quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

MOÇA DE OLHOS LILASES

Havia algo especial a respeito dela. Não que isso fizesse alguma diferença - de fato não fazia, porque naquele momento tudo a respeito dela parecia especial.

Ele gostava da maneira como ela cruzava as pernas, um quê de impaciência e desleixada elegância; um ar meio francês a respeito de como as suas mãos pousavam sobre os joelhos. Joelhos pequeninos, que se projetavam com delicadeza da barra da saia de forro vermelho que se derramava pela cadeira. 

Ele gostava do desenho que os ossos do colo faziam sob o tecido delicado da sua blusa. Um tom azulado que combinava com o caimento do seu cabelo. Aquela vastidão de fios ondulados, quase desgranhados, em ouro velho. Aquela moldura adequada para o seu rosto de gato, equilibrado sobre um pescoço esguio, de marquesa. De amante.

Ela conversava com algumas pessoas assuntos de pequena importância. Ocasionalmente rindo, sorrindo, dominando o assunto, epicentro de todas as questões. Havia uma energia ao seu redor que parecia guiar os olhares, dentro e fora da sua mesa. Ela chamava atenção com a competência das pessoas que não desejam ser notadas.

Qual seria o seu nome? Ele começou a fazer este jogo solitário, embaralhando uma centena de possibilidades em sua mente. Queria saber mais sobre aquela mulher. Seus destinos, seus gostos.

Queria que ela olhasse de volta.

Não que ela fosse perfeita. Não era. Ela não era a mulher mais linda do mundo, definitivamente não; tampouco tinha o corpo perfeito. Aliás, curvas leves sob a roupa denunciavam que ela era destas mulheres que se libertaram; que descobriram que ou se é magro ou se é feliz.

Mas ela tinha um olhar sincero, um sorriso iluminado e uma voz adocicada que faziam um convite irrecusável. E o fato de ela não ter ideia que ele a observava deixava aquilo perfeito, meio platônico, meio secreto.

Aquele delicioso desencontro urbano.

Havia algo a respeito de como ela tocava o seu rosto. Uma delicadeza meio mágica conduzida pelas pontas dos seus dedos. Ou como mexia no cabelo, sempre que ele lhe cobria um dos olhos. Aqueles olhos lilases. Era difícil decifrar o que habitava aquelas duas moedas pequeninas, janelas de um país secreto. Somente dela, guardado.

E então ela se levanta, as mãos ocupadas com o celular. Aquelas respostas inadiáveis, como todas as respostas de celular. As pernas bonitas, encaixadas sobre sapatos elegantes. Passos decididos de quem tem plena certeza de onde se está indo. Uma bolsa pequena sob um dos braços enquanto o outro enroscava-se num felizardo sem nome.

Qual seria o cheiro da sua pele? Ou o toque dos seus lábios? Que marcas estariam escondidas sob a roupa? Que caminhos? Que histórias? Aquelas perguntas sem resposta.

E então ela foi embora, sem jamais saber que - pela agridoce eternidade daqueles momentos fugazes - sequestrou os pensamentos honestos de um observador acidental.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

ILUSTRANDO

A arte de Marjane Satrapi.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

AMOR PLATÔNICO

Contrariando a voz da maioria, eu não tenho um fraco por loiras. Tampouco pela beleza óbvia, estampada, que qualquer um enxerga e aprecia. A bem da verdade, sempre tive um fraco pela beleza que ninguém vê. Gosto de narizes, sobrancelhas, dentes tortos ou proeminentes (de forma charmosa, claro), sinais espalhados feito constelação, estas coisas que nem todo mundo dá muita bola. E, quando o assunto é cabelo, sempre são as ruivas e as morenas que me roubam o olhar. Me agrada a coisa meio étnica, com quê de estrangeirismo, de terra distante, de mistério. Cabelos de fogo, narizes beduínos. É esta a beleza que me sequestra. Mas toda a regra sempre tem as suas exceções, claro, e também eu não fujo delas. Bonnie Somerville é uma destas exceções - e uma exceção com E maiúsculo, porque é justamente a sua beleza óbvia que me encanta, bem como seus cabelos cor de areia que, há pouco, desdenhava abertamente (pode ser a semelhança com a minha paixonite incurável Kirsten Dunst também, sabe-se lá). Especialmente, Bonnie Somerville como "Mona", do seriado FRIENDS. Não sei, talvez seja pela insistência - após a quarta (ou seria quinta?) maratona, acabei descobrindo uma paixão platônica e inesperada por Mona... Seja pela beleza escancarada, o jeito doce ou o ar de garota perfeita, destas que passam pela nossa vida e a gente deixa escapar. Como um fã ardoroso de FRIENDS - da pior categoria, a mais insuportável de fãs (os que já dizem as falas antes de elas acontecerem) - torcerei eternamente por Ross & Rachel, claro, sempre. Mas, hoje em dia, no fundo no fundo, bem que eu gostaria de ver como seria se o Ross escolhesse a Mona. 

Eu escolheria.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

sábado, 26 de janeiro de 2013

ILUSTRANDO

Gustav Klimt - "Le Amiche (1916/17)"

PARA VER E OUVIR: KT TUNSTALL ("BLACK HORSE AND THE CHERRY TREE")

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

BUCKET LIST


Brincar na grama com um leão E um tigre adultos. Definitivamente estaria no meu top 5 de coisas para se fazer antes de morrer.

É POR ISSO QUE CORRO

Eu gosto de correr. Não pela prática esportiva em si, ou por estética ou mesmo pelas consequências para a minha saúde, sempre tão alardeadas pelo noticiário. Como a Fernanda Young, eu gosto de correr porque sou triste, ou simplesmente porque gosto de pizza. Ou ambos, sei lá. Há algo transcendental, quase mágico, naquele momento fugaz em que os meus pés tocam o chão e a minha mente parece fugir para outro lugar. A música alta nos ouvidos martelando o compasso de uma cadeia completamente desconexa de memórias, planos, ideias. E quando menos percebo, às vezes vejo que os meus olhos estão pesando com um punhado de lágrimas sinceras que escorrem pelo meu rosto, sem pudor. Disfarçadas pelo suor, elas se perdem no meu corpo, vagueiam pelas bochechas, pescoço, misturando-se à roupa, e evitando também que eu seja julgado por elas. Então eu as deixo caírem, soltas, livres, libertas. E não são lágrimas de tristeza, melancolia, absolutamente. Tampouco de alegria genuína. Há algo de saudade ali, de falta, de lembrança. De vontade. Algo de limpeza, como se fosse a transpiração da minha alma. São lágrimas catárticas, que me desprendem do plano material e, não fosse o movimento da rua ou a possibilidade de perder o equilíbrio, deixaria os olhos fechados o tempo todo. Por isso eu corro e dou também um descanso ao espírito que encontra, naquele momento quase metafísico, a sua própria chance de respirar.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

domingo, 20 de janeiro de 2013

BEATRIZ E A DÚVIDA

Ela despertou na madrugada com um susto. Aflita, o coração galopando em seu peito. Observou os números que brilhavam feito verde neón ao seu lado: 4:45, 4:45, 4:46. Sentou-se na cama, os pés quase encostando no assoalho frio. Apoiou o rosto em suas duas mãos, respirando fundo, tentando se acalmar. Já não se lembrava mais como era ter uma noite de sono contínua. Parecia um sonho impossível.

Observou por alguns instantes o seu marido dormindo profundamente. Aquela respiração pesada, suas costas arqueando em movimentos longos. Virou-se para lhe acariciar as costas, mas havia um magnetismo que a impedia de fazer isso. Quando menos percebeu, tinha os punhos fechados e um desejo quase incontrolável de sufocá-lo com o travesseiro.

"Meu Deus, estarei enlouquecendo?"

Caminhou lentamente em direção ao banheiro. Acendeu a luz, encostou a porta e observou-se no espelho. O peso dos anos, ali tão evidentes num corpo acordado no meio da noite. Os cabelos desgrenhados, povoados de fios grisalhos. Os olhos cansados, linhas marcando o seu rosto. A pele mais flácida, os quilos que vieram com o tempo e nunca mais a abandonaram. Acariciava-se, como se pudesse confortar a si mesma naquele miasma de angústia que parecia engolí-la. 

Sentia a água gelada molhando a sua testa, escorrendo pelos olhos, umedecendo seu cabelo. Queria ficar ali para sempre, apoiada na pia. De olhos fechados, imaginava-se com 20 anos, tomando banho de cachoeira, rindo a plenos pulmões com as suas amigas. Imaginava-se jovem, longe daquela vida, alheia aquelas decisões, àquela rotina que a fazia desaparecer a cada novo dia. Como Veneza, pensava. 

"Estou submergindo".

Foi em direção à sala. Sabia que não voltaria a dormir mais. Faria café, veria o sol nascer. Como fazia há meses. Parou alguns instantes na porta do quarto do seu filho. Abriu vagarosamente para não acordá-lo. E ele estava ali, sonhando, inocente, feliz. Aquele quarto de heróis e esportes, de animais da savana e livros que ela nunca havia conseguido ler para ele. Por falta de tempo. Ou de vontade.

A luz da rua brincando de tapeçaria. Os brinquedos espalhados pelo chão, o seu peito arqueando, vagarosamente. Sentiu desejo de abraçá-lo, enquanto enxugava uma lágrima solitária que escorria do seu rosto. Mas também sentia raiva de si mesma, uma raiva visceral, porque sabia que se pudesse voltar no tempo gostaria de não ser mãe. 

"Onde me perdi no caminho?"

Amarrou o robe, voltou a caminhar pela sala, observando os detalhes daquela casa que já não reconhecia como sua. Os porta-retratos, os quadros na parede, os utensílios de cozinha, objetos que havia ganhado como presente de casamento e que ainda estavam ali fechados, inúteis, patéticos. Como aquele dia que pouco a pouco se apresentava no horizonte.

Sentou no sofá e deixou-se afundar nas almofadas. Pensou em nuvens, em areia movediça, em histórias de capa e espada, de heróis e princesas, de um tempo em que acreditava que seria raptada e levada num avião monomotor para um reino distante. Abria os olhos e lá estavam as paredes imóveis, o tapete, as cortinas, as contas que deveriam ser pagas. Voltava a fechar os olhos, querendo desaparecer.

Continuava lá.

Pensou no seu plano de fuga. Deixaria somente um bilhete vago, para não ser encontrada. Lembrou do tempo em que escrevia, dos seus poemas, do tempo em que convertia sua dor em arte. Havia esquecido os caminhos daquela alquimia como, de alguma forma, também havia esquecido de quem era. Sim, uma boa mãe, uma boa esposa, uma profissional reconhecida.

"Mas quem sou eu?"

Rabiscou um punhado de palavras no papel. Com tom de despedida, "sei que vocês compreenderão", e então amassava a folha, arremessando-a na lata de lixo, como basquete. Avaliava, fazia contas, matemáticas emocionais, materiais, físicas e metafísicas. 

De repente, como numa brincadeira consigo mesma, via-se sozinha, sem filho nem marido, nem ninguém, caminhando anônima numa rua qualquer de uma cidade sem nome. Sorria, sentia uma felicidade obscena, uma alegria que parecia romper o seu peito. Uma ansiedade. Não conseguia evitar pensamentos mais tenebrosos, também, claro, mas rapidamente fugia deles como se passasse uma borracha em sua mente. 

"Não, isso não. Isso jamais".

Era difícil explicar, para si mesma, aquela tristeza, aquele vazio, aquela melancolia absurda. Aquele abismo. Ela era uma boa mulher, sabia disso. "Eu era tão especial". Sentia-se prisioneira de um destino do qual não conseguia se desvencilhar; como se estivesse pagando uma pena. Como se odiasse cada centímetro daquela vida. Sabia, em verdade, que as coisas não eram exatamente assim e que havia alguma felicidade, claro que havia. Sempre há. Mas era aquela felicidade superficial, aquela maquiagem que esconde o mofo, aquele choro engasgado sob o riso. 

Lembrava de coisas felizes. Suas fotografias mentais. Alguns ex-namorados, amigos que acabaram desaparecendo, viagens, vestidos em que coube um dia. Os olhares, o desejo. "Eu era amada". Olhava para as pontas dos seus dedos, pensava em versos de músicas e em cartas de amor. Talvez não houvesse o destino ideal. Deve ser algo de filme ou de best-seller. Conformava-se.

De pé, na cozinha, de costas para a sala, ouviu o seu marido acordar. O barulho da televisão denunciava que o seu filho também havia levantado. Aquele bombardeio de perguntas e pedidos, de demandas, de coisas que ela tinha que fazer. Aquela lista de tarefas que ela deveria resolver, sozinha, naquele novo dia.

Concordava, em silêncio, de costas. O café aquecendo a palma das suas mãos, o líquido quente descendo pela sua garganta, impedindo-a de gritar. Enxugou o canto dos olhos, beijou seu filho, despediu-se do seu marido e suspirou ao ouvir o barulho da porta fechando atrás de si.

E então refletiu, com a mão sob o queixo, se deveria primeiro ir ao supermercado ou à lavanderia.

ILUSTRANDO

Gustav Klimt - "Mulher com chapéu e boá de penas 1909"

PARA VER E OUVIR: SNOW PATROL ("OPEN YOUR EYES")



"I want so much to open your eyes
'Cause I need you to look into mine
Tell me that you'll open your eyes
Get up, get out, get away from these liars
'Cause they don't get your soul or your fire
Take my hand, knot your fingers through mine
And we'll walk away from this dark room for the last time"

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

ILUSTRANDO

Arte de sonho de Shintaro Ohata, que mistura aquarelas com esculturas.






SOBRE MENINAS NERD











[perdidamente] Apaixonado por cada uma delas.

SPLIT SCREEN HAPPINESS


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

"NUM PAÍS DE ILUSÃO QUE NUNCA VI"



A nossa casa
(Florbela Espanca)

A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão, que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A CARTA

A folha de papel estava ali, branca, pedindo para ser tatuada. Implorando por segredos compartilhados, por confissões, despedidas, palavras de amor - ou de ódio. Solitária, nua, ela não exigia absolutamente nada. Qualquer coisa, uma palavra que fosse, já bastaria. Que alguém pusesse algo na superfície do seu corpo, fossem ruas quaisquer sem muita elaboração, ela ficaria agradecida. Queria somente ser coberta, desbravada, desenhada. Parecia pulsar, sobre a mesa, sentindo o magnetismo da caneta ao seu lado, logo ali, a poucos centímetros. Uma atração que reverberava por todos os cantos da mesa. Caneta e papel.

Ele ponderou por um longo tempo se deveria ou não fazer aquilo. Sentava-se, a caneta em punho, respirando fundo. E então levantava. Um cigarro, uma taça de vinho, uma música tocando alto no computador. Cantarolando. E voltava a sentar na cadeira. As pontas dos dedos tocando levemente o papel, tamborilando, palavras começando a se desenhar em sua mente. Então expressões, parágrafos, provocações, como uma sinfonia. Os sons da escrita ganhando corpo em seus pensamentos.

Mas não tinha certeza. Hesitava.

Foi ao banheiro pela centésima vez, hipnotizando-se com o barulho da chuva despencando violentamente sobre a pequenina janela acima do chuveiro. Pá. Pá. Pá. Pá. Pá pá. Pá pá pá. Olhos fechados. Longos suspiros. A água da pia escorrendo gelada pelos seus dedos, evitando ao máximo voltar para a mesa. Molhou o rosto, observou-se por alguns minutos, tocando seu rosto, tocando seu reflexo.

Sim, ele deveria escrever aquela carta. Era hora. Passeava pela sala, fingindo não ver os instrumentos ali, esperando por ele. Papel e caneta. Era hora, ele sabia, era hora.

Escancarou a janela do apartamento, deixando seu rosto ser banhado pelo vento gelado, úmido, que vinha da rua. Aquele cheiro de terra, aquelas janelas fechadas ao seu redor, protegendo-se. Sentia as gotas da chuva, os sons, a cidade se movimentando sob suas pálpebras levemente cerradas.

Sentou-se então, com calma, seus olhos se perdendo no horizonte cinzento da sua janela aberta. E então deixou que sua mão agisse por conta própria. As palavras surgindo, gradualmente, fundando famílias, estabelecendo conexões sobre o papel. Primeiro, segundo, terceiro parágrafos. Uma sequência quase elétrica de reflexões, que jorravam das pontas dos seus dedos, como feitiçaria. Havia muito ali, um mundo a ser contado.

E as letras iam perdendo a timidez, como trepadeiras, conquistando cada canto da folha de papel. Ele estava escrevendo. Enfim, de uma vez por todas. Aquela carta. Não havia mais volta. Estava tudo ali, escancarado. Aquela história sendo narrada em detalhes, tudo revelado; sentia o peso das suas costas evaporando com cada gota de tinta que escorregava das suas unhas. Estava liberto, cada vez mais liberto.

Horas se passaram. Ele parava, relia, optava por palavras mais adequadas, movimentava frases inteiras, trocava parágrafos de lugar. Aquela engenharia de ideias. Estava dizendo exatamente o que queria? Da forma como queria? Tinha a impressão que sim. Continuava a escrever, quase em transe, as letras sendo rabiscadas com velocidade, como num medidor de abalos sísmicos.

Uma torrente de palavras caladas. Sua obra-prima.

O dia já havia dado lugar à noite quando ele enfim pôs o papel sobre a mesa. Os dedos doloridos, quase em carne viva, pela pressão ininterrupta da caneta sobre a sua pele. Leu, releu, voltou a ler mais uma vez. Um novo cigarro, as últimas gotas da garrafa de vinho sendo quase espremidas da garrafa, despencando sobre a taça, gotejando como sangue de um corte recente. Feito homeopatia.

Ela estava pronta. A carta estava pronta. E era perfeita. De ponta a ponta. Da primeira vírgula ao ponto final. E dizia, sim, dizia tudo o que ele queria dizer. Comunicava o caos que envolvia os seus pensamentos. Havia uma construção ali, fundada naquela folha de papel. Aquela centena de palavras escritas com letra miúda, algo de lei, algo de religião, algo de política. Um código. Sua alquimia.

Segurou o papel entre os dedos, sorrindo. Feliz. Orgulhoso. Ele havia se superado.

Caminhou a passos lentos em direção à janela. Sorria, enquanto a chuva voltava a beijar o seu rosto. Segurava a carta como se fosse um discurso, erguendo o papel com as duas mãos, em frente ao seu corpo, feito algo sagrado, cerimonial.

E então rasgou-a em dezenas de pequenos pedaços, soprados pela janela, como pombas microscópicas, voando sem rumo, até se perderem na água da chuva que inundava as paredes do prédio.

Suas palavras virando coisa. E então desaparecendo para sempre.

ILUSTRANDO

Desenho japonês de 1584 retratando Miyamoto Musashi

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

PARA VER E OUVIR: ANGUS & JULIA STONE ("SANTA MONICA DREAM")

ILUSTRANDO

O trabalho icônico de Mr. Frivolous, artista londrino que mistura colagens, fotografias, desenhos e pop art com resultados incríveis.




SANTA MÔNICA

Ele acordou com o som dos seus dedos ao violão. Acordes simples, melodiosos, que combinavam com os seus olhos, abrindo preguiçosamente para aquele novo dia. Não havia sido um sonho. Ou talvez tivesse sido. O fato é que ela estava ali, ainda, olhando pela janela, perdida em seus pensamentos, sussurrando versos quaisquer, sem muita conexão.

"Em algum lugar, em algum lugar no futuro...
Você está lá, em algum lugar."

Ele ficou ali, parado, olhando para ela pelo tempo que pareceu uma eternidade. Seu corpo, a tatuagem pequenina no seu calcanhar esquerdo, curvas bem desenhadas e escondidas sob uma camiseta surrada com a estampa de Liza Minelli. Aqueles cabelos compridos, desgrenhados, escuros feito petróleo; o rosto sardento, os olhos verdes azulados, algo de mar, algo céu, algo de abismo. Ela era linda, feito uma aparição.

De que mundo ela vinha? De que outro mundo?

Havia um santuário naquele quarto bagunçado. Aquele quarto pequeno. As roupas da noite anterior, espalhadas pelo chão, eles ainda tão anônimos. Seu corpo dolorido, o ouvido ainda zumbindo pelo barulho da música há muito esquecida, aquela confusa sensação de fome e embriaguez. Ou seria felicidade em seu estado puro? Ele tinha medo de beliscar o seu corpo e despertar. Mas ela continuava sussurrando à janela, ao seu violão, parando para anotar qualquer coisa num papel.

"Você está lá, em algum lugar..."

Ele lembrava de tê-la carregado, em dado momento; de ter batido o pé no canto da porta e de ter perdido as suas chaves. Ele lembrava de ter rido. De terem rido. Muito. Não sabia exatamente como haviam chegado ali, mas o cheiro dela estava em cada centímetro do seu corpo. Ele já não sabia há quanto tempo estava deitado naquela cama apertada, onde os dois mal couberam horas antes, mas sabia que não queria ir embora dali nunca mais.

O quarto exalava paixão e entrega. Mas exalava também algo rarefeito, passageiro. Como uma coisa provisória. Ela voltaria para casa dias depois, afinal, sem deixar vestígio. Para o seu irmão fuzileiro, seu pai com os seus filmes de caubói e o seu cachorro que, de todos, era quem ela parecia sentir mais falta. Ela voltaria para o seu quintal e os seus amigos. Para beber vinho no mirante. Naquela cidade onde habitavam os seus sonhos. 

Ela olhava, ocasionalmente; um sorriso de canto de boca, um olhar de curiosa intimidade. Covinhas em apenas um lado do rosto. E então voltava à ourivesaria dos seus acordes, olhos fechados, um pé mais afoito, tentando acompanhar o ritmo das mãos ao violão.

"Não quero saber onde você está hoje,
Você está lá, em algum lugar, no final do caminho
Você está lá, em algum lugar..."

Ele continuava ali, deitado, os braços servindo de apoio para o seu rosto, alheio ao fato de estar completamente nu sob o emaranhado de lençois. Contava os sinais do seu corpo, os que conseguia enxergar, os que conseguia lembrar. Fazendo um traçado do dedo do pé à ponta do queixo. Cartografia.

Sentia o gosto de sua boca, o cheiro do seu cabelo, como se estivessem ali há muito tempo. Seu coração palpitava, de empolgação e inconformação. Não entendia a essência destes encontros acidentais e porque tudo tinha que ser sempre tão efêmero. E simplesmente tão bom. Imaginava se ela também sentiria a sua falta.

"Já sinto a sua falta,
Mas você está lá, em algum lugar...
Eu sei que você está"

Ela abandonou o violão e voltou para a cama. Abraçaram-se, entrelaçando novamente os seus corpos cheios de saudade. Ela o beijava com gosto de vinho e cigarro que, naquele momento, era o melhor sabor do mundo. Sua pele estava levemente morna, do contato com a luz na janela, os pêlos dourados erguendo-se ao toque gentil das suas mãos. Ela enchendo-o de beijos, os cabelos dela cobrindo o seu rosto, fazendo-o desaparecer numa selva de árvores negras, densas e onduladas, com cheiro de verão.

Devia ser aquele o cheiro da Califórnia.

Seria para sempre.

* * * 

E então a realidade. Ele sentou na sua estação de trabalho. Uma mão sob o queixo, um longo suspiro, aquela normalidade sufocante. Bons dias educados, café esfriando na mesa, sorrisos amarelos. A monotonia dos ponteiros do relógio narrando a passagem de mais uma hora.

E aquela lembrança... fulminante como um relâmpago. Aquele vestido curto, o par de tênis sem cadarços, um olhar misterioso onde ele se perdeu por completo e o sol brincando de sombras nas pontas dos seus dedos enquanto eles se prometeram voltar a se encontrar novamente.

No final do caminho. Ou em algum lugar qualquer.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

PARA VER E OUVIR: PETER & EVYNNE HOLLENS ("SEASONS OF LOVE")


Virei fã. Esse cara é o máximo. Imperdível o seu canal no YouTube.

UMA VOZ, UM CORAL


Peter Hollens faz, sozinho, um coral para a canção "Misty Mountains" de "O Hobbit". Simplesmente perfeito.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

AMOR PLATÔNICO

Frankie, de "Alma de Poeta, Olhos de Sinatra" (Dreams for an insomniac). Gostaria de passar noites em claro ao seu lado, deixá-la ler os meus textos, ouvir as suas críticas afiadas e descobrir o universo de coisas que teríamos em comum para conversar. Livros, poemas, filmes, canções. Somos parecidos, Frankie e eu, na busca cínica e ao mesmo tempo inocente pelo "tal amor verdadeiro". Haverá mesmo uma alma gêmea para cada um de nós, Frankie? Sabe-se lá. Eu perguntaria a ela se eu também tenho "olhos como os de Sinatra" e deixaria ela navegar a minha alma, livremente. Viveríamos juntos em São Francisco. Com os pés na água. Na beirada, na baía. E tenho certeza que seríamos felizes. Porque a vida seria simples, verdadeiramente simples e feliz. Com o essencial. Ou porque, simplesmente, "já existem coisas medíocres demais na vida e o amor não deve ser uma delas".

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

PARA VER E OUVIR: THE RADIO DEPT. ("ALWAYS A RELIEF")


"It feels like our time has gone to waste
Want to feel strong and not like waste
Want to feel the illusion
The confusion"

"POR FAVOR... ACORDE"

Você já chorou um pouquinho hoje? Então vamos lá.

Esta é a história de dois cãezinhos chineses, da cidade de Zhangzhou, na província de Fuquiem. Um vira-lata ficou simplesmente desolado ao ver sua companheira ser atropelada por um carro e tentou, de todas as formas, "fazê-la acordar".

Por quase 6 horas ele ficou do lado dela, lambendo o seu rosto e empurrando-a com a cabeça, tentando de alguma forma despertá-la. Sem sucesso. Pessoas no local disseram que mesmo percebendo que ela não voltaria ele não saiu do seu lado até que ela foi retirada da rua, ficando quase meio dia sem deixá-la sozinha nem por um  minuto.

Moradores do bairro disseram que eles viviam juntos e que eram sempre vistos brincando.



terça-feira, 8 de janeiro de 2013

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

ANIMAIS E A GUERRA






E a vida prova que é linda.

ALGUÉM ME DÁ DE PRESENTE...

...por favor? Deve custar milhões de dinheiros e eu quero muito.

PARA VER E OUVIR: THE SMITHS ("PLEASE, PLEASE, PLEASE [LET ME GET WHAT I WANT]")

NÃO SEI MUITO BEM O QUE PENSAR SOBRE ISSO...


...Mas confesso que me agradou [muito].

domingo, 6 de janeiro de 2013

AMOR PLATÔNICO

Lara Flynn Boyle. Ou talvez seja apenas uma paixão fulminante por Alex, de "Threesome" ("3 formas de amar"). Mas aí é desta minha tendência a gostar das mulheres mais complicadas, mais difíceis, meio "kamikaze", como cunhou brilhantemente Woody Allen. Há uma certa rebeldia em suas sardas, na língua afiada, na alma liberta que deseja experimentar cada segundo da vida - algo que me atrai na mesma proporção que me assusta. Não sei, acho que o tempo tem me deixado mais desconfiado, mais medroso. Já não me atraio tanto pela mulher kamikaze - ou talvez tenha simplesmente me cansado da sedutora destruição. Não, quero algo mais simples. Mas fica assim o amor platônico, de quem admira, deseja, se encanta pelo perigoso mistério de Lara Flynn Boyle - ou Alex? Vai saber. À distância. É mais seguro assim.

PARA VER E OUVIR: CAT POWER ("SEA OF LOVE")

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013