sexta-feira, 30 de abril de 2010

QUEM DISSE QUE LADY GAGA NÃO É COISA DE HOMEM?

Os caras de um grupo de humor da Universade do Oregon (EUA), conhecidos como "On the rocks", provam exatamente isso nesta apresentação de "Bad Romance" totalmente a capella (e extremamente performática). Excelente.

Ficou com vontade de ver o original? Clica aqui.

O QUE HÁ NO FIM DA ESTRADA?

A vida na terra chegou ao fim, por conta de uma hecatombe que a devastou de ponta a ponta, transformando o mundo - como o conhecemos - num grande abismo cinza e sem vida. Incêndios, inundações, pouco a pouco, tudo foi se desfazendo e levando pessoas a morrerem de fome e até mesmo a se matarem por conta do desespero. Mas ainda assim, o pior ainda estava por vir. O impensável: canibalismo. Neste cenário arrasado, um pai e um filho atravessam uma jornada perigosa e solitária pelos Estados Unidos, ao longo de uma estrada que levará ao Sul, onde supostamente há alguma chance de vida.

Cumplicidade na mais profunda solidão marcam o resvalamento em "A Estrada"

Baseado no best-seller de Cormac McCarthy, The Road ("A Estrada"), estrelado por Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee e com participação especial de Charlize Theron, Robert Duvall e Guy Pearce, é um filme impactante e imperdível. Com a direção sensível e precisa de John Hillcoat, vemos na tela - de forma quase documental - a transformação do homem em animal e nesta triste metamorfose, a descoberta dos extremos a que a humanidade pode chegar em nome da sobrevivência.

O mundo é habitado por personagens anônimos, errantes, que vão de ponto a ponto, dia após dia, atravessando vales e florestas de sombras numa luta exaustiva pela sobrevivência. O pai e o filho, igualmente, não tem nomes. Não sabem do tempo, já esqueceram até quem são. Há uma triste cena em que o filho, atônito ao observar um espelho, diz para o pai, "vê, papai, como estamos magros...".

As atuações dos protagonistas são impressionantes. Viggo Mortensen tem algo mágico em seu olhar, ao mesmo tempo determinado e devastado, e é a força máxima que sustenta o filme do começo ao final e nos garante fôlego para aguentar a tensão durante uma série momentos de grande perigo.

A jornada é absurdamente melancólica e perigosa, neste "road movie pós-apocalíptico", mas isso não impede que o filme também presenteie a audiência com momentos adoráveis, como a descoberta do que pode ser a última lata de coca-cola ou uma escotilha que esconde centenas de mantimentos absolutamente impensáveis. Este é um filme que mostra sem pudor o extremo, o limite da vida quando um banho, um raro banho e uma lata de sopa são suficientes para se acreditar em mais um dia.

Viggo Mortensen é pura luz num mundo que parece esquecido por Deus

Não há vida, na Estrada, porque ao longo de seus quilômetros infindáveis, só é possível enxergar o vazio, a maldade e o perigo. Essa história se dedica, de corpo e alma, a nos mostrar (como se fossemos acompanhantes) o trajeto de um homem dedicado em garantir que seu filho possa viver uma vida longe do caos. São dois mendigos, desorientados, caçados como animais e dividindo uma linda cumplicidade que só enxergaremos verdadeiramente nos instantes finais. Quando também descobrimos que, se há desepero e morte na Estrada, nela também pode habitar a esperança.


domingo, 25 de abril de 2010

ONDE REINA O CAOS


"Misógeno", "grotesco", "pretensioso", "arte". Muitos são os possíveis adjetivos ao filme "Antichrist" (Anticristo), de Lars von Trier, e nenhum será justo ou equivocado. Porque este filme é, sem dúvidas, o conjunto de todos esses adjetivos e muitos outros mais. Este é um filme raro, polêmico, forte e profundo sobre o qual apenas um argumento é inequívoco: é impossível ficar indiferente a ele.

Na história, "Ele" (Willem Dafoe) e "Ela" (Charlotte Gainsbourg) perdem um filho tragicamente. Após uma belíssima cena, rodada em preto e branco, Lars von Trier constrói o prólogo perfeito para o seu filme que é, ao mesmo tempo, sonho e pesadelo: ao som de "Lascia la Spina", de Handel, o casal faz amor apaixonadamente enquanto seu filho pequeno caminha para uma janela aberta. Tragédia anunciada e um casal em frangalhos. Devastados, os dois fogem para uma cabana, onde tentam um audacioso processo de cura, enfrentando a dor e a tristeza, ao invés de negá-la ou combatê-la.

Amor e morte caminham de mãos amarradas no novo filme de Lars von Trier

Mas, justamente, ao se depararem com a verdade da dor, os dois também se deparam com a dura verdade da existência humana, que pode ser falha, corrompida, má. E nessa turbulenta jornada de cura e auto-conhecimento, os dois seguem um caminho sem volta onde o desespero e a loucura fazem com que eles se percam nos labirintos de suas próprias mentes. Neste momento, já não é possível distinguir realidade de alucinação, certo de errado, fato e suspeita. Na cabana, cercada por uma região de mata fechada chamada Eden ("Paraíso"), Ele e Ela, como Adão e Eva às avessas, descobrem real e dolorosamente que "o caso reina". 

"Anticristo" é um filme belo e, ao mesmo tempo, horrendo. Com uma cinematografia fantasmagórica e precisa na intenção em retratar duas mentes perturbadas, este é um filme delicado, na mesma proporção em que é explícito e visceral. É arte na igual proporção em que pode ser interpretado como lixo. Porque não é um filme para todos. É, na verdade, um filme para ninguém, como se Lars von Trier tivesse construído seu próprio pesadelo, num exercício pessoal, egoísta, autista e de celebração de sua própria angústia. Dizem que Trier filmou "Anticristo" num momento de grande tristeza pessoal e isso pode ser percebido em cada  segundo deste filme impressionante que destila melancolia. 

Definitivamente, "Anticristo" é um filme arrebatador e com certeza não sou a mesma pessoa de antes de tê-lo visto. Ao mesmo tempo, há em mim uma satisfação - talvez inocente - em ter visto este filme, na medida em que é, na pior das hipóteses, uma peça de arte simplesmente imperdível. Não sei interpretar que impacto, especificamente, este filme provocou em mim além do silêncio. Porque esta é a essência e a beleza genuína deste filme: a sua capacidade de nos silenciar.


Fantasmagórica e brutalmente real é a jornada pelo "paraíso"

Despertei ao final deste filme, como quem acorda de um sonho ruim. Mas, de alguma maneira, quis dormir novamente. Talvez nem o próprio Trier tenha noção do poder de sua obra. Na falta de adjetivos definitivos para este filme, um, pelo menos, não me foge à mente: poderoso. 

O caos reina em "Anticristo". Mas é justamente no caos que nasce a ordem e "Anticristo" transpira esta reflexão com eloquência.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

23

Dia de São Jorge

quarta-feira, 21 de abril de 2010

BRASÍLIA, 50 ANOS


"Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu País e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino". 
Juscelino Kubitschek

Meus sinceros parabéns a minha querida Brasília. 50 anos, horizontal e infinita, e nem um centímetro menos utópica.

sábado, 17 de abril de 2010

LAPSO


Uma bela mulher, de longos cabelos ruivos o acordou com um beijo de bom dia: “levante, preguiçoso! As crianças já estão atrasadas!”. Levantou-se, letárgico. Um pouco de água no rosto, um banho breve, um punhado de roupas escolhidas e dobradas sobre uma cadeira de couro. Vestiu-se. A escada que descia para a sala, coberta com carpete marrom, felpudo, rangia sob os dedos dos seus pés. Meia dúzia quadros na parede, algumas fotografias, um vaso inexpressivo com flores quase murchas. Na cozinha, movimento apressado de pessoas.

“Pai! Anda! Eu não posso me atrasar para a feira de ciências!”, gritou o menino, da porta da casa; as bochechas rosadas e o uniforme pouco arrumado. “Pai, toma seu café com calma, não esquenta”, intercedeu a jovem à mesa, enquanto arrumava os livros para as aulas da faculdade. "Lógica", "Teoria do Caos".

Ele olhava tudo com olhos de vidro, de cansaço e surpresa, como uma máquina obsoleta, incapaz de processar um dilúvio de novos comandos e informações. Mal conseguia levar a xícara de café à boca, enquanto observava aquela cena familiar tão rotineira. A mãe ajudava o filho com uma maquete. O garoto segurava a chave do carro. A garota lia enquanto bebia um suco que parecia ser de maçã, alheia ao barulho da cozinha.

Um cachorro veio à sua perna, lambeu seus pés e ficou aguardando ser afagado. Ele olhou para o cão como quem olha alguma figura mitológica. “Meu bem, você não está atrasado para o trabalho?”, interrompeu a mulher. “Pai, você está bem?”, a jovem completou o inquérito. Ele os olhava inquieto, sem saber o que lhes responder. Pensou em histórias de fantasmas e realismo fantástico. Se é que conseguia, realmente, pensar em algo.

A mulher falava dos preços do mercado. Aparentemente, o suco de laranja nunca esteve tão caro. Ouvindo uma buzina alta, a jovem se levantou e, num salto, despediu-se, correndo para entrar no carro do namorado. Um carro vermelho, com um rapaz bonito, de óculos escuros, esperando, sorridente. Beijaram-se de forma pouco comportada.

O menino correu para depositar a maquete no banco de trás do carro estacionado fora da garagem. Já sentado no banco do passageiro, gritava como uma sirene de bombeiros. “Pai! Pai! Pai! Pai! Pai!”.

“Ei, o que você tem hoje?”, a ruiva interrompeu seus pensamentos, ajeitando-lhe a gravata e fechando a sua pasta. Uma bela pasta de couro de porco com duas iniciais: A. H. “Você esqueceu de pagar o cartão de crédito? Eles ligaram ontem, alegando que estamos atrasados”. Olhou-a como quem vê os créditos de um filme subirem. Através dela. Um perfume esquisito. Um pouco mais de maquiagem do que deveria àquela hora do dia.

A mulher o conduziu para a porta, trancando-a atrás dele. O sol brilhava intensamente, mas a grama estava molhada, como se tivesse chovido à noite. Na casa ao lado, um homem gordo e de roupão vinha em busca do jornal. Acenou para eles, com cortesia. Do outro lado da rua, uma senhora acenou da janela. Sorriu para os dois. Uma jovem deu bom dia, enquanto passava de bicicleta. No final da rua, cruzou uma viatura da polícia em ronda. Aquele silvo estranho. Azul. Vermelho. Azul. Vermelho.

“Você ainda não me disse o que achou das novas cores para as cortinas. Ficamos com lilás ou bege claro?”, perguntou a mulher enquanto caminhava para um outro carro, dentro da garagem. Ele não respondeu. Apenas a observou, emudecido demais. Ela deu de ombros. Ele estava estranho. Insônia, talvez. 

Jogou-lhe um beijo de longe pouco antes de se sentar à direção. Por alguns instantes,  olhou a mulher entrar no carro e retocar a maquiagem no retrovisor. Então, após breve meditação, abriu a porta do seu carro, sentou-se e apoiou uma das mãos ao volante.

Antes de dar a partida no carro, porém, questionou-se com certa preocupação: “quem diabos, afinal, são estas pessoas?”

quarta-feira, 14 de abril de 2010

PARA VER E OUVIR: PARAMORE ("THE ONLY EXCEPTION")

Por motivos muito meus, uma linda música que me proporciona deliciosos calafrios e me faz lembrar da minha "única exceção".

terça-feira, 13 de abril de 2010

E JÁ QUE O ASSUNTO É BEIJO...


"Beijando Jessica Stein" (Kissing Jessica Stein) é um filme adorável, imperdível e um daqueles que eu já perdi as contas de quantas vezes assisti. Os diálogos são ótimos, os personagens convencem e todo o filme é rodado em Nova York, o que promove uma deliciosa atmosfera para cenas hilárias, românticas e tocantes. É uma história completa, que não se apressa em nenhum instante e, nem por isso, também se arrasta. De alguma forma, acabamos esquecendo dos atores e acreditamos, nem que brevemente, que estamos acompanhando as vidas de pessoas reais. Muitos se enganam, ao definir este filme delicado e especial como uma comédia romântica sobre a descoberta do amor entre duas mulheres. Esta é uma forma muito superficial de encarar a história e todas as suas nuances tão interessantes. Beijar Jessica Stein é algo muito mais complexo...

Jessica procura o homem perfeito, mas acaba encontrando a garota perfeita...

Jessica (Jennifer Westfeldt) é uma solitária novaiorquina, neurótica e tímida; dedicada ao trabalho, no seu tempo livre, também é uma talentosa (e desconhecida) artista plástica. Pressionada por sua família judaica a arrumar "um bom partido" e se casar e cansada de desilusões amorosas, Jessica decide dar o passo mais ousado de sua vida ao responder a um anúncio romântico de jornal: "elas procuram elas". Com isso, acaba conhecendo Helen Cooper (Heather Juergensen). Helen é o oposto de Jessica e tudo que ela precisa: altiva, animada, engraçada, destemida e sem medo de experimentar as novidades. Com um punhado de tropeços, mas cheias de vontade de acertar os passos, Jessica e Helen acabam se envolvendo e descobrindo uma vida juntas. Naturalmente, isso envolve um punhado de sacrifícios e sofrimento, sobretudo para a família tradicional de Jessica, que tinha outros planos para ela.

Jessica Stein é como um beijo: intenso ou delicado, sempre guarda surpresas

O filme segue com ótimo ritmo, misturando polêmica e comédia em doses exatas enquanto vamos naturalmente percebendo em que medida Jessica está (ou não) decidida sobre as suas novas escolhas. Ao redescobrir um amor antigo, Josh Meyers (Scott Cohen), Jessica se depara com uma grande confusão e talvez a mais difícil decisão da sua vida: ficar com o homem errado, por quem sempre foi apaixonada, ou continuar com a garota perfeita, mesmo que isso não defina a pessoa que ela é, de verdade?

Por estas e tantas outras razões, "Beijando Jessica Stein" é um filme ideal para se ver no Dia do Beijo. Porque, como um beijo, é algo vivo, cheio de energia, e repleto de surpresas no caminho.

EM LEMBRANÇA DO "DIA DO BEIJO"


Burt Lancaster e Deborah Kerr, em "A um passo da eternidade" (1953)

sábado, 10 de abril de 2010

A DESCOBERTA DE GEORGE

Quando George nasceu, prematuro, na mesma hora recebeu o nome do santo de devoção de sua mãe. Ela havia feito uma promessa ao santo guerreiro que daria o seu nome ao seu primeiro filho caso tudo corresse bem. Apesar de ter crescido num ambiente de profunda devoção religiosa, George se tornou ateu antes mesmo de se tornar adulto. Sentia, desde muito cedo, que não havia necessidade de se apegar a ideias que não fossem concretas e sentia pavor da histeria provocada pelas religiões que, em seu entendimento, desvirtuavam as pessoas das suas próprias decisões. George não aceitava que houvesse um plano maior, além do seu controle terreno. Religião, qualquer uma que fosse, não era o seu negócio. Ele simplesmente não era um homem de fé.

Assim George viveu, por toda a sua vida. Prático, científico, materialista. Como Woody Allen, preferia o ar-condicionado ao Papa e ria, com uma mistura de pena e deboche, da sua mãe, uma senhora adorável, que sempre cheirava a incenso. Quando a visitava, olhava para o altar em destaque na sala, onde uma imagem de São Jorge podia ser vista em esplendor. "Meu Santo vestido", dizia sua mãe, enquanto tocava orgulhosamente a capa de veludo vermelho do santo imponente.

Em situações como estas, George sempre aproveitava a oportunidade para fazer alguma piada sobre os hábitos, as velas, as flores. Todo aquele "teatro" não fazia sentido para os seus olhos de matemático. Mas sua mãe não se incomodava, pelo contrário, olhava para George com um sorriso tenro e dizia, fitando-o nos olhos e acariciando seu rosto: "Ele olha por você, mesmo assim, meu filho".

George era um homem pacífico, de hábitos comuns. Separado, sem filhos, morava só numa casa confortável perto da universidade onde dava aulas de estatística. Ia de bicicleta para o trabalho, gostava de tomar água de coco ao final do dia e, sempre que possível, encontrava um pequeno grupo de amigos para ouvir jazz no centro da cidade.

Além disso, alguns livros e discos antigos traziam novidade para a grande casa que dividia com Crono, seu gato siamês que havia sido castrado há duas semanas e passava dias e mais dias deitado sobre uma grande almofada azul da qual se levantava, ocasionalmente, para comer ou frequentar a sua caixa de areia. Ele gostava de conversar com o gato, que parecia observá-lo com bastante atenção. Fazia carinho em sua cabeça, e ele respondia prontamente, vibrando como um aparelho elétrico a cada novo afago. "Desculpe por ter feito isso com você, mas é para o seu bem. E nunca esqueça: você não é nem um pouco menos homem agora. Pense que perdeu um acessório, só isso".

Aos 49 anos, George se deparou com a maior provação de sua vida. Após alguns exames de rotina, ele descobriu que tinha um câncer nos testículos. Ele viu o seu mundo desabar naquele dia. Era como se estivesse despencando, num abismo sem fim, onde a sua vida parecia se desfazer como névoa e poeira.

Quando contou essa notícia à sua família, sua mãe chorou um choro diferente. Um choro de coragem. Um choro de quem se arma para a guerra. Ao ver o seu filho soluçar, sozinho num canto, aproximou-se e disse, com convicção e veemência: "Não desespere, meu filho, porque nós venceremos essa". George agradeceu o conforto, mas em sua cabeça havia espaço apenas para pensamentos de probabilidades. Causas e efeitos. Ações e consequências.

O tratamento começou e se provou mais doloroso e sofrido do que George podia imaginar. Alternava momentos de esperança e desepero enquanto seguia para as sessões de quimioterapia a que se submetia. Inicialmente, houve um quadro de melhora, mas rapidamente o seu estado piorou a um ponto crítico. George via as horas sumindo por entre os seus dedos enquanto percebia que ficava mais no hospital do que em casa. O tempo, o seu tempo, era cada vez mais fugaz.

Numa tarde especialmente nublada, George se sentiu consumido por pensamentos melancólicos. Sabia que o seu corpo definhava e enxergava um homem de cem anos no espelho. Deixou um envelope pardo sobre a mesa, contendo um bilhete breve com mais instruções do que reflexões. Levou seu gato, Crono, para a casa de sua irmã, beijou-a e abraçou seu corpo com grande demora, como se estivesse dizendo adeus. Ouviu-a dizer palavras de conforto e esperança, enquanto caminhava para a porta da rua, mas nada daquilo fazia qualquer sentido para ele.

George saiu, observou o movimento e a rotina da cidade com olhos de turista. Tentou respirar fundo, mas uma tosse áspera o impediu de continuar. Passou a mão sobre a cabeça quase sem cabelo, olhou para as mãos de centenário e sentiu as roupas ainda mais folgadas. "Que tipo de homem eu acabei me tornando?". Não via mais sentido em nada daquilo ao seu redor e tinha a impressão de ser um observador de si mesmo, coadjuvante em seu próprio corpo.

Atravessou a avenida com algum desleixo, quase invisível para os poucos carros que iam e vinham naquelas primeiras horas do dia. Descalço, andou sem pressa pela areia que massageava seus pés. Gostou daquela sensação e sorriu brevemente enquanto seguia seu caminho em direção ao mar que estava especialmente calmo naquele momento.

A água já começava a esfriar e George sentia cada novo centímetro escalando seu corpo frágil e dormente. Pés, cintura, ombros. Sentia o barulho das ondas, o sal da água e um canto de gaivotas voando não muito longe. O movimento o levava para cima e para baixo, como um barco de papel, e George decidiu fechar os olhos, antes do seu mergulho final. No instante derradeiro de sua passagem na terra, George sentiu vontade de conversar com Deus. "Perdoa-me, Deus, porque eu não consigo mais continuar".

E o mar engoliu George, cobrindo-o rapidamente e deixando-o inconsciente. Subitamente, sentiu o sol nascendo no horizonte e percebeu duas mãos habilidosas erguendo seu corpo, levando-o graciosamente para a areia. "Ainda não, George. Ainda não". Ele não conseguia enxergar o rosto do seu salvador que, naquele momento, era não mais que um vulto gigante ao seu redor. Um bombeiro, um salva-vidas.


"Porque você está me ajudando?", perguntou com palavras tossidas. "Eu não aguento mais, não consigo continuar", completou. Ao que o estranho respondeu, com um sussurro que pareceu ventar em seus ouvidos: "você consegue, sim. E mesmo quando não conseguir, não desespere porque eu vou te carregar em meus braços". E então George apagou num sono profundo.

Quando abriu os olhos, George estava numa cama de hospital. A luz branca feriu os seus olhos, enquanto ele tateva por alguma informação. Viu sua mãe e sua irmã olhando-o radiantes. E aguardou alguma explicação. Sua última lembrança era ter caminhado em direção ao mar. Nada mais.

Sua mãe acariciou sua cabeça e com uma fina lágrima nos olhos explicou ao seu filho tudo o que havia acontecido até ele ser trazido ao hospital. George ouviu incrédulo e pareceu recordar alguns fragmentos de memórias sem conexão.

Seis meses depois, os médicos deram a George a inesperada notícia de que ele estava completamente curado. Não sabiam como, mas ele estava são como se nunca tivesse ficado doente. Algo que, mesmo a medicina em sua infinita sabedoria definia por "milagre". "Deve haver alguém olhando por você lá em cima, George, porque você nunca esteve tão bem".

A brisa salina mexia em seus cabelos de forma muito especial naquela manhã em que decidiu caminhar cedo na beira da praia. Gostava do calor do sol em sua pele e sentia como se tivesse não mais que vinte anos. Achava-se um novo homem. George havia vencido uma batalha que ele sequer tentou ganhar. E como Einstein havia percebido tantos anos antes, descobriu que não havia milagres na vida, mas que todos os aspectos da vida eram milagres.

Emoldurado, na sua sala de jantar, o recorte do jornal que noticiava a história do "homem desaparecido que havia sido encontrado na areia da praia, envolto num grande manto de veludo vermelho".

terça-feira, 6 de abril de 2010

DIA D.

Todas as pessoas, em algum momento das suas vidas, vivem um "Dia D". O dia decisivo, de transformação, da virada da maré. Um ponto de transição na jornada. A curva, a mudança das águas. O meu foi quando eu te conheci. Porque você invadiu a minha Normandia, tomou-me de assalto, no segundo em que os nossos olhares se encontraram. E foi como se o céu gris daquela manhã tivesse sido tingido com o vermelho do seu cabelo. E desde então você passou a cintilar minhas manhãs com fogo, onde ora me queimei, ora me aqueci. Quando eu contar essa história aos nossos netos, acrescentarei sempre algo novo. Você estaria com uma flor no cabelo, eu com uma pena na jaqueta. Quem se importará?

Naquela manhã fria e chuvosa, em que eu julgava inocentemente estar desembarcando para te conquistar, eis que foi você quem saltou, sem aviso, nas minhas areias calmas, com seus ventos de novidade, de modernidade; com seus passos decididos e seus carros de combate. E me mostrou a guerra e a paz. Com seu jeito delicado e belicoso, de bailarina armada, você me pacificou. E mesmo mergulhado em seu bom combate, ou mesmo confuso por ele, descobri que você, como os heróis juvenis 1944, também me resgatava das trevas.

Com você, ingressei de verdade na guerra da vida. Aprendi seu idioma, seus costumes, as leis do seu país. E me rendi sem resistência. Porque você reinventou o meu mundo, como eu o conhecia. Porque você me reinventou. Fui argila e bronze em suas mãos habilidosas que ora moldaram e acariciaram; ora bateram e cortaram.

Você me mostrou novos caminhos, novas cores. Abriu meus cadeados e minhas fechaduras, com paciência gatuna ou com martelo e maçarico. Tudo ao seu jeito. Foi paciente com minhas infantilidades imperdoáveis e implacável com meus deslizes mais casuais. Mas sou seu cativo, seu território conquistado, quem disse que me cabe questionar os seus termos? Porque se você trouxe desafio e regra, também trouxe o progresso. Correndo para acompanhar o ritmo dos seus passos, eu acabei evoluindo como quem deixa a paisagem para trás na janela do trem.

Enquanto você enchia as minhas mãos com as novidades que pegávamos no caminho, nem percebi o que acabava deixando cair. Descobri novas importâncias ao seu lado e me desapeguei de muitas coisas que tinham outro valor antes de você transformar o meu mundo. Disse adeus, para sempre, a parte do menino em mim que já deveria ter me desfeito. Só você me mostrou como. Você igualmente me ajudou a construir o homem em mim e o menino que ficou, e que sempre ficará, acabou se transformando no Peter Pan a quem você mesma recorre quando precisa fugir desesperadamente para a Terra do Nunca. Quando cansamos, juntos, da realidade e nos escondemos dos relógios, crocodilos e piratas.

Somos garotos perdidos. Casados e crianças. Bela e Fera. Dante e Beatriz. Humildes aprendizes e pedantes catedráticos na discussão das nossas ciências. Falamos uma língua que ninguém parece entender, rimos das piadas ocultas, pintamos as horas com cores que só a gente enxerga. Porque, se de um lado temos metades que não se encaixam, de outro parece que somos a mesma pessoa.

O engraçado é que hoje percebo que eu, de invadido, acabei te transformando também, invasora. Lembro com saudade dos seus olhos de menina, quando nos encontramos. E mesmo que de alguma forma eles tenham sumido na passagem dos anos, em algum lugar eles ainda estão refletidos hoje nos seus olhos de mulher. Porque viramos adultos chatos, juntos. E, de alguma forma, também não viramos. São as nossas aventuras diárias, em que vamos das manhãs de calmaria às noites de fogo cruzado. E inventamos armistício, cessar-fogo, paz duradoura. E declaramos independência. E reinventamos tudo, novamente. Todos os dias. Das cinzas, mesmo quando tudo parece perdido. E juntos, mesmo quando separados.

"Porque você nunca está mais longe de mim do que as batidas do meu coração".

E o meu dia D. é você.

sábado, 3 de abril de 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

"O VENTO DA VIDA PÔS-TE ALI"


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda