quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ALICE E O FANTASMA

Quando Alice completou 18 anos, vivia um dos momentos mais complicados e decisivos de sua vida. Sentia-se presa, perdida, sem rumo. Devia escolher uma universidade, mas não tinha a menor ideia do que queria fazer de sua vida. Sonhava em desenvolver uma habilidade com a qual pudesse expressar o turbilhão de ideias que fervilhavam em seu peito, mas julgava-se incapaz de fazer isso. Achava medíocre tudo o que fazia. Suas fotos, poemas breves, desenhos com carvão. Alice se sentava à mesa e às vezes trabalhava por horas para então rasgar tudo em mil pedaços. Gritava em silêncio, olhando-se no espelho, todas as manhãs; os olhos avermelhados pela insônia recorrente, umedecidos por lágrimas que ansiavam por liberdade. Alice sentia-se só, mesmo entre os seus melhores amigos. Queria sair de sua cidade, seu país. Precisava deixar seus pais, precisava encontrar seu caminho.

Numa manhã qualquer, levemente nublada, Alice viu o sol nascer novamente na sua janela. Deitada em sua cama, num amaranhado de lençóis e travesseiros onde lutava desesperadamente para se aninhar, Alice já havia perdido a conta de quantas vezes acompanhou a passagem das horas, as madrugadas perdendo cor, o contorno do dia ganhando as paredes do seu quarto. Sentou-se, com desleixo, na beirada de sua cama e levantou o seu corpo com esforço, os pés descalços sobre o assoalho frio que a fez sentir calafrios. Sentia como se pesasse uma tonelada, ainda que seu peso real não fosse muito mais que 55 quilos.

Não devia ser ainda 6 da manhã e Alice percebeu que a casa dos seus pais ainda estava submersa naquela penumbra que antecede o começo oficial do dia. As portas fechadas, aquela atmosfera de sono que somente os insones conseguem perceber. A sensação de que todos no mundo dormem menos você. Alice sentia o sono dos outros em sua pele.

Caminhou vagarosamente para a cozinha, onde esquentou água numa chaleira para fazer café. Quando começaram os primeiros choros da água borbulhante, Alice correu para fechar a porta e evitar acordar a casa. Praguejou como se sentisse raiva, como se a chaleira fosse uma pessoa que gritava apenas pela vontade de pirraçá-la. E isso a angustiava porque, mais do que tudo no mundo, Alice temia enlouquecer.

O cheiro inebriante de café fresco tomou conta da cozinha, invadindo cada poro do corpo de Alice, acalmando-a como se ela pudesse levitar. Alice sabia dos efeitos medicinais do café em seu corpo e corria para ele como se fosse um antídoto para as suas dores mais secretas. Cada gole daquele líquido negro, fervente, descia a sua garganta como remédio e Alice sentia como se todo o caos do seu mundo ainda tivesse esperança. Como se as paredes ruídas estivessem se reconstruíndo, como mágica.

Com a caneca fumegante em mãos, Alice saiu da cozinha em direção ao grande sofá da sala. Terminaria ali o seu café onde, esperava, também adormeceria por algumas horas. Às vezes dava certo. Parou no meio do trajeto, porém, imobilizada por algo que até então não tinha notado. Havia um homem sentado no sofá, de costas para ela. A caneca se espatifou no chão, café derramado por todos os lados, Alice com as duas mãos sobre a boca ainda que não tivesse a menor intenção de gritar.

Vencido o susto, Alice caminhou a passos de gato, em direção à sala, contornando o sofá com o cuidado de um piloto de corrida, para ver um senhor de idade, bem vestido, de cabelos penteados, bigode aparado, sentado no sofá com os olhos fechados, como se cochilasse. Ele tinha uma daquelas caras, destas que conseguimos nos afeiçoar sem esforço. Parecia vindo de uma máquina do tempo, com suas roupas dos anos 50 e aquela aparência de limpeza, como se tivesse acabado de sair do banho e cheirasse à colônia cara.

Alice não fazia a menor ideia de quem fosse aquele homem mas algo dentro dela, completamente inexplicável, deu a Alice a certeza de que aquele era o seu avô.

Ela não o conhecera muito bem e tinha poucas lembranças dele. O avô de Alice havia morrido pouco antes de ela completar quatro anos e todas as memórias eram um grande emaranhado de imagens estáticas, borradas. Mas Alice poderia jurar que aquele era o seu avô. Ela era meio estranha, sabia, e tinha destas mediunidades. "Gostava de falar até com as árvores", sua mãe sempre dizia nas conversas para ilustrar o jeito diferente que Alice tinha para lidar com os lugares, pessoas e situações. Não havia dúvidas, aquele era o seu avô.

Sem medo algum daquele fantasma que parecia irradiar uma luz tênue na penumbra da sala, Alice aproximou-se com o receio de uma criança curiosa, em direção ao sofá. Sentou-se ao lado do homem, que abriu os olhos e sorriu para ela um sorriso que ela jamais havia conhecido. Um sorriso de bondade incandescente. Ele segurou em sua mão e os dois ficaram ali, trocando olhares, naquele parlamento silencioso e eloquente como se estivessem navegando pelas vidas e histórias um do outro, sem a necessidade de palavras banais.

Sem a menor cerimônia, Alice se aninhou no sofá, deitando a cabeça sobre o colo do seu avô que pouco depois começou a fazer carinhos delicados em sua cabeça. Movimentos circulares aleatórios em sua testa e cabelos. Alice fechou os olhos, como se estivesse submersa numa névoa que parecia tomar o seu corpo inteiro numa onda inédita de relaxamento.

Alice abriu os olhos. Sua mãe tocava seu ombro, levemente. "Porque dormiu no sofá, minha filha?".

Sentou-se, ainda inebriada, como se tivesse dormido por 100 anos. Olhou para os lados, mas encontrou a sala de sempre, apenas sua mãe estava lá, observando-a com olhos carinhosos. Inventou qualquer desculpa para a caneca quebrada, mas sua mãe parecia pouco se importar com aquele incidente. E sentiu aquela desolação de quem acorda de um sonho bom, percebendo a ingrata surpresa da realidade. Queria voltar a sonhar e encontrar o seu avô.

Abraçou sua mãe por um longo tempo. Pediu desculpas. Sentia-se à deriva. E voltou para o seu quarto, caminhando com a pressa de um turista, para mais um festival de repetições que seria o seu dia. Havia acordado, não havia mais nada a se fazer.

Mas eis que encontrou, sobre o seu travesseiro, um postal muito antigo, que quase se desfazia em suas mãos. Na foto, todo o esplendor do Coliseu, em Roma. Era um cartão-postal que o seu avô havia enviado, muitos anos atrás, para o seu pai. O fundo, amarelado, revelava uma caligrafia bonita, destas que não se vê mais hoje em dia, com um relato breve de dias ensolarados numa cidade incrível que transpirava história. A tinta, gasta, fazia com que as palavras quase desaparecessem.

A última linha, porém, estava escrita num azul vivo, recente, naquela mesma linda caligrafia de antigamente. Alice correu os dedos sobre as palavras, borrando-as levemente.

E sorriu, com os olhos umedecidos e o coração tomado por toda a serenidade de que precisava.

"Tudo vai dar certo, meu bem".

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