terça-feira, 20 de março de 2012

O PREÇO

Uma das lições mais importantes que a minha mãe me ensinou até hoje é que "nada de bom acontece depois das 2 horas da manhã". Segundo este raciocínio, antes que o relógio batesse as duas da madrugada, era hora de estar em casa, em segurança, longe dos seres e eventos obscuros que ganham as ruas da cidade. E ela estava certa.

Mas esta é a história do dia em que eu decidi não seguir esta regra.

* * *
Já havíamos perdido a conta do que tínhamos bebido, na noite em que saímos para comemorar os primeiros grandes acontecimentos das nossas vidas adultas. Ao mesmo tempo, celebrávamos um casamento, uma descoberta de paternidade, a compra de um imóvel, a compra de um automóvel cujo valor beirava os 6 digitos. E, com a minha taça erguida, eu não tinha envolvimento direto com nenhum daqueles eventos.

Na aurora dos meus 30 anos, eu era um cronista do que acontecia na vida dos meus melhores amigos. Narrava, comemorava, me emocionava com aquela abrupta onda de realizações que inundavam as nossas vidas feito um tsunami. E eu flutuava sobre ela, não como um surfista, mas como um náufrago, erguendo-me com sofrimento sobre uma solitária tábua de madeira. Sorria, com honestidade, e não media palavras nem elogios. Mas sentia aquele peso, aquele vazio, que me obrigava à reflexão inevitável: "todos estão acontecendo, menos eu".

Eu acreditava que quando chegasse aos 30 a minha vida já estaria resolvida. "Figured out". Não estava. Eu não era pai, na verdade nem era casado, e nem tinha perspectivas disso no meu horizonte. Não tinha a carreira dos meus sonhos. Não era dono de um imóvel, tampouco de um carro de 6 digitos. Não que isso importasse, verdadeiramente, mas eu me intrigava com a ideia de que não era protagonista de nenhum grande evento da vida adulta. Eu vivia, apenas, mas não construía.

Essa é a história sobre como eu mudaria tudo isso. E, talvez, por isso, seja considerada uma história de amor. Ou de fantasma.

Ou ambos.

Exatamente às 2 horas e trinta de oito minutos - meu relógio não me deixa mentir, já que eu o consultava feito Cinderela às avessas - nos despedimos e cada um seguiu seu rumo. Eu teria de virar à direita e andar algumas boas quadras até o meu apartamento. Poderia tomar um táxi. Ou, simplesmente, poderia virar à esquerda.

Foi exatamente o que fiz.

Como num impulso, segui ao contrário do caminho, sem saber ao certo o que eu estava fazendo, ou para onde me dirigia. Hoje, lembrando de todos os eventos que se sucederam naquela madrugada, é como se houvesse uma linha e eu estivesse sendo puxado, feito um peixe indefeso.

Continuei caminhando, aquele frio da noite entrando pelas calças e gola da camisa, e tive a sensação de que a iluminação da rua começava a perder alguns tons, indo do amarelo ao bege ao cinza. Como se a vida estivesse querendo ficar em preto e branco. Ou quase isso. Foi quando encontrei uma porta vermelha, ao final de uma escada, com os dizeres "entre sem bater". Naturalmente, entrei.

Ali, encontrei um dos ambientes mais inexplicáveis de toda a minha vida. Era uma loja, velha e úmida, como se vendesse antiguidades. Ao mesmo tempo, era uma sala decorada com todo o tipo de item sem utilidade. Poderia ser um pequeno museu, um depósito, ou tudo isso ao mesmo tempo. Ao final, envolta numa penumbra e algo que parecia fumaça de incenso, estava uma mulher. Uma mulher estranha.

Cabelos crespos, olhos amarelados, unhas cumpridas e dedos magros, ela parecia uma bruxa. Com um gesto lento, insinuou para que eu me sentasse à sua frente, numa poltrona coberta de mantos empoeirados. Ela não falou uma palavra e tampouco eu conseguia identificar o contorno do seu rosto. Apenas aqueles olhos amarelos, feito moedas, e as mãos que se projetavam da escuridão. Na dúvida entre o medo e a curiosidade, decidi ficar. E como a minha vida seria diferente se eu tivesse ido embora.

Após minutos - talvez horas - de silêncio, a mulher misteriosa empurrou um envelope sobre a mesa. O papel parecia ter duzentos anos e quase se desfazia nos meus dedos. Tive a impressão que ela sorria. Dentro, nada mais que um bilhete, em letra cursiva, quase desaparecendo:

"Seus sonhos em troca de um segredo.
Ou devolva o envelope e esqueça desta noite para sempre".

E então entendi. Não precisamos trocar nenhuma palavra. Era como se ela navegasse a minha mente. Eu iria conhecer a mulher dos meus sonhos e ela seria o primeiro passo para uma série infindável de eventos que narrariam uma vida de felicidades plenas e conquistas sem fim. O sonho máximo. Desde que eu jamais, em hipótese alguma, confidenciasse aquele segredo a ninguém. Absolutamente ninguém. Desde que ele morresse comigo.

E foi exatamente isso que aconteceu. O amor, os filhos, os imóveis, os carros de 6 digitos ou mais. Uma vida palaciana, que todos querem viver. Uma troca estranha, confesso. Um preço irrisório a pagar. E cumpri meu compromiosso. Ninguém, a não ser esta folha, sabe desta história. E assim será até o ocaso do meu tempo.

* * *
"Existe algo que há anos eu sonho em te confidenciar", ele disse, a voz engasgando, aquela despedida inevitável. Ela o olhou intrigada, por segundos, segurando sua mão com força. O monitoramento cardíaco num compasso preguiçoso, indeciso. E então ele contou, com riqueza de detalhes, a origem de tudo, até aquele dia, entregando-a um velho livro de memórias, de onde caiu um envelope muito velho.

"Você jamais deveria ter me contado o seu segredo", ela respondeu, abandonando a mão dele. Os olhos amarelos, se projetando de uma névoa que gradualmente inundou o quarto do hospital. E então somente sombras, aqueles olhos de gato, e uma mão, de unhas compridas, que o arrastou para o vazio.

Era hora de pagar o preço.

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