segunda-feira, 26 de março de 2012

O TERCEIRO GRUPO

Vovô Antônio, carinhosamente conhecido como "Vovô Epitáfio", foi um dos homens mais engraçados, charmosos e carinhosos que tive o prazer de conhecer e conviver até hoje. Ele era o maquinista da nossa família, colocando as nossas vidas no trilho, nos resgatando dos nossos erros e nos aconselhando de maneira sábia, altiva, engraçada.

Ele tinha uma aura inegável de personagem de livro, meio inesquecível, meio inventado, meio mágico; e exigia muita paciência da minha vó, com seu humor nem sempre compreensível e uma energia que cansava até mesmo os netos pequenos. "Eu sou um homem vulgar, Matilda, mas minhas intenções são sempre as melhores", ele respondia para as máscaras de fúria da minha vó.

Se ao menos ele soubesse como não havia absolutamente nada de vulgar ao seu respeito. Vovô Antônio era, na falta de uma palavra mais adequada, o meu herói.

Ele dançava com as moças da nossa família. Eram dele as primeiras danças, não importando quais fossem as ocasiões. Ele brincava com as crianças, debatia com os adultos e, quando sua saúde o permitia, aventurava-se nos esportes e jogos conosco, os adolescentes. Cozinhava pratos inexplicáveis, que pareciam saídos de livros de bruxos e fazia desenhos e caricaturas da gente, tão distorcidos que nem Picasso conseguiria um efeito similar. E ria de si mesmo e ria com a gente.

É a primeira imagem que me vem à cabeça quando penso nele. Rindo. Sempre rindo.

Mas um hábito, entre tantos que o marcavam, era o mais pitoresco. Vovô Antônio tinha pavor mortal da ideia de morrer sem se despedir de nós. Ou melhor, ele sentia pavor de morrer sem dizer as palavras certas, as palavras ideais. E isso fez com que ele fosse carinhosamente batizado de "Vovô Epitáfio".

Era comum, quase rotineiro, ouvirmos citações, poemas - às vezes em outros idiomas, nos originais - ou discursos inflamados, feitos de improviso. Ocasionalmente uma piada, um enigma, uma lição, uma fábula. Outras tantas vezes ele gostava de parar solene, diante de nós, e balbuciar um punhado de palavras arquitetadas, feito um arauto. Quem sabe não seriam justamente aquelas as suas palavras finais?

As despedidas, das mais importantes às mais corriqueiras, eram marcadas por estes eventos que, com o tempo, passamos a aguardar ansiosamente. Meu avô viajava todos os anos com a minha vó. No aeroporto, antes de entrar no salão de embarque, quem estivesse por ali ouviria uma despedida apaixonada, marcada por metáforas comoventes e ensinamentos sobre como deveríamos nos amar, nos respeitar, nos perdoar. Nos casamentos, as mais lindas reflexões sobre o amor eterno, com direito à canções medievais ou citações em italiano de Dante Alighieri. Formaturas, aniversários, enterros. Sobretudo estes. Numa saída de um restaurante, ao final de um almoço familiar no domingo, ou mesmo antes de dormir, não havia uma ocasião em que Vovô Epitáfio não roubasse alguns preciosos segundos da nossa atenção com uma apaixonada reflexão que deveríamos guardar como se fosse a última.

Às vezes, até mesmo antes de ir ao banheiro.

Ele era um contador de histórias nato. Desinibido e performático, vovô narrava passagens quase bíblicas da sua vida - todas prontamente corrigidas pela minha vó Matilda, não muito dada à ficção. Ele narrava as aventuras de guerra do nosso bisavô, apesar de sabermos que ele nunca estivera em guerra alguma. Fortunas conquistadas e perdidas da noite para o dia. Amores sequestrados nas janelas, seu sonho em ser piloto de avião, suas amizades com as estrelas do cinema americano. Sabíamos que eram todas deliciosas mentiras e ele mesmo gargalhava com as incongruências e inverossimilhanças que até as crianças notavam sem dificuldade.

Vovô Antônio ria, dobrava de rir, aquele sorriso contagiante, largo, de orelha à orelha. Ele era um ser iluminado, feliz, de outro planeta. Salvo pelo seu mórbido costume de dizer suas últimas palavras centenas de vezes ao longo do dia, ele era a presença mais querida em todos os nossos encontros. Uns riam, uns tantos se envergonhavam, um pequeno punhado chorava e se comovia realmente com aquelas palavras meditadas.

E eu sempre estive entre os do terceiro grupo. Porque eu sabia, eu sabia, que aquelas não eram palavras inventadas, banais. Vovô sentia aquilo. Ele não queria sumir. Não queria desaparecer. Não queria partir sem deixar vestígio, sem se eternizar por meio das suas despedidas. Ele queria deixar algo, para que nos lembrássemos dele. Aquela família gigante que ele tanto amava.

Ele acompanhou todos os passos da nossa vida. Da minha vida, ou pelo menos os mais importantes. Meu amigo, meu confidente. Ele esteve lá durante todos os nossos casamentos, separações, formaturas, nascimentos, mortes. Ele esteve presente, nosso bardo amado que acreditava nos nossos sonhos mais fúteis e não nos deixava aceitar que não éramos simplesmente os seres mais incríveis do planeta.

Como ele era. Melhor, como ele nunca soube que era.

Porque ainda lateja a cicatriz no meu coração, quando lembro dele, que partiu numa noite qualquer, dormindo, sozinho. Sem dizer adeus, seu maior medo enfim se concretizando. Um medo em vão de quem jamais seria esquecido e que, ainda hoje, sobrevive nas nossas memórias mais queridas.

Com apenas uma pequena diferença. Agora todos pertencemos ao terceiro grupo. 

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