Na manhã em que os dois chegaram à casa nova, era como se o dia, a cidade, o planeta estivessem contaminados por aquela euforia que eles sentiam. Recém casados, chegavam com os corações inebriados pela certeza inquestionável de que seriam felizes ali. Para sempre.
Haviam comprado um sobrado antigo, que necessitava de todo o tipo de reparo. Mas isso não importava. Eles estavam apaixonados, eram jovens, começavam uma vida juntos, não havia nada que fosse assustador demais. Não havia perigo ou desafio maior que os seus sonhos.
Sujos de tinta, poeira, com mãos e pés machucados por pregos, cacos de vidro e lascas de madeira, eles eram apenas sorrisos, apenas abraços, apenas beijos. Namoravam, entre um reparo e outro, vestiam-se e despiam-se ao longo dos corredores e cômodos daquela casa antiga, apaixonados. Eram felizes, eram amantes, eram as únicas pessoas do mundo e aquela casa seria o castelo onde eles fundariam uma família.
Um dia, enquanto ele lixava a madeira do assoalho, revivendo tons de cobre que denunciavam o que aquela casa havia sido outrora, ele percebeu algo sob o estrado de uma velha cama de solteiro. Um cartão ou uma fotografia, não conseguia distinguir. Esticou a mão e puxou o objeto para si, revelando algo que roubou o seu fôlego por alguns instantes.
Aquela fotografia em suas mãos. Uma bailarina, esguia, misteriosa, de pele branca e cabelos negros, de costas para ele, diante da porta daquele mesmo quarto. Ela parecia dançar em meio aqueles escombros, indiferente ao caos. Ela havia estado ali. Exatamente ali, onde ele estava.
Sentou-se, com a foto em mãos, contemplando aquela mulher anônima por um tempo que parecia ter durado horas. Quem era aquela mulher? Quando aquela foto havia sido tirada? Ele queria saber mais, descobrir o seu nome, conhecê-la. Não tinha como dizer a idade daquela foto. Aquela mulher poderia ter 20, 30, 70 anos. Talvez nem estivesse mais viva.
Observou a foto, cada contorno, do quarto e do corpo. As paredes descascadas em contraste com as pernas lisas, esguias, compridas. As mãos delicadas, segurando os batentes da porta. O corpo esticado, como um cisne. Ela era linda, ela era perfeita, ela havia confiscado seu olhar. Percebeu que seu coração batia num compasso acelerado e, quando notou a boca e os olhos secos, paralisados, tomou conhecimento que sua mulher o chamava da porta.
Virou-se, com um sobressalto, como se tivesse tomado um susto. "O que está fazendo?", ela perguntou com um sorriso sincero, "parece ter visto um fantasma". Ele desconversou, como se tivesse escondendo algo. E, sem que ela percebesse, guardou a fotografia em seu bolso. Beijaram-se. "Não foi nada", ele sussurrou em seu ouvido, "estava desatento, só isso".
Mas não era só isso. E ele soube, no instante em que disse aquelas palavras comuns. Abraçava a sua mulher, mas era na bailarina que moravam os seus pensamentos. E ele sentiu culpa, como se estivesse escondendo uma amante. Sorriram e, de mãos entrelaçadas, desceram para um jantar improvisado na sala.
Uma obsessão começava a nascer em seu corpo. Aquela mulher. A bailarina. Lembrava que havia pesquisado sobre aquela casa, há décadas abandonada. Não havia história, pelo menos não uma recente. Não havia registros de antigos moradores. Nada. Aquele sobrado, até onde sabiam, sempre fora um lugar condenado e vazio. Mas, então, quem era aquela mulher na fotografia? Para quem ela posava? Por que razão aquela foto havia permanecido ali, onde nenhum outro vestígio podia ser achado?
Os meses foram passando, as paredes foram ganhando vida, cores, quadros. A casa foi sendo ornada com utensílios, móveis, tapetes, aparelhos eletrônicos. Os corredores ganharam música, a sala passou a ter mesa e cadeiras. Os escombros cediam lugar, pouco a pouco, a uma casa de sonhos, habitada por pessoas felizes.
Na superfície, pelo menos, era assim. Eles eram felizes. Superficialmente felizes. Ela saía para trabalhar, todos os dias, e ele, que trabalhava em casa, como um semi-bem-sucedido escritor, contava os segundos para ver a porta se trancar por trás de sua mulher. Era quando ele sacava a fotografia do seu bolso e contemplava a bailarina. Havia criado nomes, cenários, histórias para aquela foto. Para ela, a sua amante.
Inúmeras vezes despia aquele corpo, às vezes com delicadeza, às vezes com voracidade, rasgando os tecidos, feito um animal selvagem. Todas as vezes, ela ria, como se satisfeita, seduzindo-o com facilidade. Havia perdido a conta de quantas vezes havia feito amor com a bailarina. Havia perdido a conta de quantas vezes os dois deitaram-se naquele assoalho, suados, ofegantes, corpos entrelaçados, úmidos, exaustos.
Ver a sua mulher partir era o começo do seu dia e ele amaldiçoava feriados e finais de semana, porque significavam que ele ficaria sem vê-la. A bailarina. Quando a sua mulher voltava, ele começava a ensaiar seu sorriso de saudade, meticulosamente construído enquanto ouvia a chave destrancando a porta. Ela chegava sorrindo, com uma novidade na língua; às vezes trazia pães, queijos, vinho. Às vezes os três saíam para jantar. Todas as vezes celebravam o reencontro, a saudade, o fim da ausência.
Superficialmente.
Superficialmente.
Até que um dia a sua mulher encontrou a foto. Guardou-a de volta no bolso, mas estranhou quando encontrou a mesma foto no bolso de camisas diferentes. Decidiu confrontá-lo. Perguntou a razão de ele carregar a fotografia no bolso de toda a camisa que vestia. Ele desconversou, sem habilidade. E tentou tomar a foto de suas mãos. Ela se assustou com aquele ímpeto. O que era aquela foto? Qual a sua importância? Ele pareceu no limite de perder o controle. Queria a foto de volta. E saltou sobre a sua mulher, feito um lobo. Ela já não reconhecia o homem com quem havia se casado.
Lutaram intensamente no chão. A foto saltava entre suas mãos, até que sua mulher se desvencilhou daqueles braços que a prendiam com força. E, com um movimento rápido e preciso, prometeu destruir a fotografia com um isqueiro aceso de forma ameaçadora. A chama flertava com a ponta da fotografia, perigosamente.
Foi a gota final. Cego pela fúria, ele empurrou a sua mulher, que deixou a fotografia voar, desacordando ao bater a cabeça no chão. Ele projetou-se em busca da sua fotografia, sem perceber as chamas que começavam a lamber os tapetes e cortinas ao seu redor. Beijou a foto, com devoção. Ela estava ali, de volta, segura, em suas mãos. Suas mãos apaixonadas. Sua bailarina.
Quando os bombeiros chegaram à casa, não havia muito mais ser salvo. Restava o esqueleto ainda fumegante de um sobrado antigo e os corpos carbonizados de um casal jovem, que havia chegado ali para começar uma vida. Aquela tragédia urbana, aquela infelicidade sem nome, aquele absurdo.
Não havia restado nada, absolutamente nada, que pudesse contar a história daquela casa ou de quem um dia tivesse morado ali. Apenas uma fotografia, no chão, anônima, de uma bailarina, esticando seu corpo graciosamente na porta de um quarto.
Um comentário:
Todos somos seres tendenciosos a paixões.Uma tragédia urbana,literária,fantasmagórica,noir.
Gostei muito.
A estória de um ''enlouquecimento''.
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