sábado, 2 de junho de 2012

AS TERRAS NEGRAS


Ela se sentia cansada, como se estivesse à deriva por uma eternidade. Por mais tempo do que conseguia lembrar, por mais tempo do que era verdadeiramente capaz. À deriva. Queria voltar para casa, para aqueles que a amavam, onde quer que eles ainda estivessem; se ainda estavam. Aquelas lembranças borradas em sua mente, como fotografias desfeitas. Mas não era tarefa fácil deixar as Terras Negras. Em verdade, não se tinha registros fiéis de quem havia conseguido cruzar suas vastas e inóspitas fronteiras. Pelo menos, alguém que tivesse sobrevivido. Os comuns diziam que "era preciso criar asas para deixar as Terras Negras".

Era o seu sonho impossível. Ela que era uma estrangeira, sem pátria, exausta de correr sem destino, de errar os costumes, de trocar as palavras, de se perder eternamente nas traduções. Ela era uma pensadora numa terra de bárbaros, esforçando-se em se adaptar ao inadaptável. E sentia-se só. Completamente só. Olhava o céu gris sobre os seus cabelos sujos e questionava se os deuses não haviam reservado nada mais a ela que aquele triste destino.

Mas ainda havia uma força órfã, tímida; a essência de sua raça, algo de loba, algo preso ao sangue, que não se confisca. Recusava-se religiosamente a hipotecar a sua alma e a vendar os seus olhos como os outros. Algo no seu peito a fazia acreditar que era um mero acidente o exílio nas Terras Negras, ela que já nem se recordava o seu crime. Em breve teria em mãos a chave que a transportaria para bem longe, de volta para casa, pensava. Algo aconteceria. Escondia-se sob a proteção de uma sombra e, mesmo quando lhe escapavam as ideias concretas, confortava a si mesma repetindo uma palavra, como um mantra: “algo”. Abraçava-se. "Algo".

Havia dominado a arte marginal de travestir-se. Era o único meio de esboçar adaptação e de sobreviver. Assim, desenvolveu para si mesma um manual para navegar pelas ruas e pessoas, lutando para não perder o rumo enquanto se esforçava em circunavegar a sua própria alma. Não se perderia de vista, nem que a sua esperança a vestisse como uma mortalha.

Um dia, foi avistada escalando a grande muralha norte, que separava a cidadela de um abismo supostamente sem fundo, negro como a garganta de um monstro gigante. Descalça, pés imundos e calejados, caminhou vagarosamente para a beirada. Sentiu os fortes ventos gelados invadindo o seu corpo, aquele vapor úmido, aquele horizonte de areia escura e esqueletos de árvores. O vestido puído e esfarrapado tremulando ao redor das suas pernas delicadas. Respirou fundo. "Algo".

Fechou os olhos e saltou, sem medo algum, feito um pássaro, com os braços abertos em mergulho.

O habitual ato de desespero foi ignorado pelas torres de vigia. Mas ela sabia que algo aconteceria. E algo enfim aconteceu. No meio de sua queda, sentiu seu corpo amparado pelos braços de um pirata dos ares, um adorável contrabandista, que a observou por alguns instantes com fascínio e perplexidade. Era o único jeito de fugir das Terras Negras, algo que ele só havia ouvido falar nas lendas de bêbados contadas nas tavernas. Sorriu. Rapidamente tomando o leme de volta, abraçou aquele corpo trêmulo contra o dele e a ouviu sussurrar, como se adormecendo: “Leve-me embora daqui... para um lugar onde eu possa tocar o sol”.

E então o pequeno dirigível sobrevoou graciosamente a imensidão melancólica das planícies das Terras Negras até ser banhado sutilmente pela luz do horizonte e se perder na tênue e distante mancha de sol que resistia em rasgar o horizonte. De nada adiantaram os sinos. Ela havia fugido. E rumava para casa.

Seu desespero se tornou lenda. E com a lenda, ela virou uma heroína anônima, a que conseguiu voar. Não por mágica, não por bravura, mas, simplesmente, por não ter deixado de acreditar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ela caminhava assim,como eu,devastada pelas terras negras,apatrida,pelas sombras..a vida inteira buscando ''algo''.Nunca encontrou.A solidão de mundo da depressão,da vasta escuridão.

Parabens pelo texto,muito complexo,muito profundo.