domingo, 30 de junho de 2013

O RESTO DE NÓS

Silêncio, solidão poética, abissal, mesmerizante. A chance de vivenciar o final, "o resto de nós", como talvez realmente aconteça. "The Last of Us", exclusivo do Playstation 3, é uma experiência que eu dificilmente conseguirei esquecer. Não é um jogo, não é diversão eletrônica - não é isso que importa, não foi isso o que os desenvolvedores quiseram nos dar. Isso aqui é arte pura, eletrônica e orgânica, coisa viva, que respira, que sangra, sua, que chora e que ri. Com o que é possível. O que ainda é possível. "The Last of Us" é jogo, sim, claro. Mas é também filme, música, livro, poema. E, de alguma forma, memória. Eu nunca irei esquecer as 19 horas que passei na companhia de Joel e Ellie, partilhando das suas migalhas, dos seus sonhos fragmentados, do seu sofrimento. Os sons escondidos nas sombras, que me fizeram prender a respiração, a tensão que correu a minha pele, as girafas que me levaram às lágrimas. Um jogo que transcende a forma, o formato. Eu nem sei dizer o que é isso aqui. Um absurdo. Simplesmente um absurdo. Catarse digital. Puríssima.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

segunda-feira, 24 de junho de 2013

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

O fotógrafo Heinrich Hoffmann (próximo a Adolf Hitler) recebeu um pedido inusitado do Führer. Ele posaria para um ensaio, enquanto ensaiava para um comício. As imagens servem como evidência de um esforço minucioso da construção de uma imagem. A farsa e a face da tragédia do século passado - e um ensaio fotográfico estranhíssimo. Via Obvious.



ILUSTRANDO

Alice X. Zhang - "Lost in Translation"

domingo, 23 de junho de 2013

sábado, 22 de junho de 2013

DRAGÕES E PRINCESAS

Ela pulou em cima dele, no meio da madrugada, como uma gata, acordando-o com um susto.

"Como você pode estar dormindo?", ela perguntou, ansiosa, "não está ansioso por amanhã?".

Ele se sentou sobre os cotovelos, ainda sonolento. E observou a sua filha por longos instantes, como se aquela fosse a primeira vez que ele a via. Os cabelos castanhos anelados, quase selvagens, os olhos esmeralda, exagerados, as sardas espalhadas feito constelações pequeninas, o sorriso cheio de janelas quebradas, naquele rosto iluminado pelos seus 9 anos de idade. 

Aquela menina linda, sua melhor amiga. Ele e ela, sozinhos no mundo.

A menina estava ansiosa porque sabia que o seu pai reencontraria um amor antigo, no dia seguinte. Um amor velho, de carta e fotografia, um amor de jovens, trancafiado sob o peso dos anos e do envelhecimento, um amor destes que fica para trás, quando as correntes do tempo decidem caminhar em direções diferentes.

"Você parece mais ansiosa do que eu", ele respondeu tocando o seu rosto. "Apenas vou encontrar uma amiga"

Ela sorria, um sorriso de gato, a cabeça levemente inclinada sobre o ombro, como se fosse capaz de ler os seus pensamentos. E então se aninhou no seu colo, abraçando-o com ternura, e adormecendo quase imediatamente. 

E ele ficou ali, com a sua filha encaixada sobre o seu corpo, sentindo a sua respiração inocente, leve, aquele quase suspiro. O dia começava a pintar tons de ouro e cobalto na janela do quarto, a madrugada pouco a pouco cedendo espaço para um novo dia. E ele respirou fundo, a cabeça imersa numa centena de pensamentos sem costura, cochilando ao som dos pássaros lá fora e das primeiras buzinas.

Ligou o carro e podia vê-la na janela, olhando-o com ansiedade. Ela sabia, ele pensou, ela entendia. Não era só uma questão de amor ou solidão. Ela já o tinha visto, meditando sobre aquela caixa de lembranças, aquelas fotos; ela sabia das suas lágrimas anônimas e da sua saudade. 

Ela só não falava nada. 

Tirou o carro da garagem e acenou para a sua filha até que a casa se perdeu na esquina e seguiu seu caminho para o restaurante onde reencontraria aquele amor de espera. 

A cidade ao seu redor, passando pela janela do carro, as luzes da manhã, as pessoas, os serviços, o trânsito, a música suave embalando o seu corpo envolvo em ar-condicionado. Ele sentia um frio na barriga que parecia fazê-lo pisar mais forte no acelerador, para chegar mais rápido.

Ficou sozinho à mesa pelo que pareceu uns 10 minutos, era o seu hábito de chegar sempre mais cedo. E então ela apareceu e, mesmo após aquela distância e aquelas décadas, ele soube que era ela. Ainda que não tivesse conseguido reconhecê-la. 

Não é que ela não estivesse bonita, não era isso. De fato, não estava, mas isso não importava. Ela parecia estranha, como se ele estivesse a enxergando por trás de um filtro de realidade que ele nunca teve, já que apenas a lembrança emoldurava os seus entendimentos sobre ela.

Acompanhou os seus passos, o sorriso inexpressivo, os movimentos desajeitados e, por um instante, quis sair dali. Cumprimentaram-se e ela se sentou para imediatamente inaugurar um monólogo monocórdico sobre todos os aspectos que faziam da vida dela a coisa mais interessante da existência na terra. Seu carro, seus hábitos, seu trabalho, suas coisas. 

"Deus, como ela é chata", ele pensava, a mão sob o queixo, disfarçando um sorriso.

E a mulher continuou tagarelando sem parar, o batom manchando alguns dentes, a maquiagem pesada nos cantos dos olhos, a pele flácida do seu rosto, o cabelo e as roupas esquisitas, como se ela tivesse caído de uma máquina do tempo quebrada. E ele ficava pensando o tempo todo no que cozinharia para a sua filha, quando voltasse. 

"Fettuccine carbonara", pensava, "ou quem sabe cachorro-quente"

Sorria, então, verdadeiramente. 

Olhava o relógio, discretamente, e torturava-se com aqueles ponteiros que se arrastavam no seu pulso. E a mulher continuava falando sem parar, rindo das suas próprias piadas sem graça, cutucando-o desnecessariamente.

"Não fique me tocando", ele pensava com um sorriso amargo. "Eu não te conheço"

"Eu não gosto mais de você".

Ele ficava observando aquela mulher esquisita à sua frente e buscando, no emaranhado dos seus pensamentos, onde estava o seu amor juvenil? Para onde ela havia fugido? Não restava mais nada ali, nenhum grão da mulher incrível que habitava as suas lembranças tão calorosamente. O corpo, os olhos, o sorriso, o humor. Tudo havia se perdido. Ela hava desaparecido e aquela pessoa à sua frente era alguém que ele não queria na sua vida. 

Ela pediu licença para ir ao toalete. Ele então aproveitou a oportunidade para chamar um garçom e pagar a conta. E, sem cerimônia, deixou a mesa. O prato quase intocado, a taça de vinho cheia, o guardanapo imaculado. 

E caminhou, lentamente, e então quase correndo. Abrindo as portas do restaurante como quem abre a porta de uma prisão. Ele estava livre daquela ideia. E havia compreendido melhor algo que sempre lhe parecera tão claro.

Deu partida no carro e voltou para casa, encontrando a sua filha brincando de dragões e princesas na sala, com a babá. Ela se virou e iluminou a sua vida com um dos seus sorrisos mais desarmantes e correu para o seu encontro. E os dois ficaram ali, parados, abraçados, pela eternidade de alguns segundos. Ela queria saber tudo sobre o seu encontro.

"Ela não apareceu", ele disse, sorrindo.

"Ela é estúpida", a menina respondeu inconformada, "mas você ainda vai encontrar o amor da sua vida, eu sei"

Ao que ele a olhou nos olhos, acariciando o seu rosto. 

"Eu também sei", ele disse, abraçando-a novamente. "Eu sei"

E naquela noite decidiram comer fettucinne carbonara.

E cachorro-quente.

"AO MARAVILHAMENTO"

Uma mulher, estrangeira, sussurrando as suas reflexões de amor - e de ódio - sobre um homem silencioso que ela nunca esqueceu. Um padre, sedento de fé, desesperado por um sinal da existência de Deus. Um homem, inerte, quase indiferente, e que inevitavelmente seduz e esmaga as mulheres que o amam vorazmente. Uma mulher, em lutos, na solidão da reconstrução de um rancho, dividida entre a culpa e o desejo. É sobre a (folgada) costura entre estas diversas histórias que fala "To the wonder", novo filme de Terrence Malick (de "A árvore da vida"). 

Fica difícil falar muito sobre um filme que, em si, quase não fala. Ao mesmo tempo, não quero dizer com isso que este é um filme "mudo" ou que não chega a lugar algum. Bem o oposto. Como "A árvore da vida", "To the wonder" é absurdamente belo, sinestésico, sussurrado, como se fizéssemos parte de um segredo, em que observamos aquelas vidas com muito mais voyerismo do que envolvimento. 

Em poucas palavras, acredito que este seja um filme sobre amor. Ou a falta dele, ou a busca por ele.  Ou sobre a sua degradação que, como tudo que é vivo, também morre. Começamos o filme com uma linda e passional história de amor, em que uma francesa e um americano se derretem na França. Ela quase canta o seu amor por aquele homem, estrangeiro, silencioso, americano, e o seu desejo de fugir e passar a vida com ele. 

Em paralelo, entendemos - no "presente" - que aquela história acabou. E, neste momento, conhecemos uma americana, que está se envolvendo com o mesmo homem e, inevitavelmente, sofrendo com a sua incapacidade de amar. E, orbitando este universo de amores tão fragmentados, está um padre, errante, desesperado por encontrar a sua fé, achar o Cristo que ele tanto prega.
Um filme absurdamente belo, como é de se esperar de Malick. Um filme sobre o prazer e a dor de amar

É tão difícil explicar os filmes de Malick... O título é perfeito. É uma questão de "maravilhamento". Como a primeira mulher de fato diz, ao descrever a sua história de amor: "nós subimos juntos a escada rumo ao maravilhamento". É exatamente isso o que fazemos, numa trajetória em que é fácil compartilhar da ansiedade, da inquietude, do desespero que habitam as histórias de amor profundas.

Estou cada vez mais convencido de que ele é um dos diretores (e roteiristas) mais especiais desta época. Malick é um "alquimista da beleza" e converte os seus filmes não em narrativas diretas, linerares, mas em exposições caleidoscópicas de imagens, sons e sensações. Os seus filmes são sinestésicos, imersivos, silenciosos e é preciso embarcar na sua jornada, beber da sua poção, e realmente se entregar para absorver (e "entender") o filme. 

Não é uma questão de apontar um "final", seja ele feliz ou triste, mas de expor a existência sobre diferentes ângulos que, em determinados momentos, se cruzam (colidem) como assim a vida é. O amor é a espinha dorsal em torno da qual este lindo filme se constrói. Não é um filme fácil de se gostar e muitos julgarão desnecessariamente poético - ou pretensioso. Mas é uma experiência inesquecível para quem o aceitar.

Um filme comovente, duro, emocionante, penetrante, dolorido, como as lembranças podem ser. 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

quarta-feira, 19 de junho de 2013

QUASE, SRA. COPPOLA. FOI QUASE

Just a note to self.

ADEUS A JAMES GANDOLFINI

Morreu hoje, com 51 anos, o eterno Tony Soprano. Triste. Gostava muito dele.

PARA VER E OUVIR: JOHN MAYER ("PAPER DOLL")


Tem cheiro de disco novo no ar...

ELE ESTÁ DE VOLTA

Confesso que uma parte, pequena, muito pequena, de mim ainda guardava receios sobre o novo filme do Superman, "Man of Steel". Algo de incredulidade e de ciúmes - minha ira pelo desrespeito de fazerem mais um ator vestir o manto que Christopher Reeve usava como roupa, não como fantasia.

Mas então eu vi. Eu VI "Homem de Aço" e os arrepios e as lágrimas que tomaram conta do meu corpo pela curta duração deste filme que, para mim já é uma obra de arte, não deixaram mais nenhuma dúvida: Christopher Reeve, o Superman, nos deixou um dia, foi embora, para algum lugar que desconhecemos. Mas Henry Cavill o trouxe de volta.

Isto nunca foi uma fantasia. Isto foi sempre a sua roupa. Como substituí-lo?

Mas o Super Homem voltou para nós, não estamos mais sós, e, pela primeira vez em tantos longos anos, temos de volta a proteção incansável, a bondade, a esperança que são a matéria que constitui este super homem. E que estampam o seu peito, por meio da heráldica alienígena que enfim compreendemos...

Descobrimos a mesma história de sempre, mas com um olhar profundo, poético, que faz com que tudo pareça inédito ao mesmo tempo. E entendemos a complexidade da vida deste menino, este navegante das estrelas, tão desesperadamente amado por dois pais e por duas mães, e que, como Jonathan Kent  (muito bem feito por Kevin Costner) bem diz "veio até nós com um propósito e que, nem que isso lhe tome a vida, ele deve descobrir qual é".

Clark Kent é um cidadão errante, vagando pelo mundo, mudando de cidades, de trabalhos e deixando um rastro de feitos incríveis. Há sempre alguém que "viu o que Clark fez" e isso é o que permite que ele seja encontrado pela astuta Lois Lane.

Eu nunca imaginei que ele pudesse voltar, após Christopher Reeve ter nos deixado...

Em resumo, e para não estragar as várias surpresas, esta é uma história sobre a invasão da Terra, quando o General Zod, o antagonista de Jor-El (pai do Super Homem), lindamente vivido por Russel Crowe (dignamente à altura de Brando), vem ao nosso planeta em busca da última semente de Krypton, o filho que escapou à destruição: Kal-El. "Ele não é um de vocês", diz Zod em sua transmissão internacional, "entreguem-me Kal-El e a Terra será poupada".

Diante desta ameaça, Clark, que ainda está descobrindo as suas origens toma uma posição frente ao seu lar, ao seu país, ao seu planeta que inevitavelmente o considera um estrangeiro. E esta teia de eventos monta um caleidoscópio de explosões e emoções que fazem deste um filme - e uma atuação - dignos do nome.

Cavill é um novo Super Homem, não há sombra de dúvidas, com um novo traje, uma nova ótica em que a história de um dos mais amados super-heróis de todos os tempos é narrada. Mas também é respeitoso ao legado de Reeve em momentos delicados, sutis, quase subjetivos em que somos contaminados, contagiados, pela energia deste homem, deste "super homem", que talvez tenha no seu amor pela humanidade o seu maior poder, o seu atributo inquestionável.

E também a sua dor.

Na tela, efêmera, testemunhamos a glória e o caos deste Deus que escolheu caminhar entre nós. Sua solidão, sua abissal solidão, numa vida dedicada à onipresença.

Há uma poética, uma beleza absurda, uma força colossal nas mãos de um homem que é aço e ternura. E que é capaz de fazer girar um planeta com a mesma facilidade com que se ajoelha aos pés de uma mulher amada, indefeso, em busca de um abraço que possa acalmar seu sofrimento. Um homem invencível, ou quase invencível, mas que não está imune ao riso e à lágrima.

Um filme não de horas ou minutos preciosos. Um filme de SEGUNDOS preciosos. E que tive o prazer transcendental de ver numa sala de cinema que terminou a sua projeção com aplausos calorosos. Uma explosão coletiva, de vários nomes e idiomas anônimos, que parecia celebrar a mesma coisa:

Ele voltou.





quarta-feira, 12 de junho de 2013

FOTOGRAFIAS DE CASAMENTO INSPIRADORAS

Neste Dia dos Namorados, em homenagem a vocês, românticos, em algum lugar, por aí. Via Zupi.




terça-feira, 11 de junho de 2013

quinta-feira, 6 de junho de 2013

A ESCOLHA SERÁ SUA

E então uma mulher misteriosa, de voz doce e olhar angelical, que caminhava pelas ruas como uma pedinte, diz ter vindo do futuro. Precisamente de 2054, quando a humanidade vem sofrendo com uma guerra civil e a quase escassez de alimentos. Rapidamente, a viajante "Maggie" começa a aglomerar seguidores numa seita que se encontra numa garagem. Entre os seguidores, um casal que pretende desmascará-la e provar o seu golpe.
 
Maggie vem do futuro para avisar o mundo de uma calamidade. Será mesmo?
 
Não quero estragar nenhuma surpresa do deleite que é mergulhar no mistério (intrigante) de "Sound of my voice", escrito e estrelado pela apaixonante Brit Marling (de "Another Earth"). Um filme rápido - que passa na velocidade de uma propaganda de 30 segundos - e que me deixou maravilhado (para não dizer embasbacado).
 
Mas... e se Maggie tiver realmente vindo do futuro?

Ficará ao seu critério descobrir.

Ou escolher.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

"COMO FOI A ESCOLA HOJE, NAPOLEON?"

"O pior dia da minha vida, o que você acha?".
 
Sem mais.

terça-feira, 4 de junho de 2013

ILUSTRANDO

O traço incrivelmente realista [e sensual] do artista espanhol Juan Francisco Casas. Detalhe: feitos com canetas Bic.

"BUM, SOOU O TAMBOR...BUM, BUM, BUM, BUM"

0309 em uma frase: o triste "Casamento Vermelho". Não consigo entender porque o George R R Martin faz isso com a gente, pobres fãs. Se eu já não tivesse lido os livros estaria pasmo, boquiaberto. Um dos melhores episódios desde o começo do show, sem dúvidas. E exatamente como eu havia imaginado. Infelizmente.

Quem restará, no Norte, para lembrar?

PARA VER E OUVIR: ARIEL PINK ("SYMPHONY OF THE NYMPH")

segunda-feira, 3 de junho de 2013

ILUSTRANDO

Edward Hopper - "Chop Suey, (1929)"

domingo, 2 de junho de 2013

O SEXO DOS PEIXES


Ela já nem lembrava ao certo em que momento da madrugada havia caminhado até a praia. O fato é que estava sentada ali, há um bom tempo, hipnotizada pelo som da água indo e vindo, indo e vindo, quebrando a poucos metros dos seus pés completamente enterrados na areia. 

Um vento calmo, salino, penetrava pela sua camiseta folgada, sua roupa de férias, fazendo-a suspirar. Arrepiando-se, como se fosse o toque de um amante gentil. O céu, de um negro azulado e cheio de estrelas, pouco a pouco começava a ser rabiscado por linhas douradas e carmesins, que nasciam suavemente no horizonte. 

Um barulho distante, talvez um barco, chegava aos seus ouvidos. Algumas luzes pequeninas, estrelas de céu e estrelas de água, e gaivotas tímidas começavam a reconquista do céu ao seu redor. Vagarosamente. 

Ela respirava de forma pausada, de olhos fechados, como se estivesse acalmando o seu espírito. E navegava com as mãos a areia fina ao redor do seu corpo, fazendo castelos secos que desapareciam antes mesmo de ganharem forma. Uma quase lágrima ameaçou suicidar-se dos seus cantos de olhos mas foi sufocada em seu berço.

"Ainda não".

Abraçou as suas pernas, com força, embalando o seu corpo para frente e para trás, para frente e para trás, como o balanço de uma nau. Temia estar afundando na areia, sufocando; mas era só uma ilusão. 

Sentiu passos lentos, atrás de si, e virou-se para encontrar o seu marido caminhando até ela com um semblante que misturava aflição, melancolia e sono. Ele tocou o seu ombro, com carinho e cuidado, e beijou a sua cabeça. E ficou ali, do seu lado, acocorado, fazendo carinhos no seu rosto e chamando-a para dentro.

Em vão.

"Quero que você vá até a cidade agora", ela disse quase cerimonialmente. "Precisamos de leite, pão e manteiga"

Ele concordou, com um aceno leve de cabeça, e caminhou de volta para a casa.

"Você acha que os peixes são felizes?", ela perguntou, olhando fixamente o mar.

Ele permaneceu alguns instantes parado, olhando para a sua mulher. Os olhos úmidos, exaustos, a boca sem verbo. E então voltou para dentro da casa.

Após 20 minutos, ou menos que isso até, ela ouviu o ronco da caminhonete. Seu marido estava indo para a cidade, como ela havia pedido. E, quando o som ficou quase inaudível, ela se levantou. 

Permaneceu de pé, alguns instantes, inalando profundamente a brisa salgada que invadia os seus pulmões. A luz começava a aquecer o seu rosto e o vento parecia glacial enquanto fazia dançar os pêlos dos seus braços. 

Despiu-se, completamente.

E caminhou até a água, onde mergulhou e emergiu, seguidas vezes. Sua mente era um caleidoscópio de imagens mentais. Bolos de aniversário e vestidos floridos; bonecas despenteadas e cigarros escondidos. Beijos roubados, suor, lágrima, sangue. Mãos e bocas anônimas, cheiro de tinta, passagens de avião. 

Saiu da água e conseguia sentir cada uma das gotas que escorriam pelo seu corpo nu. Um corpo bonito, branco, sardento, de linhas firmes e bem desenhadas. A água fazia sua pele brilhar e o seu cabelo, liso e curto, era uma máscara ao redor do seu rosto delicado. 

Ela sorria e chorava. Soluçava, de joelhos na areia, num pranto profundo, antigo, que fazia o seu abdômen se contorcer.

E então voltou para casa, abandonando as suas roupas na areia. Na cozinha, pegou alguns fósforos e pôs as cortinas da sala em chamas. Rapidamente, o fogo vermelho lambeu com voracidade tudo ao seu redor, reduzindo fotografias, móveis e objetos às cinzas. 

Ela permaneceu ali, parada, sentindo o fogo consumindo a sua pele com imensa facilidade. Um calor tão inédito, tão estrangeiro, fazendo sumir carne e cabelo feito mágica. E, como ela havia suspeitado, sentia-se inteira pela primeira vez.

* * *

O homem avistou a fumaça de longe. E encontrou a casa numa grande fogueira. E no meio dela lá estava a sua mulher, dançando, rodopiando, como um dervixe, até tombar no chão e, como o resto da casa ao seu redor, ser uma com o nada.

Ele ficou de pé, diante daquela cena de absurdo e caos. Incrédulo demais para pensar qualquer coisa.

E foi como se todo o peso do mundo tivesse sido retirado das suas costas. 

Ele estava livre.

sábado, 1 de junho de 2013

A VIDA APÓS O DIVÓRCIO

"Meu Deus, onde fica o fim do poço", pergunta-se Amy em um de seus tantos momentos de melancolia quase abissal, "onde é o fundo?". "Hello I must be going", estrelado por Melanie Lynskey, é um filme pequenino, adorável, e que flerta com o drama e a comédia em doses equilibradas. 

Sustentado por uma fotografia bonita e uma linda trilha sonora bem indie (e que inevitavelmente dá o tom da história), o filme narra a história de Amy (Lynskey) que está há meses em depressão profunda, sem conseguir sair de casa, após o seu marido encerrar o casamento e o seu projeto de vida junto com ele.

Usando uma mesma camiseta surrada e assistindo a filmes antigos o dia inteiro, Amy não tem ideia do que fazer da sua vida. Morando com os pais, equilibra uma relação saudável (e distante) com seu pai e outra extremamente nociva e quase venenosa com a sua mãe. E sofre, o tempo todo, com as cobranças constantes - e às vezes veladas - para que ela faça algo com a sua vida. 
Reinventar a própria vida é algo sempre difícil e assustador...

Isso é o ponto de partida para todo o tipo de situação social que envolve desde sugestões de carreira e encontros às cegas. Imposições que Amy precisa engolir por não saber ela mesma o que fazer. E, talvez aí mesmo, o epicentro do seu sofrimento. 

Inevitavelmente, Amy acaba conhecendo Jeremy, um rapaz de 19 anos com quem ela acaba tendo um caso extremamente carnal. Curiosamente, este encontro afetivo acaba sendo o seu "anti-depressivo", e as pessoas ao seu redor começam a notar que ela está mudando; alguns velhos hábitos ficando para trás e até mesmo a academia passa a ser uma atividade na vida de Amy.

Mas ela mesma sabe que não há futuro neste relacionamento com o jovem rapaz. No fundo, lá no fundo, ela queria a sua vida de volta. Seu marido, seu apartamento, sua vida "resolvida", como assim ela entendia. Seu projeto, que foi roubado, como "um tapete escorregado sob os seus pés", lançando-a num abismo do qual ela não consegue emergir.
...mas haverá sempre um prazer genuinamente libertador em fazê-lo...

Ao mesmo tempo, Amy vai dando pequenos passos que, ainda que não lhe tragam soluções, mostram que há sempre esperança, que há sempre alguma saída, alguma resolução, desde que não se fique parado; que se caminhe em alguma direção.

E é isso, exatamente, o que ela faz.