sábado, 17 de março de 2012

FELIZES PARA SEMPRE

"Oh, Deus, eu sei que já faz tanto tempo que não conversamos. Eu fui negligente com as minhas preces, durante todos esses anos, eu sei, e talvez por isso tanto tenha dado errado. Mas peço a Sua ajuda, hoje. Para consertar pelo menos um erro. Pelo menos esse, Deus, pelo menos esse". De punhos fechados, à frente do rosto, olhos cerrados, joelhos doloridos, ele conversava com Deus naquela noite, após tantos anos de silêncio.

* * *

Seus pés sempre ficavam impregnados com a areia do parque. Brincavam juntos, todos os dias. Eram inseparáveis Não tinham pouco mais que seis anos de idade, mas diziam que se casariam e seriam felizes para sempre. Ele e Ela. Aquelas duas crianças felizes. As fotos de final de ano, registrando seus sorrisos que, pouco a pouco, ganhavam novos contornos, novos traços, que vão denunciando que o corpo deseja ganhar novos centímetros. Estavam crescendo.

A vida os separou rapidamente. Mudança de escolas, mudança de endereços, de telefones. Um amor infantil que se perdeu na poeira do tempo. As fotos abandonadas nos álbuns. Envelhecidas. Aqueles sorrisos infantis emoldurados. Aqueles sorrisos inocentes dos dois que se casariam e seriam felizes para sempre.

Na faculdade, num acaso do destino, se reencontraram rapidamente. Um encontro espontâneo, um abraço que parecia colado com cimento; não conseguiam separar os corpos, que pareciam imantados. Aquela felicidade inebriando cada gota do sangue, fazendo o coração trepidar dentro do peito em desespero. "Por onde andavam?", "o que haviam feito?", tantas perguntas, tantas respostas, tanta vontade de atualizar as vidas. Sincronizar as vidas. Namoravam pessoas diferentes à época. "Nos vemos um dia desses".

Não se veriam.

Os anos passando, revirando as folhas dos calendários, feito outono. Dias, semanas, meses, anos, estágios, trabalhos, namoros, quase noivados, separações, loucuras juvenis, viagens para expandir horizontes. E eis que, num dia qualquer, o destino quis que os dois se encontrassem novamente. "Por onde andavam?", "o que haviam feito?", tantas perguntas, tantas respostas, tanta vontade de saber um do outro. 

Encontraram-se brevemente. Um restaurante na beira do mar, um pôr-do-sol se desenhando no horizonte. Um date. Um dia mágico. Compartilhavam memórias como se pudessem parar o tempo. Aquele tempo que era só deles, aquele mundo que era só deles. Uma rajada de vento fazendo guardanapos revoarem, feito gaivotas, até despencarem no mar, desfazendo-se. Riam, quase tocando-se.

Olhavam-se. Aquela vontade desesperada de parlamentar tantas confissões, tantos segredos, tanta história contida, escondida. Aqueles olhos sedentos, famintos. Aquelas mãos desesperadas para se encontrarem. Aquelas bocas secas, ansiosas, atraindo-se incontrolavelmente. Traíndo-se incontrolavelmente. Mas ele sabia que nada deveria acontecer. Dois dias depois ele iria mudar de cidade para trabalhar. "Qual o sentido de começar algo agora?", pensou. "Isso só significaria sofrimento e uma centena de novas perguntas sem solução". Havia um caminho mais fácil para seguir.

E então ele mudou de cidade. Trabalhou, casou, separou. Casou de novo, filhos, apartamentos. Fez aquele circuito que marca a jornada de amadurecimento de um homem adulto. As provações, as privações, as dores, as delícias. Aquelas fotos escondidas que ele revirava todos os anos, como num aniversário, aquelas lembranças, aquele punhado de cartas, de e-mails. Aquelas lembranças fugazes, que ele guardava num canto de sua memória, tocando o peito toda a vez que lembrava dela. Pensava nela todos os dias de sua vida. Aquela lembrança que machucava seu coração, feito uma agulha insistente. Aquelas perguntas constantes, sem resposta, martelando sua sanidade. "E se eu tivesse ficado?", "e se eu tivesse feito diferente?". Jamais saberia.

Os cabelos ganhando contornos prateados. Os ossos, os músculos começando a denunciar a passagem dos anos. Óculos, contas, poupança, noites mal dormidas, problemas, rotina. A vida passando pela janela. Aquela vida boa, feliz, tranquila. E aquele grande vazio que o assombrava. Aquele abismo secreto, que ele não dividia com ninguém. Aquele segredo.

Descobriu, por acaso, que ela havia se mudado para a sua cidade. Era um absurdo, era inacreditável. Mas era verdade. As brincadeiras do destino, que o maltratava feito um torturador. Tantos anos já haviam passado, aquelas décadas que haviam gastado sua juventude, sua capacidade de ser irresponsável. Procurou-a. Acharam-se, afinal. Veriam-se, afinal. Aquele seu "Amor nos tempos do cólera". Aquele seu romance pessoal. Aquela sua história de filme, em que os dois sairiam do restaurante e viajariam o mundo juntos, deixando tudo para trás. Não poderiam mais ter filhos juntos, mas teriam cães, gatos, o que ela quisesse. Uma casa, um barco, um castelo.

Viveriam o tempo que ainda restava, compensando aquela eternidade perdida. Ele engasgava com o pensamento sofrido de que jamais conheceria a juventude dela, jamais teria o sabor de tê-la visto envelhecer. Jamais poderia dizer que acompanhou sua vida na palma de suas mãos, feito livro de cabeceira. Teria aquele tempo que restava e só aquele.

Pediu para o taxi parar rapidamente. Aquela igreja brilhante, despontando em sua janela solitária. "Só uns minutos, por favor". Voltou ao carro confiante, feliz, quase correndo. Ajeitou a gravata, os cabelos. Ainda se achava um homem bonito.

Encontrou-a sentada no restaurante. Uma meia luz iluminando seu rosto, os cabelos levemente prateados, como os seus. Reconheceu todos aqueles contornos, como se o tempo não tivesse passado. Os cabelos escuros, os olhos pequenos, meio infantis. O sorriso doce, aquela boca delicada, a pele fina, frágil. Ela havia envelhecido também, mas o tempo havia sido gentil com ela e o seu coração disparou como se nenhum segundo tivesse passado. Ela estava ali. Seu amor infantil. O amor de sua vida.

Ela se levantou. Cumprimentaram-se cordialmente. Abraçaram-se educadamente. Seus olhos fechados. O perfume, o cabelo dela encostando em sua bochecha. A sensação de tocá-la novamente. Sentir suas costas, sentir os seus braços ao redor do seu corpo. E por alguns mágicos instantes, podia sentir a areia dos intervalos da escola em seus calcanhares. O suor no uniforme. As roupas semi rasgadas da faculdade. Era ela. A mulher que havia passado. A mulher que ele havia perdido para a vida. Ela estava ali, diante dos seus olhos incrédulos, feito uma miragem.

Conversaram por horas. Aqueles risos contidos, disfarçados. Aquela tensão saborosa no ar. As rugas sob olhares curiosos. Elogios à comida, ao vinho. Narrativas de vidas separadas. Casamentos, filhos, carreiras, jogos de adultos. Tanto tempo havia passado. Tanto tempo...

Uma lágrima escorreu, delicadamente, do seu rosto enquanto conversavam. Ela não percebeu. Ele disfarçou com destreza. Brindaram então à vida. Por fim, abraçaram-se uma última vez. Aquela dificuldade em separar os corpos, como se ainda fossem crianças. Olharam-se. Aquelas confissões que a boca não ousa dizer e que os olhos gritam sem pudor. Mãos levemente entrelaçadas, anéis de casamentos distintos, esbarrando-se, feito espadas. Semi sorriso, coração pulsante.

Ele a levou até o carro. Uma despedida educada, carinhosa. Ele sabia que não havia mais tempo nem espaço para um "Amor nos tempos do cólera". Eles sabiam. E acenou, enquanto ela seguia o caminho pela rua, até virar a esquina e desaparecer. Como se fosse embora num barco. Levada rio acima. Para um lugar desconhecido. Uma nova lágrima desenhando uma rua discreta em seu rosto.

Suspirou. E então seguiu seu caminho de volta para casa.

Não se veriam nunca mais.

Um comentário:

Anônimo disse...

Terapia de lágrimas...