domingo, 18 de dezembro de 2011

ILUSTRANDO

"Insanidade" - Joseph Minton

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O AMOR E OS SALÕES DE DESEMBARQUE

"Like Crazy" (ainda sem título no Brasil) é um "daqueles filmes". Fica na memória, no coração, na alma. Doendo, fazendo rir, fazendo chorar. Há um bom tempo os filmes românticos não me afetam. É difícil sucumbir, confesso. Mas esse me atravessou de forma arrebatadora, como um atropelamento do qual até agora não consegui me recuperar. Sinto os olhos girarem, como vertigem. O corpo dormente, a cabeça embriagada por um caleidoscópio de sensações, lembranças, saudades. Esse é um filme de amor. Um filme sobre a saudade. Um filme sobre a caótica missão de existir.
Loucos de amor, Jacob e Anna vivem uma linda e dilacerante história

O filme conta a história de Jacob (Anton Yelchin) e Anna (Felicity Jones), um rapaz americano que conhece uma garota inglesa, durante a faculdade em Los Angeles. Como num conto de fadas urbano, os dois se apaixonam à primeira vista e vivem uma intensa história de amor. Até que o visto estudantil de Anna expira e ela precisa retornar ao Reino Unido. Cegos de amor, os dois decidem ignorar a proibição e Anna permanece nos Estados Unidos, violando sua permissão. Isso implica num banimento que a impede de retornar.

A partir deste momento, os dois precisam enfrentar um difícil relacionamento a distância, regado por saudade, lágrimas, e um desespero que corrói o peito. Tudo muito bem feito, muito sentido, muito doído, graças a uma atuação magistral do casal que simplesmente brilha na tela como se, de fato, eles fossem as únicas - e últimas - pessoas do mundo. É impossível não sucumbir ao amor de Jacob e Anna. E aqueles que já viveram um grande amor - ou, especialmente, um amor a distância - preparem-se para uma linda e dilacerante história. Destas que não é fácil esquecer. Destas que abrem os baús da memória e nos deixam com os sentimentos à flor da pele.
Um filme para deixar as emoções à flor da pele

Inevitavelmente, a "vida" acontece. E tudo fica complicado por conta de trabalho, desencontros, possíveis novos amores. Mas há algo ali, inexplicável, que aprisiona um ao outro e eles simplesmente não conseguem se desconectar, por mais que realmente queiram seguir em frente. Há algo que volta, um retorno retumbante, que os pegam de surpresa e eles se veem obrigados a voltar para os braços um do outro. Para soluções loucas, para planos infundados, para novos encontros apaixonados, novas memórias, novas fotografias, novas tristes despedidas nos aeroportos.
Uma história sobre a (agri)doce arte de se despedir

Há uma corrida contra o tempo. Um desejo de voltar, sabe-se lá para quê. Eles querem, precisam, urgem "como loucos" em voltar um para o outro. E, pelo curto tempo em que essa linda história se desenrola na tela, percebemos que, se a vida imita a arte, a recíproca também é verdadeira. Nada é muito fácil, o coração não equaciona como matemática, e somos todos realmente criaturas muito complexas.
"Like Crazy" é um filme sobre o amor que realmente existe. Que é parte da vida, caótico, confuso, doloroso

Este é um filme, pura e simplesmente, sobre o amor que realmente há por aí. Sem idealismos, sem fantasia de cinema. Um filme que me deixou em silêncio, com cantos de olhos muito chuvosos. Um filme sobre o amor nos salões de desembarque. Sobre uma impossível história que todos nós já vivemos em algum momento de nossas vidas.

E que dificilmente viveremos novamente.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

MEUS FILMES DE 2011

Foram muitos os filmes de 2011. No entanto, diferente de 2010, apenas poucos realmente "ficaram":
"A Árvore da Vida" (The Tree of Life). Meu filme de 2011, sem dúvidas. Meu filme, possivelmente. 
O arrebatador, devastador, transcendental "Melancholia" também ficou. 
O adorável conto-de-fadas de Woody Allen, "Meia Noite em Paris" (Midnight in Paris), foi uma grata surpresa. 
"Não me abandone jamais" (Never Let Me Go), um dos filmes mais sofridos - lindamente sofridos - que vi em toda vida.
"O Discurso do Rei" (The King's Speech), Collin Firth em seu melhor.
"O Cisne Negro" (The Black Swan), algo de sonho e pesadelo. Um filme quase perfeito.
"Um Dia" (One Day) cresceu em mim. Confesso que não gostei. Depois reavaliei meus conceitos e considero um filme especial, que realmente se distancia das "comédias românticas" rotineiras. Ficou também.

sábado, 3 de dezembro de 2011

DER SCHÜCHTERN MAUS

Ela passava as noites fora. Quase todos os dias, retornando com as primeiras luzes da manhã, para dormir como uma vampira até os primeiros suspiros do sol. Quase todos os dias. Era quando ele arriscava sair de sua toca, timidamente, tateando os contornos do seu buraco com medo de alguma emboscada. Era o seu celebrado banho de lua, as únicas ocasiões em que podia caminhar incólume.

Porque ele sabia que ela era esperta, rápida, mortal. Intuitiva, muitas vezes frustrava suas tentativas de liberdade antes mesmo que ele tivesse coragem de pôr os olhos para fora. Como mágica, surgia uma garra afiada, que quase reluzia, feito arma branca, assustando-o e empurrando-o rapidamente para dentro. Suspirava. Ainda não seria daquela vez. Uma, duas, três, cinco, cem vezes. Ele nunca conseguia vencer. Ela era mais rápida, mais inteligente, mais competente. Ele era mais lento, mais bobo, menos consciente dos perigos que o cercavam.

Ela era sua senhora torturadora. Às vezes não fazia absolutamente nada, como se não se importasse, como se duvidando, tentando-o a se arriscar. Outras tantas vezes enfiava os grandes olhos dourados por entre seu buraco, vigiando-o como dois faróis policiais. Esquerda, direita, em cima, em baixo. "Tente", parecia dizer. E ele se escorava num canto, e com as costas molhadas pela parede úmida rezava baixinho suas preces de rato: "Por favor, Deus, faça ela ir embora. Faça ela ir embora". Mas era como se o Deus dos ratos estivesse ausente.

Ele não possuia nada. Sem comer, começava a definhar. Se não fossem as migalhas que conseguia roubar à noite, quando ela saia, há muito tempo não teria sobrevivido. Brincava com um pequenino botão que, mesmo assim, a gata havia conseguido confiscar. De modo que não havia nada, naquele buraco, a não ser a escuridão e o silêncio. E um desespero que roía o ratinho por dentro.

Ele se questionava porque havia nascido rato? E não cão? E esse pensamento o deliciava profundamente... as imagens que se repetiam e se sobrepunham em sua pequenina mente, como um caleidoscópio. A gata sendo posta para correr, aterrorizada por sua violência impiedosa, sua vingança. Ele se imaginava como um cão gigante, negro, assustador. E, nestes seus devaneios, a gata nem cogitaria ameaçá-lo. Ela sentiria medo dele. Muito medo.

Mas esses pensamentos desapareciam como fumaça e rapidamente ele era lembrado de sua condição. Porque lá estavam os grandes olhos, as garras afiadas que vez ou outra adentravam o buraco tateando no escuro. Ou o rabo comprido, balançando preguiçosamente em algum canto da sala para lembrá-lo, formalmente, que ela estava lá. 

Um dia, exausto, ele meditou por horas diante da pilha de veneno estocada em todos os cantos de sua morada humilde. Olhou para a pilha fedorenta, ainda incrédulo sobre como podiam achar que um rato em sã consciência poderia ingerir aquilo? E sem titubear, avançou sobre o veneno, devorando tudo vorazmente até que começou a sentir-se aéreo, como se estivesse desaparecendo. Sua cabecinha girava e ele sabia que estava morrendo.

Então, como num susto, juntou as últimas forças que ainda habitavam seu corpo minúsculo e saiu vagarosamente de sua toca, colocando-se corajosamente diante daqueles olhos dourados, imensos, que o observavam como duas moedas gigantes. Aqueles rasgos negros, misteriosos, que ele aprendeu a temer durante cada segundo de sua vida. E, como um penitente, deitou-se sob a misericórdia da gata, que o imobilizou sob a pata esquerda e o abocanhou imediatamente.

Em segundos, a gata estava no chão, contorcendo-se em dor profunda. Ela se torcia e se revirava e miava em desespero absoluto, como se algo a estivesse destruindo. Era o pequenino. O ratinho tímido que ainda estava ali roendo suas entranhas de dentro para fora.

A gata sufocava em sua própria saliva, embriagada pelo veneno forte. Até que não se mexeu mais.

Vitória. 

O rato matou o gato.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

ILUSTRANDO


Giorgio DiChirico - "Rua" e
"Nostalgia do Infinito"

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

SONECA


Qualquer pessoa que tenha dois gatos em casa (sobretudo com boa diferença de idade) sabe que é EXATAMENTE assim...

sábado, 19 de novembro de 2011

ILUSTRANDO

Hung Liu - "Lavagem Vermelha"

ARVEL E A GUERRA

Todos os homens na vila guardavam uma lança de combate em casa, que rezavam todos os dias para que nunca precisassem usar. Eram tempos de paz, inegavelmente, ainda que o rei insistisse que todos os homens saudáveis estivessem sempre prontos para tomar armas. A guerra podia chegar. Mas ela nunca chegava.

Alguns creditavam a paz aos feitiços dos druidas que dançavam, meio loucos, no topo do morro, com seus cabelos espetados e roupas esfarrapadas. Outros às mulheres que cantarolavam aos deuses que livrassem seus maridos da guerra enquanto cuidavam das costuras ou do peixe defumado. Alguns outros à inexistência de inimigos aparentes ou suficientemente fortes. Não havia perigo, de fato, e os anos eram uma sucessão de rituais felizes que envolviam as colheitas, o crescimento das crianças e as festividades. 

Mas não para Arvel. Galês, nunca havia se sentido plenamente em casa ali. Vivia, cuidava da sua lavoura, do gado, dos filhos que nem sabia se eram seus. Mas era tão infeliz que já nem sabia ao certo como era a sentir-se de outra forma. Tinha lembranças, claro, mas eram pedaços etéreos e desconexos que envolviam cheiro de carne de porco, joelhos ralados, arcos de freixo pequeninos, maçãs colhidas nas árvores e os cabelos ruivos desgrenhados de sua mãe, Erce.

Arvel tinha seis filhos - sem contar três que não haviam sobrevivido mais que um punhado de semanas - uma casa de barro batido, alguns bois e uma pequena plantação que abastecia sua casa com grãos suficientes para o inverno. Nem muito, nem pouco, o suficiente. Havia lenha na lareira e roupas de lã que, ainda que velhas, puídas e mal costuradas, aqueciam seu corpo magricela nas noites mais impiedosas. Ele era casado com a filha do ancião da vila - algo que dava certo status naquele círculo social rudimentar.

Mas Arvel não era feliz. Dos seus filhos, não tinha certeza se pelo menos um era dele. Sua mulher infernizava cada hora de seu dia e não havia nada, naquele amontoado de cabanas úmidas, que ele pudesse chamar de lar. Arvel já nem lembrava que raios, que ventos tinham levado-o para aquele lugar. Coisas dos deuses que deveriam ter algum propósito para a sua existência. Faltavam tantos séculos até que os homens pudessem descobrir a depressão. Pobre Arvel. Não havia caprichos como esses em seu tempo. Era uma época de embrutecimentos, poucos dentes e vidas curtas. 

Não que sua vida fosse ruim. Na verdade não era. Arvel só era infeliz. Verdadeiramente infeliz.

Mas um dia, afinal, a guerra chegou. E enquanto as mulheres choravam lástimas desesperadas sobre os ombros de seus maridos armados, Arvel era o primeiro da fila, em marcha orgulhosa, vestindo roupa completa de couro e ferro, capa, elmo e escudo. Um sorriso largo o denunciava a quilômetros de distância.

Arvel não estava indo para a guerra. Arvel estava indo embora.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

NO RADAR


Trailer oficial de "Like Crazy". Número 1 no meu radar de filmes que desejo (PRECISO) ver em breve.

PARA VER E OUVIR: STARS ("DEAD HEARTS")

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

ILUSTRANDO

Renee Magritte - "Saudade de casa"

sábado, 22 de outubro de 2011

O PLANETA TRISTEZA

"A terra é um planeta maligno", nos diz Justine em determinado momento de "Melancholia", o novo filme de Lars von Trier. "A vida na terra, pelo menos, é". Difícil falar, explicar esse filme. Eu mesmo não sei ao certo o quanto gostei, o quanto odiei. Não é, nem de perto, difícil de engolir como "O Anticristo" mas isso não o impede de ser igualmente confuso e quase inacessível. Há um certo autismo na obra de von Trier e é preciso ter isso em mente antes de embarcar em um filme seu. Na tela, uma trama sem começo nem fim, tampouco muita explicação. Em 2 atos, o filme primeiro nos mostra Justine (interpretada pela sempre magistral Kirsten Dunst), que vai se casar numa linda propriedade no campo. Um casamento de sonhos, com um homem que parece amá-la perdidamente. Mas algo errado com Justine. Há um monstro a devorando por dentro que, pouco a pouco, percebemos se tratar de uma depressão profunda, uma tristeza abissal, uma amargura desesperadora que faz com que, para ela, a felicidade seja algo inatingível. Filha de pais desajustados, ela parece ser uma pessoa montada por cacos, uma sobrevivente. Ao seu lado, Claire (Charlotte Gainsbourg), a irmã mais velha e que percebemos ser seu único ponto de apoio diante do abismo que parece engolí-la vagarosamente.
Cheio de simbolismos e mistérios, "Melancholia" tem algo de sonho e algo de pesadelo

Mas não há perfeição neste relacionamento, longe disso. Há uma série de sussurros que parecem conversar segredos daquela família e que von Trier não faz questão nenhuma que compreendamos. Justine e Claire são, basicamente, duas sobreviventes. Ao redor desta confusa teia familiar está a notícia de que um planeta chamado Melancholia está em rota de colisão com a terra e não se sabe se ele simplesmente passará por perto ou colidirá em cheio. E, assim, há uma expectativa angustiante, sufocante, em torno da ideia de que todos morrerão catastroficamente a qualquer momento. Uma contagem regressiva que põe tudo em cheque. A vida, subitamente, vai chegar ao fim. E aí lembramos da reflexão de Justine sobre a vida na terra e percebemos que, sem sombra de dúvidas, essa é a menor preocupação de von Trier. Um filme difícil, muito dificil, certamente. Mas que fica na lembrança. Ouvi dizer por aí que "Melancholia" seria a alma gêmea de "Árvore da Vida". Engano absurdo. Os dois filmes são inimigos mortais.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O CONTO DE FADAS DE WOODY ALLEN

"Meia Noite em Paris" (Midnight in Paris) é um lindo, pequenino, conto de fadas de Woody Allen. Uma deliciosa pausa nas suas tradicionais discussões e devaneios neuróticos sobre a existência moderna. Um sopro, um refresco, um bálsamo, um tesouro. Este é um filme mágico e surreal. Literalmente.
Woody Allen flerta com Paris em seu novo filme

O protagonista, Gil (bem interpretado por Owen Wilson), um americano da Califórina, visita Paris com sua noiva, uma típica americana superficial vivida por Rachel Mcadams. O sonho de sua vida era ter vivido na Paris dos anos 20, quando ele poderia ter conhecido tantos artistas incríveis que viviam por lá na época. Sua mulher, porém, não dá a menor bola para esse devaneio e ele se vê debravando sozinho a cidade luz. Eis que, num belo dia (ou melhor, numa bela madrugada), ele se perde em uma de suas andanças. Senta numa escadaria e, quando ouve um relógio bater a meia-noite (como nos contos de fadas) surge um Peugeot antigo, com umas pessoas dentro que o convidam para passear. E ele aceita...
Gil e Adriana dançam e se apaixonam nesta incrível (e impossível) viagem no tempo

De repente, o carro para numa festa que, de fato, está acontecendo nos anos 20 e os anfitriões são Scott e Zelda Fitzgerald. A partir deste momento, acontece uma série de encontros impossíveis com Pablo Picasso, Salvador Dali, Matisse, Ernest Hemingway, Cole Porter e tantos outros. Então ele conhece uma mocinha charmosa, Adriana, que acabou de terminar um romance com Modigliani e os dois se envolvem rapidamente. E qual é o sonho dela? Ter vivido em Paris durante a Belle Époque. E, de repente, os dois se veem nesta época e conhecem os artistas que viviam na cidade, como Toulouse Lautrec.
Salvador Dali (vivido por Adrien Brody) é um dos encontros improváveis de Gil

Basicamente, a discussão do filme é "que antes era melhor", a nossa nostalgia, a inexplicável saudade de um tempo passado, que sequer viviemos, e que sempre é melhor que o nosso presente banal. E um evidente exercício auto-biográfico de Woody Allen que realiza, na tela do seu filme, algo que parece evidentemente um dos seus maiores sonhos. Este é um filme lindo, emocionante e inesquecível.

Um lindo filme, uma linda reflexão sobre a vida. Inesquecível.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

COMO SE MEDE UM ANO?

Rent é um dos mais importantes shows da história da Broadway (estréia em 1996). Obra de Jonathan Larson, conta a história de um grupo de amigos que vivem em New York nos anos 80 e trata dos temas em discussão naquela época, como a recessão, as drogas, a homossexualidade, a liberação sexual e a AIDS. Em 2005, o musical ganhou adaptação para o cinema sob a direção de Chris Columbus. É óbvio que o filme não é, nem de longe, tão bom quanto o musical. Mas vale - como "O Fantasma da Ópera" - para quem quer experimentar a magia e a comoção de uma história sobre uma geração especial e negligenciada como foi a dos anos 80. "525.600 minutos". Como se mede um ano? A resposta não poderia ser mais simples: com amor.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

ILUSTRANDO

Gretchen Kelly, "Soneca de Gato"

RETORNO

Fim de férias e retorno à atividade bloguística.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A FORTALEZA

"Eu não queria te acordar. Mas eu realmente precisava te dizer uma coisa". 

* * *

O toque contínuo fez com que ele levantasse da cama num pulo, assustado. O coração na boca, o pulso disparado, aquela sensação desconfortável de ser acordado repentinamente. Atendeu o telefone e, por longos instantes, ouviu calado o que a voz do outro lado da linha tinha para dizer. Mexia a cabeça, na cadência de um metrônomo, como se algo ali não fizesse sentido. Ora concordava, ora coçava a cabeça intrigado. Sem dizer uma palavra, encerrou a ligação; um bip inconfundível denunciou o fim da ligação no telefone. Descansou o aparelho na cômoda ao lado da cama, pôs as mãos no rosto.

E chorou copiosamente.

* * *

Os dias começavam sempre da mesma forma. Três toques do despertador - uma agradável música de relaxamento - que o ajudavam a despertar como uma criança. Movimentos lentos, curtos e precisos enquanto navegava da cama ao banheiro, do banheiro à cozinha, da cozinha ao banho. No caminho, café forte, cereais, o noticiário local, breve observação de e-mails e um longo banho quente, destes que inundam o banheiro numa névoa quase mística. Sempre era assim.

No dia do seu aniversário, porém - justo aquela manhã - observou-se por mais tempo que o necessário no comprido espelho do quarto. Apalpou o rosto, mexendo sob os olhos, e passou o corpo em revista, descobrindo o óbvio: não estava nenhum dia mais jovem. O corpo, apesar de ainda ostentar um pouco das características de dias mais saudáveis e atléticos, já denunciava a flacidez que chega com a passagem dos anos. Sobras onde antes só havia ruas e avenidas de músculos bem definidos. Fios prateados onde só havia um mar de cabelos castanhos escuros, como avelã. Ossos que já começavam a doer. Exames recentes que exigiam um pouco mais de cuidado.

Decidiu que correria, todas as manhãs, a partir daquele dia.

Retirou um tênis do armário, tão novo que ainda portava a etiqueta de compra. Caro. Vestiu bermuda, camiseta, sacou um tocador de músicas digitais. E seguiu para a rua onde foi inundado pela aquela explosão de sensações que se tem quando se ganha a rua no começo de uma manhã: buzinas, sons, cheiros, pessoas, vento, barulhos desconexos como uma orquestra na qual cada músico tem um plano diferente a seguir.

E seguiu em frente. A passos largos, estimulados pela música que ressoava em seus ouvidos. Sentia-se bem, dono de si, dono do mundo. Os carros passavam correndo ao seu lado, na rua, enquanto ele desviava dos obstáculos móveis que vinham na direção contrária, carregando suas sacolas e caixas. Ele se sentia leve, como se flutuasse, enquanto cruzava pelos transeuntes anônimos na sua corrida.

Sentia o suor escorrendo pelo rosto, o cabelo molhado, pesado sobre a cabeça, os pés e joelhos doloridos após o território vencido. Mas ele sentia aquela embriaguez da endorfina o levar mais longe, mais adiante, além de mais obstáculos. Chegou ao pier, quase 15km distante da porta da sua casa, onde parou para contemplar o mar. A água quebrando lentamente nas pedras, as gaivotas, aquele cheiro salgado tomando o seu pulmão. Era um dia bonito, ensolarado em que ele decidiu viver melhor. Era o seu aniversário.

Decidiu correr de volta.

* * *

A sirene alta parecia não fazer muita diferença diante daquele mar de veículos engarrafados que até tentavam abrir caminho inultilmente. A ambulância conseguiu, com muito sacrifício, se desprender da rua engasgada e ganhar uma avenida mais aberta, onde era possível correr para salvar a vida do homem que havia sido encontrado desacordado em seu apartamento. Suspeita de infarto. Lá dentro, tentativas patéticas de reanimação. O homem não respondia. Mas o carro seguia o caminho frenético.

* * *

A música alta, em seus ouvidos, o deixou desatento. Ao cruzar uma rua, quase foi atropelado por uma ambulância que seguia em disparado, após vencer uma série de carros presos num congestionamento. Parou, recuperou o fôlego e viu o carro branco desaparecer numa esquina adiante. Alguém ali estava sendo socorrido. Sentiu aquela mistura confusa de compaixão e felicidade por não ser ele ali, à beira da morte. E seguiu seu caminho.

Não que estivesse numa crise de meia idade. Não necessariamente. Havia se divorciado recentemente, é verdade, e comprado um carro esportivo, feito uma tatuagem. Bom, talvez estivesse. Mas ele não era um destes homens comuns, de existências comuns. Ele era especial, sabia disso, porque enxergava a existência que há além das entrelinhas. Não era um homem medíocre. Só estava enfrentando a metade da jornada ao seu jeito: descobrindo que correria todas as manhãs para retardar o passo da outra metade adiante.

E estava feliz. Pleno. Limpo. Leve. Na madrugada passada decidiu fazer algo importante. Enfrentar o seu pai. Iria completar 50 anos na manhã seguinte e decidiu dizer ao seu pai tudo o que sempre quis, sem medo; tudo o que sempre esteve preso em seu peito. Uma confissão, uma distribuição de verdades sobre aquele homem que havia tiranizado a sua vida, de sua mãe e irmãos. Aquele gigante, o colosso de sua infância que aterrorizava as crianças com olhares, meias palavras e mãos pesadas. Aquele homem de quase 90 anos, doente, e que seria atacado sem misericórdia no ocaso de sua vida. Seu presente de despedida, o que ele levaria para o túmulo. Aquela tonelada de palavras engasgadas que nem a velhice não seria capaz de defendê-lo. E por horas disse ao seu pai tudo que sempre quis dizer. E desligou. Um corte seco, bruto, um ponto final.

"Eu não queria te acordar. Mas eu realmente precisava te dizer uma coisa".

Havia chegado ao fim aquele tempo de trevas. A fortaleza estava no chão.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

ILUSTRANDO

São Jorge, o antiquíssimo afresco nas cavernas da Capadócia (Turquia). Curioso que esta foto tenha chegado às minhas mãos hoje, primeiro dia de Setembro. Não tem jeito, Setembro tem sempre algo de especial.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

AMOR PLATÔNICO

Jessica Chastain. Repentino e arrebatador. Nunca havia ouvido falar desta ruiva de pele branca feito leite e olhar docemente melancólico até o, também arrebatador, "Árvore da Vida". Ariana (não podia ser diferente), há algo imediatamente hipnotizante a respeito de Jessica Chastain. Um magnetismo que as ruivas de Áries parecem ter, que nos atrai, como se fossem sereias, para o abismo ou para o paraíso. Irresistível. Paixão platônica à primeira vista.

EM ESTADO DE GRAÇA

"Tree of Life" (Árvore da Vida), novo filme de Terrence Malick é, como li numa excelente crítica, uma "experiência religiosa". É impossível descrevê-lo, como cinematografia. Este é um filme para ser sentido. É uma obra de sensações, de memórias, de lembranças e de saudades. Um convite discreto a reflexões tão absurdamente simples que se transformam magicamente em pensamos profundos, caóticos quase desconexos. Este é um filme de rara beleza. Melhor, é o filme mais lindo, mais tocante e mais comovente que vi em toda a minha vida.
A "Árvore da Vida" é uma experiência a ser sentida.
Brad Pitt, no papel de um pai austero nos anos 50 só da (mais) uma prova do seu talento como um dos mais importantes atores do nosso tempo. Ao seu lado, Jessica Chastain, que parece um anjo na tela, como a mãe dos três meninos que testemunhamos a infância. Num contraponto presente/passado, temos ainda Sean Penn, num lindo papel (silenciosíssimo) em que ele se pega relembrando essas doces memórias, a tanto tempo perdidas, de quando ele viveu em companhia de seus pais e irmãos. Cenas costuradas com uma maestria difícil de explicar, cenas que poderiam ser quadros, iluminadas como sonho e marcadas quase todo o tempo por música clássica. E, permeando tudo isso, reflexões sussurradas na tela, como um narrador em prece. Dúvidas, angústias, pensamentos perdidos sobre o amor, a raiva, a perda, a dor, a saudade, a existência de um Deus.
Brad Pitt, em mais uma prova inquestionável de talento que fazem dele um dos maiores atores do nosso tempo.

Não há nada, absolutamente nada como este filme. E talvez nunca haja. Parece pretensioso dizer isso, mas este não é um filme para todos. Longe disso, é um filme para quase ninguém. Um clube fechado, para pessoas que não temem pensar sobre a dor de existir. Um diálogo, logo no começo, nos propõe a pensar que a vida pode ser vivida por duas perspectivas: pela "natureza", que segue seu próprio rumo e desejo e pela "graça". Assim me deixou este tesouro de Terrence Malick: em estado de graça.

ILUSTRANDO

As impossíveis pinceladas do artista francês Francoise Nielly. Belo demais.


terça-feira, 16 de agosto de 2011

OS LADRÕES E O VERÃO INESQUECÍVEL

Num dia excepcionalmente quente e seco, eu e meus dois primos decidimos fazer uma aventura. Como um bando de foras-da-lei, amarramos nossas camisetas suadas e encardidas em torno da cabeça (mais como turbantes do que como máscaras de bandidos procurados) e fomos roubar picolés numa banca de jornais que vendia sorvetes perto da nossa quadra. Que sabíamos nós sobre a vida? Tínhamos todos não mais que 12 anos.

Chegando ao nosso destino, descobrimo-nos ambiciosos. De que serviam três sorvetes se podíamos roubar o freezer que ficava acomodado solitariamente ao lado da banca? Um breve parlamento de olhos foi mais do que suficiente. Juntamos nossas forças e arrastamos o pesado eletrodoméstico para o terreno atrás da casa do nosso avô, onde passávamos o verão.

Não havíamos notado, porém, que deixávamos não um simples rastro do crime, mas praticamente uma estrada aberta denunciando o nosso caminho delinquente como uma linha desenhada à mão. Uma trilha perfeita, ligando a banca de jornal à nossa casa. Mas que sabíamos nós? Estávamos cometendo um delito destinado aos destemidos.

Mal havíamos chegado em casa e o dono da banca - que havia nos seguido - já estava parado, como um colosso, observando o nosso crime com olhar inquisidor. Os três, meus primos e eu, viramos rapidamente, os sorvetes coloridos escorrendo pelos nossos dedos machucados pela tarefa de roubar sorvetes.

Uma poça furtacor se formava sob nossos pés, o grande freezer estacionado ao nosso lado, como um transatlântico. Eis que nosso avô surgiu na janela e se inteirou do acontecimento. Era um homem simples, de bom coração e poucas palavras. Naquele dia, ouvimos um sermão que ficaria na história e que até hoje é contado aos nossos filhos.

Diante do irremediável, nosso avô decidiu pagar pelos sorvetes e pelo freezer estragado, dando-nos como punição a obrigação de tomar cada um dos picolés ali contidos.

Foi aquele o melhor dia das nossas vidas.

PARA VER E OUVIR: SARA BAREILLES ("SONG FOR A SOLDIER")

domingo, 14 de agosto de 2011

MARATONA HITCHCOCK EM PALAVRAS BREVES: OS PÁSSAROS

"Os Pássaros" (The Birds - 1963): um encontro casual num petshop inocente em São Francisco. Melanie, típica loira fatal, brinca ser uma vendedora de pássaros para Mitch, um estranho galanteador que finge cair na conversa. Ele vai embora e ela decide segui-lo, para dar um par de periquitos ao seu flerte misterioso. Isso resulta numa aventura a uma cidade costeira, onde um bando de pássaros misteriosamente começa a atacar a população. Clássico mistério de Hitchcock em que um grupo de pássaros se aglutinando sobre uma linha de eletricidade de repente se transforma numa imagem perturbadora.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

OS GATOS AFRICANOS


Trailer oficial de "African Cats", novo filme da DisneyNature. E uma das coisas mais lindas que vi ultimamente.

PARA VER E OUVIR: VEGA 4 ("LIFE IS BEAUTIFUL")

domingo, 7 de agosto de 2011

ILUSTRANDO

Joseph Minton - "Distância"

PARA VER E OUVIR: COLDPLAY ("STRAWBERRY SWING")

O ARTISTA E A ILHA

No topo do morro, ao centro da ilha onde vivia, ele contemplou as estrelas numa noite de muita inspiração. O mar dançava, sem pressa, sobre a areia, entoando aquela melodia antiga e hipnótica que estimula o corpo a dormir. Ali, sob as estrelas, aquecido diante de uma pequenina fogueira, ele terminou o poema mais bonito já escrito pelo homem. As palavras, costuradas com maestria, pareciam formar um portal para um tempo mágico, para onde era impossível ir sem encher os olhos de lágrimas. E, assim, com os olhos encharcados, ele encerrou seu poema. Incrédulo com tamanha beleza. Adormeceu.

A vida era calma, naquela ilha sem nome, onde ele dividia as horas entre plantas, pequenas correntes de água doce, mangas, cocos e pássaros multicoloridos. Nunca havia visto um vestígio de qualquer expressão humana, e na verdade, já nem lembrava como havia parado ali. O esqueleto de uma velha embarcação, semi-enterrada na areia, e que servia como sua morada, oferecia algumas pistas. As flâmulas rasgadas que haviam sobrevivido, presas ao mastro de madeira morta, despertavam alguma familiaridade em seus olhos enrugados de náufrago.

Ele também gostava de desenhar. Usava pedaços de carvão, seiva de árvores, barro e elaborava painéis espalhados pela ilha como um museu a céu aberto. Num dia qualquer, porém, teve uma revelação. E correu a passos frenéticos para o grande paredão, numa clareira, para conjurar sua obra-prima. Ele sabia que aquela pedra era especial e só poderia ser usada para a pintura mais linda já feita pelas mãos do homem. Com movimentos rápidos e precisos, teceu traços, linhas, formas. Vermelhos, amarelos, azuis, verdes. Como mágica, surgiam paisagens e personagens que fariam Michelângelo enrubescer de vergonha. Nada, absolutamente nada na criação artística humana, seria capaz de se igualar a tamanha beleza estampada na grande pedra que se projetava no canto leste da ilha, como um prédio. Absorto, quase em transe, ele contemplou por horas a sua obra-prima. Comovido com sua própria superação.

Suas mãos, habilidosas, o ajudavam a construir um futuro naquela ilha solitária. Fabricava ferramentas, tecidos, instrumentos de sobrevivência variados e que o ajudavam a passar o tempo. Assim ele também improvisou uma flauta pequenina, que dedilhava com natural habilidade, engatilhando melodias e sons que se misturavam aos sons da floresta como se desde sempre estivessem entre os segredos daquelas matas. Imitava os pássaros, o barulho do vento e do mar. E sentado sob a sombra das árvores criava canções que pareciam narrar, num idioma estrangeiro, os acontecimentos de sua vida. Até que, após tantos anos de prática, ele se pegou soprando uma equação de notas que pareciam sair daquela flauta improvisada como se fossem a voz de Deus. E, novamente com lágrimas nos olhos, ele se enamorava daquele som que tomava seus ouvidos com uma força que parecia entorpecê-lo. Era aquela, sem dúvida, a mais linda melodia já composta pelo homem.

Sua arte, por fim, era a grande motivação para vencer os dias. Supreender-se, continuamente, com o que suas mãos eram capazes de gerar. As mais lindas canções, poesias e pinturas, que faziam daquela ilha abandonada o reduto mais puro e valioso da arte humana.

Até que ele percebeu que nada, absolutamente nada, entre tudo o que havia feito existia. A não ser ali, a não ser para os seus olhos e ouvidos solitários. Aquela arte era sua, somente. Ninguém jamais saberia da existência.

Ele não suportou o peso daquela revelação. E então, do alto da grande pedra, no canto leste da ilha, ele saltou para o infinito, como um pássaro, despencando rapidamente como um fruto maduro, que cai sozinho na mata, sem a percepção de ninguém. Um fruto, portanto, que jamais terá caído.

Como aquela arte. Que jamais terá existido.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

MARATONA HITCHCOCK EM PALAVRAS BREVES: REBECCA

"Rebecca, a mulher inesquecível" (Rebecca - 1940): um milionário encontra uma mulher submissa em Monte Carlo e se casa com ela como quem faz compras numa loja: escolhe e leva para casa. Misterioso, áspero, quase rude, ele leva a jovem para uma vida de princesa numa mansão na Inglaterra. Lá, porém, descobrimos que uma sombra misteriosa ronda cada cômodo e cada lembrança: Rebecca de Winters, a falecida esposa do milionário. A mulher inesquecível, um fantasma que parece estar vivo no imaginário dos empregados e do viúvo. Mas quem foi Rebecca? Porque ela é inesquecível? Mais um filme supreendente do mestre Hitchcock.