sábado, 3 de março de 2012

A SEREIA

Ele parava por horas, na janela do seu quarto. Olhando o movimento da rua, as pessoas indo e vindo. Carros, animais, folhas de jornal voando no vento. Perdia a noção do tempo ali. Não apenas por ter sempre sido um rapaz distraído, destes que erram endereços, mas porque aquele era o melhor canto do pequeno apartamento. O mais iluminado, ventilado. O lugar ideal para fumar e meditar sobre os problemas, naquela sua fábrica diária de converter o impossível em citações.

Ele era só. Muito só. E sabia disso. Era cercado por pessoas, sim, mas destas desimportantes. Como também eram seus amores ocasionais. Seus amores de microondas. Fáceis, instantâneos, sem sabor. Sentia saudade do tempo em que sentia mais as coisas. Em que seu coração pulsava mais forte. 

Seu corpo era um poeta e acabou se tornando um operário. Operações básicas, automáticas, de mínima complexidade: acordar e dormir; assear-se; vestir-se; comer, beber, fumar; e todas as micro necessidades que permeiam o dia de um homem só: esportes, jogos de adultos, compras, arte, sexo. E um grande vazio que o engolia centímetros a cada manhã. Ele era como Veneza, sendo devorado pelo mar, aos poucos. Só não sentia-se como Veneza. Ele era aquela cidade. Frio, cinza, concreto, real.

Na sua cabeça ainda martelavam as palavras de sua namorada. Sua última namorada. A que realmente havia importado antes daquela série de rostos sem nome - ou nomes sem rosto - que ele acabou esbarrando para se proteger da solidão. Aquelas últimas palavras. E ele sentia aquilo. Ele vestia aquelas palavras. Enamorava-se delas. Aquele amódio que habitava seu corpo. Aquele amorte.

Pegava-se chorando, às vezes, sem perceber. Surpreendia-se com um filete de água, escorrendo o seu rosto. E antes de nomear a lágrima como lágrima, olhava para o teto como se em busca de uma goteira. Então compreendia que seu corpo estava se manifestando. E deixava seus olhos se nublarem e derreterem num punhado de lágrimas sinceras que sempre vinham acompanhadas de soluços sofridos. 

Sentia-se triste. Sabia-se tão triste. E já nem entendia mais onde começava aquela tristeza, onde acabava, e o que era sua própria essência. Enxugava o rosto com o punho da mão fechada, o cigarro dando seus últimos suspiros. Fechava a janela. Voltava a dormir. Tentava dormir. E em suas tentativas incessantes via, todos os dias, os raios de sol costurando tapetes em seu rosto, cama, quarto. Até o dia nascer por completo diante dos seus olhos abertos.

Seu trabalho ainda era elogiado. Alimentava-se disso, como um vampiro. Ele ainda era reconhecido. Ainda era referência. Mas ele sabia de sua mentira. Sentia-se uma mentira. Celebrava-se naquelas ocasiões fugazes, recheadas de risos e conversas inúteis, como as pessoas normais fazem. Sorria, flertava, tocava, fingia. Enquanto ouvia os gritos em seu cérebro. As súplicas para que ele voltasse à caverna. Para que ele se escondesse. O vampiro.

"Serei inesquecível para alguém?", pensava. "Alguém ainda se lembra de mim?". "Verdadeiramente?". Atormentava-se com exercícios diários, feito um monge. Pensava nos colegas de escola, companheiros de trabalho, amores, amigos, amigas, aquelas fotografias mentais; algumas com nome, algumas com sobrenome, algumas sem nada. 

Não sabia se existia. Às vezes achava estar desaparecendo, feito um prisioneiro de algum paradoxo do tempo; como se seu corpo fosse se desintegrar a qualquer momento. Beliscava-se. Criou esse hábito curioso. Precisava saber que estava ali, acordado, inteiro. No metrô, no ônibus, nos restaurantes, lojas, cruzando as pessoas na rua. Beliscava-se. 

Estava ali. Ainda estava ali.

Até que esbarrou no questionamento final. "Qual o sentido?". Escancarou sua janela. Aquela janela apertada, meio secular, onde ele apreciava se sentar ocasionalmente. Sentiu a brisa suja invadindo seu nariz. Aquele cheiro de poeira, de rua. O apartamento pequeno invadido por aquele caleidoscópio de sons caóticos, confusos. Aquele caos urbano, compacto. Então debruçou-se perigosamente, dobrando seu corpo sobre o parapeito. Viu as pessoas pequenas, caminhando lá embaixo, e lembrou das formigas que torturava quando era criança. Lamentou-se disso também. 

Um pedaço longo da cinza do seu cigarro se desprendeu, transformando-se em vento e desaparecendo.

Suspirou de olhos fechados.

E então viu algo. 

Na janela do prédio em frente ao seu, uma menina acenava para ele. Sorridente. Feliz. Iluminada, como um farol. Como se aquela janela contrária fosse o sol, opondo-se à escuridão da sua. Ela acenava, convidativa. Fazia brincadeiras com as mãos e caretas desavergonhadas que o fizeram rir. Cabelos pretos, feito carvão, soltos grosseiramente numa chuva de fios levemente ondulados. E um olhar destemido que o seduziu imediatamente, feito uma sereia. E então ela acenou para que ele fosse até lá. 

A janela de seu apartamento se fechou com violência quase ao mesmo tempo da porta, enquanto ele voava pelas escadas, ainda vestindo um braço do casaco. Passos desencontrados que, a cada degrau, pareciam conspirar contra ele. Mas ao invés de cair ele sentia como se voasse. Porque de repente algo fazia sentido. Mesmo que ele não soubesse o quê exatamente.

Parou diante da entrada do prédio, como um cruzado diante do templo. Sorriu. Ajeitou-se. Buscou o que ainda restava da pessoa que ele fora um dia. Seus romantismos e filosofias. Seus artifícios que o ajudavam a vender-se como o mais interessante de todos os seres. E subiu as escadas ansiosamente. Queria encontrá-la. Precisava encontrá-la. A menina de cabelos escuros e olhos de sereia.

Ela já o esperava com a porta aberta, para saudá-lo. Como se o conhecesse. Como velhos amigos. Antigos amantes. E, num abraço enamorado, cheio de saudade, ele viu que desapareciam. Ele não estava mais lá. Nem ela. Nem o prédio. Aquela fenda no tempo. Aquele segredo urbano. Aquele terreno baldio, aquele velho terreno abandonado, onde um dia um prédio secular fora erguido e derrubado; e onde os dois viveriam para sempre a doçura dos sonhos, felizes cativos dentro de um lapso na linha do tempo. Dentro de uma falha, um equívoco.

Pertencendo a si mesmos e a tempo algum. E tão felizes.

Um comentário:

Ludmila disse...

Este é um dos textos mais bonitos que já li.Um sopro de lirismo com ótimas metáforas.Parabéns.