terça-feira, 6 de setembro de 2011

A FORTALEZA

"Eu não queria te acordar. Mas eu realmente precisava te dizer uma coisa". 

* * *

O toque contínuo fez com que ele levantasse da cama num pulo, assustado. O coração na boca, o pulso disparado, aquela sensação desconfortável de ser acordado repentinamente. Atendeu o telefone e, por longos instantes, ouviu calado o que a voz do outro lado da linha tinha para dizer. Mexia a cabeça, na cadência de um metrônomo, como se algo ali não fizesse sentido. Ora concordava, ora coçava a cabeça intrigado. Sem dizer uma palavra, encerrou a ligação; um bip inconfundível denunciou o fim da ligação no telefone. Descansou o aparelho na cômoda ao lado da cama, pôs as mãos no rosto.

E chorou copiosamente.

* * *

Os dias começavam sempre da mesma forma. Três toques do despertador - uma agradável música de relaxamento - que o ajudavam a despertar como uma criança. Movimentos lentos, curtos e precisos enquanto navegava da cama ao banheiro, do banheiro à cozinha, da cozinha ao banho. No caminho, café forte, cereais, o noticiário local, breve observação de e-mails e um longo banho quente, destes que inundam o banheiro numa névoa quase mística. Sempre era assim.

No dia do seu aniversário, porém - justo aquela manhã - observou-se por mais tempo que o necessário no comprido espelho do quarto. Apalpou o rosto, mexendo sob os olhos, e passou o corpo em revista, descobrindo o óbvio: não estava nenhum dia mais jovem. O corpo, apesar de ainda ostentar um pouco das características de dias mais saudáveis e atléticos, já denunciava a flacidez que chega com a passagem dos anos. Sobras onde antes só havia ruas e avenidas de músculos bem definidos. Fios prateados onde só havia um mar de cabelos castanhos escuros, como avelã. Ossos que já começavam a doer. Exames recentes que exigiam um pouco mais de cuidado.

Decidiu que correria, todas as manhãs, a partir daquele dia.

Retirou um tênis do armário, tão novo que ainda portava a etiqueta de compra. Caro. Vestiu bermuda, camiseta, sacou um tocador de músicas digitais. E seguiu para a rua onde foi inundado pela aquela explosão de sensações que se tem quando se ganha a rua no começo de uma manhã: buzinas, sons, cheiros, pessoas, vento, barulhos desconexos como uma orquestra na qual cada músico tem um plano diferente a seguir.

E seguiu em frente. A passos largos, estimulados pela música que ressoava em seus ouvidos. Sentia-se bem, dono de si, dono do mundo. Os carros passavam correndo ao seu lado, na rua, enquanto ele desviava dos obstáculos móveis que vinham na direção contrária, carregando suas sacolas e caixas. Ele se sentia leve, como se flutuasse, enquanto cruzava pelos transeuntes anônimos na sua corrida.

Sentia o suor escorrendo pelo rosto, o cabelo molhado, pesado sobre a cabeça, os pés e joelhos doloridos após o território vencido. Mas ele sentia aquela embriaguez da endorfina o levar mais longe, mais adiante, além de mais obstáculos. Chegou ao pier, quase 15km distante da porta da sua casa, onde parou para contemplar o mar. A água quebrando lentamente nas pedras, as gaivotas, aquele cheiro salgado tomando o seu pulmão. Era um dia bonito, ensolarado em que ele decidiu viver melhor. Era o seu aniversário.

Decidiu correr de volta.

* * *

A sirene alta parecia não fazer muita diferença diante daquele mar de veículos engarrafados que até tentavam abrir caminho inultilmente. A ambulância conseguiu, com muito sacrifício, se desprender da rua engasgada e ganhar uma avenida mais aberta, onde era possível correr para salvar a vida do homem que havia sido encontrado desacordado em seu apartamento. Suspeita de infarto. Lá dentro, tentativas patéticas de reanimação. O homem não respondia. Mas o carro seguia o caminho frenético.

* * *

A música alta, em seus ouvidos, o deixou desatento. Ao cruzar uma rua, quase foi atropelado por uma ambulância que seguia em disparado, após vencer uma série de carros presos num congestionamento. Parou, recuperou o fôlego e viu o carro branco desaparecer numa esquina adiante. Alguém ali estava sendo socorrido. Sentiu aquela mistura confusa de compaixão e felicidade por não ser ele ali, à beira da morte. E seguiu seu caminho.

Não que estivesse numa crise de meia idade. Não necessariamente. Havia se divorciado recentemente, é verdade, e comprado um carro esportivo, feito uma tatuagem. Bom, talvez estivesse. Mas ele não era um destes homens comuns, de existências comuns. Ele era especial, sabia disso, porque enxergava a existência que há além das entrelinhas. Não era um homem medíocre. Só estava enfrentando a metade da jornada ao seu jeito: descobrindo que correria todas as manhãs para retardar o passo da outra metade adiante.

E estava feliz. Pleno. Limpo. Leve. Na madrugada passada decidiu fazer algo importante. Enfrentar o seu pai. Iria completar 50 anos na manhã seguinte e decidiu dizer ao seu pai tudo o que sempre quis, sem medo; tudo o que sempre esteve preso em seu peito. Uma confissão, uma distribuição de verdades sobre aquele homem que havia tiranizado a sua vida, de sua mãe e irmãos. Aquele gigante, o colosso de sua infância que aterrorizava as crianças com olhares, meias palavras e mãos pesadas. Aquele homem de quase 90 anos, doente, e que seria atacado sem misericórdia no ocaso de sua vida. Seu presente de despedida, o que ele levaria para o túmulo. Aquela tonelada de palavras engasgadas que nem a velhice não seria capaz de defendê-lo. E por horas disse ao seu pai tudo que sempre quis dizer. E desligou. Um corte seco, bruto, um ponto final.

"Eu não queria te acordar. Mas eu realmente precisava te dizer uma coisa".

Havia chegado ao fim aquele tempo de trevas. A fortaleza estava no chão.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

ILUSTRANDO

São Jorge, o antiquíssimo afresco nas cavernas da Capadócia (Turquia). Curioso que esta foto tenha chegado às minhas mãos hoje, primeiro dia de Setembro. Não tem jeito, Setembro tem sempre algo de especial.