la embora, do seu apartamento, da sua vida; do seu país, em verdade. Há muito tempo os dois não falavam a mesma língua e, quando se deram conta que toda aquela vida havia ruído, era tarde demais. Aquele momento perdido, terrível, onde os amantes se descobrem inimigos.

Bam! A porta fechou com um barulho alto. E ele voltou para a realidade.

"O fim de um casamento", ele se virou para o amigo, "o fim de qualquer relacionamento é um pouco como a morte, acho". O monge o observava, parecendo concordar com um leve aceno de cabeça. 

"Porque fica o resíduo", ele continuou. "Fica um espólio melancólico que não pertence a ninguém, uma herança que ninguém quer".

O monge continuou em silêncio.

"O que a gente faz com aquele monte de fotografias?", ele prosseguiu. "Os discos, livros, tudo que se compra juntos?". "Com que amigos cada um permanece?". Ele pausou por um instante. "Mais, hoje em dia, o que fazer com todas as implicações sociais, reais e virtuais?"

Suspirou.

"A vida tem ficado cada vez mais difícil", continuou olhando para o horizonte. "Quanto mais a gente inventa, quanto mais longe a gente vai, mais difícil é reinventá-la quando isso é algo praticamente obrigatório".

O seu amigo interrompeu os seus pensamentos. "Onde você quer chegar com isso? Honestamente?".

Ele se virou para o monge, um sorriso sincero e desarmado no rosto. "Não tenho a menor ideia"

Os dois riram, juntos. "Talvez algumas perguntas realmente não tenham resposta", ele disse.

Ao que o monge rebateu. "Talvez algumas perguntas nem devessem ser feitas". 

A verdade é que ele estava cansado daquilo. Daquela... angústia burguesa. Algumas histórias tem finais felizes; outras finais tristes. Algumas simplesmente não tem final algum

Era isso. 

* * *

Abraçou o seu amigo por alguns instantes. O barulho das folhas envolvendo o parque numa sinfonia nostálgica. O sol aquecia o seu rosto e ele gostava de estar ali, cercado por toda aquela vida perfeita e caótica, com cheiro de mato e barulho de patos. 

De olhos fechados ficava mais fácil se fazer acreditar que as coisas não eram tão complicadas quanto pareciam ser. Ficava mais fácil se sentir feliz. Mesmo que isso não fosse verdade.

"Obrigado, meu bom amigo", disse ao monge. "Obrigado"

E, enquanto uma lágrima solitária despencava, irrefreável, pelo seu rosto, imaginou o rosto do monge, aquele sorriso sabichão de quem tinha todas as respostas. Ele estaria sorrindo, ele pensou. Ele estaria sorrindo. Como sempre fazia.

Achou por bem fechar os olhos novamente. De olhos fechados ficava mais fácil esquecer do barulho, dos vidros estilhaçados, dos pneus cantando no asfalto, do gosto do sangue em sua boca. De olhos fechados ficava mais fácil acreditar que o seu melhor amigo estaria para sempre ali. 

Acendeu um cigarro, saboreando por um instante fugaz a névoa acinzentada que tomava o seu rosto, garganta e pulmões. E seguiu seu caminho.

"Algumas histórias simplesmente não tem final algum".

"NÓS ACEITAMOS O AMOR QUE ACREDITAMOS MERECER"

Então, de repente, eu esbarro num filme sobre o qual eu não depositava muitas expectativas. Longe disso, para falar a verdade.

Foi assim com "The perks of being a wallflower". Eu achava que era um filme qualquer, sobre a dor de ser um adolescente. E, de certa forma, é sobre isso que este filme pretende falar. Mas, ao longo da sequência de eventos que vão se desenrolando na tela, descobrimos uma série de novas camadas e, a medida que vamos cavando mais fundo, o filme vai nos mostrando novos tons e reflexões que acabam remetendo não apenas ao sofrimento de ser jovem, mas à complexidade de existir, pura e simplesmente.

O elenco principal, um quase triângulo amoroso formado por Ezra Miller (de "Kevin"), Emma Watson e Logan Lerman (precisamos ficar de olho neste menino!!), está no centro de uma série de reflexões fundamentadas no limbo de ser velho demais para algumas coisas e jovem demais para outras. 

Emma Watson e Ezra Miller estão ótimos como dois "irmãos perdidos". Mas é em Logan Lerman que precisamos prestar atenção. Este rapaz irá longe...

Charlie (Lerman) está no seu primeiro dia no colegial e acaba encontrando nos meio-irmãos (e veteranos) Patrick (Miller) e Sam (Watson) seus primeiros grandes amigos. Sabemos que Charlie ainda está se recuperando de um grande trauma e a sua fragilidade é evidente; um menino silencioso, sensível e que simplesmente sobrevive cada novo dia.

Juntos, estes amigos vão descobrindo experiências juvenis que se desenrolam ao redor de drogas, bebida, a descoberta da sexualidade e, simplesmente, a completa falta de ideia do que se fazer com a vida, até entendermos, nos instantes finais, a essência da perdição de Charlie, de sua fragilidade e sensibilidade e a razão pela qual esse aspirante a escritor caminha sobre o abismo...

Não há muito o que contar sobre "The perks of being a wallflower", esta história sobre os garotos e garotas menos populares da escola sem correr o risco de estragar as surpresas. Os excluídos, os invisíveis, os irrelevantes, sob a sombra dos garotos e garotas "legais".

O que posso dizer é que este é um filme sensível, muito bonito e bem feito (e com uma trilha sonora perfeita), onde há uma poética reflexão sobre a complexa tarefa de ser, de se encontrar um lugar mas, basicamente, de se descobrir para onde se está indo. 

Ao final, é o somatório de lembranças que nos forma, que nos transforma em alguma coisa e, ao documentarmos a passagem do nosso tempo, vamos percebendo - meio sem perceber - que também estamos trilhando um caminho e fazendo escolhas. A ordem natural das coisas.

Uma história sobre a difícil tarefa de ser jovem...

Porque sim, nós somos este somatório de lembranças. Sim, nós fomos um dia os jovens de 16 anos que eventualmente se tornaram pais e mães de alguém. Mas, ao mesmo tempo, nós também podemos "ser  infinitos".

E heróis.

sábado, 4 de maio de 2013

PARA VER E OUVIR: ELIS REGINA ("O BÊBADO E A EQUILIBRISTA")

MOÇA COM TATUAGEM SEM NOME

Uma alça do seu sutiã, de cor água-marinha, deslizou, delicadamente por cima do ombro, enquanto ela erguia os braços para amarrar os cabelos castanhos avermelhados num rabo de cavalo preguiçoso. Ela vestia uma camiseta regata velha e um par de shorts curtos que revelavam pernas de desenho bonito, onde uma tatuagem curiosa habitava a sua batata direita. Uma daquelas dançarinas havaianas. Aquelas dançarinas sensuais, com saias de folhas e colares coloridos, que tinham um nome, ele sabia, ele sabia. Só não conseguia lembrar qual.

E ele ficou ali, observando uma gota de suor solitária que percorria um caminho sinuoso do cotovelo dela até se perder para sempre em sua axila. Ela sorria, num misto de alegria, gratidão e certo desconforto - destes que se sente quando se recebe ajuda de um estranho. E, como ambos seguiam naquela mesma direção, decidiram voltar a correr juntos. Porque não?

* * * 

Minutos antes ele a encontrou ali, no meio do chão, como se ela estivesse se sentindo mal. As mãos espalhadas, como se fosse estampar o seu nome na Calçada da Fama. Ele interrompeu a sua corrida, retirou os fones de ouvido e foi ao encontro da moça estranha no meio do seu caminho. 

Mas ela não estava passando mal. Havia apenas deixado cair uma chave na grama e precisaria dela para voltar para casa, sem ter que se submeter ao suplício de convocar um chaveiro. Mais, antes disso, achar alguém com um telefone. E possivelmente dinheiro. Em resumo, ela precisava achar aquela chave. Seria simplesmente mais fácil.

E os dois ficaram ali, ajoelhados no chão, como duas crianças brincando na areia. Ocasionalmente se olhavam, sorrindo, aquele estranho e absurdo encontro de estranhos. Sequer haviam dito os seus nomes, ele então percebeu; apenas procuravam por uma chave pequena, pouco menor do que um polegar, fina e dourada. E solitária.

Ele achou que não lhe cabia questioná-la sobre não usar um chaveiro ou acomodar melhor uma chave tão importante. Preferiu calar e apenas ajudá-la.

O sol esquentava as suas costas enquanto ele garimpava de mãos livres entre grama, pedra e, basicamente, sujeira. Mas isso não importava - não naquele momento. Porque havia algo bonito naquilo ali; em estar ali. Em ajudar aquela estranha a encontrar a sua chave. Algo que ele poderia escrever a respeito depois. Daria nomes aos dois, um passado - talvez um futuro? -, uma história enrolada na casualidade daquele encontro matutino, com cheiro de rua e som de música abafada, ecoando do seu tocador não desligado.

"Eu amo essa música", ela dizia ocasionalmente, quando reconhecia uma de suas canções. E cantarolava um trecho ou outro.

Ao que ele, pela terceira ou quarta vez, lembrava que não havia desligado o aparelho.

"Deixa ligado", ela sorria, "é sempre melhor com música. Qualquer coisa é sempre melhor com música"

Ela era bonita, ele pensava. Bonita para ele, pelo menos, com seus braços finos, povoados por uma fina penugem dourada, e dedos delicados, olhos expressivos sob grandes sobrancelhas e nariz aquilino; aqueles traços beduínos que chamavam a sua atenção, não havia jeito. E ele gostava de observá-la procurar pela sua chave, alheia ao seu observador. Ela mexia na grama sem cerimônia, sem receio de estragar as unhas, fazendo a sua dançarina havaiana dançar todas as vezes em que ela pulava, como uma gata, certa de ter encontrado o que procurava.

"Rá!", ela gritava. Mas era em vão.

Talvez pela extensão de uns vinte minutos os dois ficaram ali, crianças sob o sol, procurando por uma órfã chave dourada. Usaram a ocasião para uma troca de efemeridades educadas, como endereço, cidades-natais, profissões, prazeres e planos para o domingo. E ela ria das bobagens que ele dizia para preencher os silêncios que surgiam abruptamente. 

"Poderia ser a sua aliança de casamento", ele a interrompia. "Pensa como seria difícil de explicar".

"Ou dinheiro", ela sorria. "Acho que eu ficaria mais triste de perder dinheiro".

Os dois sorriam, num parlamento sem frases, e voltavam a procurar.

Eventualmente, a chave surgiu brilhante por entre os seus dedos. E ela gritou, radiante, como se ele tivesse achado um tesouro. Ele limpou o objeto na barra da sua bermuda e entregou de volta, depositando-a cerimonialmente sobre a palma da mão dela, com um sorriso gentil e uma mesura cortez, já se despedindo. 

Mas os dois estavam correndo na mesma direção, ela observou. Decidiram continuar a correr juntos e, na extensão de mais um bom punhado de minutos, seguiram em silêncio, sob o compasso dos dois pares de pernas que ganhavam a calçada com uma sincronia própria daquele encontro; delicadamente descoordenada. 

Ocasionalmente ela virava o rosto e oferecia um sorriso, embora na grande parte do tempo seguisse séria pelo percurso, com o seu rabo de cavalo vermelho rodopiando atrás da sua cabeça e a dançarina havaiana mexendo em sua batata.

E ele seguia, ao seu lado, com a sua música servindo de trilha sonora daquele encontro improvável. Vez ou outra seus olhares e sorrisos se entrecortavam e o seu coração engasgava por uma fração de segundo; e ele ficava na dúvida se era somente pelo esforço físico. 

Ah, a beleza dos encontros improváveis.
Ah, à beleza dos encontros improváveis.

Brindaram com água de coco de caixinha, longe de estar gelada, após aquela dança. Bochechas rosadas pela corrida, o suor  grudando o cabelo atrás do pescoço e, como no filme, ele pensou se ela acharia esquisito se ele a beijasse ali, naquele momento.

"E se nós estivermos em algum lugar do futuro?", ele pensou, "E estes outros nós, aqui, agora, formos meramente matéria das nossas lembranças? Então que mal haveria em te roubar um beijo?".

Aquela agridoce metafísica.

Abraçaram-se. Mais demoradamente do que a etiqueta de um encontro como aquele permitiria e se prometeram correr juntos novamente. No domingo seguinte, talvez, como saber? Deram-se as costas. E então desapareceram, no emaranhado de caminhos anônimos que os cercavam.

"Dançarinas de hula", ele então lembrou. "Dançarinas de hula"

E sorriu, enquanto seguia seu caminho de volta para casa.

ELA EXISTE...

No mundo há a guerra, a fome, a violência e todo o tipo de insegurança civil, militar, política e religiosa. Pode-se dizer que não é dos lugares mais tranquilos. Mas, ao mesmo tempo, no mundo também existe Jessica Chastain. Ela existe, é de verdade. Os outros problemas ficam mais fáceis de se lidar quando se sabe que Jessica Chastain existe.

quarta-feira, 1 de maio de 2013