sábado, 19 de junho de 2010

PERDIDOS PRAZERES


Mesmo muito doente, meu avô não abriu mão de fazer algo que, desde sempre, eu o via fazer: ir todos os dias, ao final da tarde, à livraria Perdidos Prazeres, que ficava a uma quadra da sua casa. Minha vó contava que ele visitava aquela livraria desde os anos 40, quando ainda estudava Direito. E até a véspera da sua morte ele visitou a livraria, onde ficava das cinco da tarde até as sete da noite. Sempre. Ía sozinho, em silêncio e se despedia da minha vó, com um carinhoso beijo na testa. Todos os dias. 

Minha vó o via se levantar, pegar o paletó e se ajeitar diante do espelho. Ela sorria, disfarçando uma melancólica conformação. Era o que ele gostava de fazer, todos os dias, desde quando se casaram. Após quase 60 anos, não havia mais do que reclamar. Era seu raro, seu único prazer. Ele estava doente e ela apenas dizia para ele tomar cuidado.

Às sete e meia, quando chegava em casa, entrava sorrindo e, nas tardes em que eu passava com a minha vó (mesmo já adolescente), meu avô trazia em mãos pães doces que comíamos com café. Acho que ele era chegado às rotinas. Mas eu nunca entendia ao certo o que meu avô tanto procurava naquela livraria. "Perdidos Prazeres". Ele não me parecia muito apreciador de literatura e, na verdade, entre os poucos livros da casa havia, em grande parte, velhos livros de Direito e alguns de poesia, de minha vó. 

Tampouco ele falava em literatura. Quando tento me recordar, acredito que em nenhum momento de minha vida conversei com meu avô sobre livros. Ele tinha outros prazeres. Gostava de cartas, de música e de partidas de futebol. Gostava de pescar com o meu pai e de festas de casamento. Adorava conhecer os namorados das minhas tias e de brincar com os três gatos da casa. Mas não livros. Pelo menos, não que eu me lembre. Mas ninguém se permitia questionar isso. "É o que as pessoas velhas fazem", minha mãe me explicava quando eu era criança. Meu avô gostava de ir à livraria e ninguém questionava.

Na madrugada em que ele morreu, em casa, sereno e sem sofrimento, minha mãe me acordou à meia-noite. "Vovô morreu". Eu tinha 16 anos na época e lembro de chorar, profunda e copiosamente, exatamente três anos depois desse dia. Estava no primeiro ano de faculdade e visitei minha vó, como fazia quase todas as semanas. Encontrei-a remexendo caixas, gavetas e armários. Ela estava separando dezenas de objetos e roupas do meu avô para serem doados e me perguntou se eu gostaria de ficar com algo. 

Abri o enorme armário de jacarandá - em que eu gostava de me esconder quando era criança - e vi uma coleção de ternos bonitos, bem cortados, destes que jamais ficam fora de moda. "Porque não fica com um?", minha vó interrompeu meus pensamentos. "Acho que ele iria gostar". Passei a mão, carinhosamente, pelos ombros dos paletós, como se me permitisse um último, um atrasado carinho nos ombros do meu avô. E nem percebi quando meus olhos transbordavam em lágrimas que eu não sabia explicar de onde viam. Percebi, apenas naquele momento, o quanto eu amava meu avô e quanta saudade eu sentia. Mas, principalmente, o quão pouco foi o tempo que passamos juntos. Três anos depois. Minha vó me abraçou, com delicadeza, e até hoje lembro do cheiro de lavanda da sua roupa que amparava os meus soluços inesperados naquele dia. 

Escolhi um paletó azul marinho, solitário, já sem a calça. Apenas uma jaqueta muito surrada mas com tanto charme que bem poderia ser vendida numa loja sofisticada ao preço do resgate de um rei. Minha vó sorriu, passou a mão no peito do paletó. Parecia saudosa e me explicou que aquele havia sido o primeiro paletó do meu avô, justamente o único que ele tinha quando era jovem. Ele o havia vestido por todos os anos da faculdade, já que não possuia meios na época para ter mais de um. Minha vó queria lavá-lo, mas eu não aceitei. Vesti-o imediatamente e senti naquela roupa velha o abraço final que não havia dado em meu avô. Senti um conforto imenso, de despedida e fui embora.

No caminho, instintivamente, mexi nos bolsos e nada encontrei. A não ser por um cartão de visitas, tão velho e amarelado, que parecia se desfazer em minhas mãos. Nele, um endereço extremamente familiar, e um nome em letras garrafais, numa grafia que exalava coisa antiga: "Perdidos Prazeres". Ao fundo, apenas um nome, quase desenhado numa linda caligrafia feminina: Amália. Parei alguns instantes, intrigado com aquele pequenino mistério. Quem era Amália? E que motivo havia feito meu avô guardar aquele cartão, intocado, dentro de um paletó mais velho até que o meu pai? 

De repente, senti uma chuva de pensamentos me cobrindo as ideias, como uma onda revolta. Corri, a passos largos, para a notória livraria do meu avô e parei sob a entrada, como um peregrino: "Perdidos Prazeres". Caminhei lentamente, ouvindo um tilintar atrás de mim, destes que denunciam a entrada de um novo cliente.

Não havia ninguém por perto e percebi que era a primeira vez que eu entrava naquele lugar. A livraria era um espaço interessante, antigo, como estas livrarias que vemos nos filmes, com longas prateleiras de madeira e livros do chão ao teto, como um sebo. Havia aquele cheiro de papel, plástico e madeira no ar. Poltronas e tapetes espalhados criavam uma atmosfera aconchegante e, se vivêssemos numa cidade fria, o centro da livraria poderia ser adornado com uma lareira. Mas não era o caso. Foi quando notei o quanto eu estava suando.

"Porque você não tira o casaco, meu filho?", ouvi uma voz doce ao meu lado. Uma senhora de bochechas rosadas e cabelos grisalhos encaracolados me abordou. Havia um brilho em seus olhos e era como se eu a conhecesse. Ela sorria, esperando meu consentimento. Tirei o casaco e entreguei em suas mãos. Ela dobrou com cuidado e descansou o paletó do meu avô sobre uma cadeira.


"A senhora, por acaso, se chama Amália?, perguntei. Ao que ela consentiu, com certa curiosidade. Abracei-a, com muito carinho, e notei que ela retribuiu meu abraço. "Ele a amou por toda a vida, até o último dia", sussurrei. Ela não parecia entender aquela estranha situação e deve ter me julgado como louco, mas disfarçou bem. Quando me preparava para ir, lembrei que havia esquecido o paletó na livraria, mas rapidamente percebi que assim é que deveria ser. Olhei uma última vez para o letreiro e acenei para a senhora, que acenou de volta, por detrás do vidro polido e marcado por longas letras douradas. "Perdidos Prazeres".

Quando voltei meu olhar para a rua, acabei esbarrando numa moça que caiu no chão com o trombo. Ela tinha cabelos vermelhos, compridos, e sorriu do chão quando eu prontamente fui em sua ajuda. Olhamos um ao outro nos olhos por não mais que dois segundos. Ainda segurava sua mão quando ela me deu a entender que precisava entrar. "Você trabalha na livraria?", perguntei. "Não, apenas ajudo a minha vó às quartas-feiras. Ela é a dona, aquela senhorinha ali", disse, ainda sorrindo e apontando para o vidro. "Posso te ver mais tarde?". "Pode. Pode, sim".

E, entre os meus mistérios flutuantes, eu tive todas as certezas que poderia ter na vida.

"Casarei com esta mulher".

sexta-feira, 18 de junho de 2010

E FOI-SE EMBORA SARAMAGO



AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE JOSÉ SARAMAGO (1922/2010)

"Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma".

Foto de Sebastião Salgado (Saramago nas Ilhas Canárias - 1996).

quinta-feira, 17 de junho de 2010

PARA VER E OUVIR: THE STROKES ("I´LL TRY ANYTHING ONCE")


Obs.: Não é um videoclipe oficial (é um fanmade video). Mas nem por isso menos interessante.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

POSTER E TRAILER DE "SOMEWHERE", NOVO FILME DE SOFIA COPPOLA

Após muita espera e especulação, saem o primeiro poster e o trailer oficial de "Somewhere", novo filme de Sofia Coppola (ainda sem título no Brasil). Este será o quinto filme da carreira de Sofia, diretora de talento inegável e estilo inconfundível (apesar de "The Virgin Suicides" ser a sua estreia oficial, o primeiro trabalho de Sofia como diretora e roteirista é, na verdade, "Lick the Star"). "As Virgens Suicidas", "Encontros e Desencontros" e "Maria Antonieta" partilham sempre de uma fotografia onírica (infelizmente "Somewhere" não contará com o talento de Lance Accord), tons e devaneios melancólicos, e são marcados por trilhas sonoras inesquecíveis. Destaque, no trailer, para a música de Julian Casablancas, dos Strokes que já permite sentir um pouco o tom do filme que, a um primeiro olhar, parece se aproximar muito da atmosfera de "Lost in Translation". Na história, um ator de Hollywood (Stephen Dorff) repensa a sua vida após a visita da sua filha de 11 anos (Elle Fanning), tendo como cenário o tradicional hotel californiano Chateau Marmont. Estreia prevista para dezembro nos Estados Unidos (sem previsão por enquanto para o lançamento brasileiro). Literalmente, esperar para ver. Mas quando se trata de um novo filme de Sofia Coppola - pelo menos para mim - a espera sempre vale.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O FASCINANTE FASCISMO DE LADY GAGA


Ela está, indiscutivelmente, cada vez mais perto do poder combustível e criativo de Madonna. E, ao mesmo tempo, fundando um espaço muito próprio na indústria. Lady Gaga, em "Alejandro", flerta perigosamente com o fascinante fascismo, tabus religiosos, a morte e o sexo. Não sei que opinião formar sobre a música (ainda), mas do ponto de vista plástico é simplesmente fenomenal.

terça-feira, 8 de junho de 2010

ILUSTRANDO

Elizabeth Taylor (Retrato) - Andy Warhol

sábado, 5 de junho de 2010

PORQUE GLEE É REALMENTE LEGAL

Confesso, eu também me rendi a "Glee", o novo seriado-teen-musical-do-momento. Mas aí é que está. Ou não está. "Glee" é, e não é, um seriado-teen-da-moda. Ok, é um drama musical, num cenário razoavelmente previsível, onde adolescentes tão talentosos que bem poderiam estar na Broadway cantam pelos corredores de uma escola norte-americana. Há as líderes de torcida, com seus vestidos colados e rabos-de-cavalo, bem como os esportistas e os nerds; os professores compreensivos e os tiranos. E a novela de sempre, sobre quem está apaixonado por quem. Mas, então, porque razão "Glee" é realmente legal e não mais do mesmo? A resposta é simples. "Glee" é cool. Porque é uma fantasia que abre espaço para todos. Não é preciso ser perfeito para estar aqui. Entre os talentos musicais, todos podem brilhar. Negros, asiáticos, latinos, gordos, gays, cadeirantes. E não porque o seriado quer ser politicamente correto e assumir um tom político de "sitcom para as minorias". Não há nada disso aqui e "Glee" não faz questão nenhuma de ser "o seriado sobre os coitadinhos". Sim, há algo "loser" a respeito de ser "Glee", mas quem se importa? É onde todos podem se expressar, gritar a plenos pulmões e não se deixar sufocar (mais) pela sociedade do perfeito. Não é o fim da tirania da beleza na TV mas não tenho a menor dúvida que é um lindo passo em direção a isso. E um passo engraçado, também, e cheio, cheio de charme. "Glee" é o máximo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

QUALQUER COISA QUE FUNCIONE PARA VOCÊ

Woody Allen está de volta, no seu melhor estilo. Com um texto afiado, brilhante e uma comédia ácida, mal-humorada, incrédula, irônica e sem nenhum pudor em ofender e chocar. "Whatever Works" (estranhamente nacionalizado como "Tudo pode dar certo") é um típico filme deste, que é um dos diretores mais controversos, polêmicos, amados e odiados do mundo. Larry David interpreta Boris (no papel central do gênio incompreendido e hipocondríaco), um físico indicado ao Nobel e que vive como um eremita em Nova York, dividindo seu tempo com um punhado de amigos intelectuais, aulas de xadrez para "crianças burras", música clássica e noites sem sexo. Um homem atormentado, que acorda de madrugada em pânico por causa "do horror", canta parabéns enquanto lava as mãos (é o tempo exato para matar os germes) e acha que deveria haver "acampamentos para diretores de cinema" e "campos de concentração para filhos". No centro desta vida segura - e tipicamente woodyalleana - surge Melody, interpretada deliciosamente por Rachel Evan Woods. Ela é uma caipira, do Mississipi, que fugiu do lar protestante em busca de liberdade na Grande Maçã. Por uma casualidade, ela acaba indo morar com Boris e vira a sua vida de ponta cabeça. Quando tudo parece, enfim, revirado, eis que surge a sua mãe, Marietta (Patricia Clarkson), que acabou de ser largada pelo marido e vem para encontrar sua filha em Nova York. Como um vírus, a grande metrópole também exerce um poder fasciante na mãe religiosa e protetora, que descobre talentos e desejos que nem ela conhecia. No meio desta metamorfose de vidas, quando ninguém mais esperava nada, aparece o pai de Melody, John (Ed Bagley Jr.), um homem do interior, durão e filiado à Associação Nacional de Armas, que se arrependeu de ter largado a mãe e vive uma profunda crise existencial. Reviravoltas, reviravoltas e mais reviravoltas, tudo temperado com um dos melhores textos de Woody Allen nos últimos tempos. Já está entre os meus preferidos e é, para mim, o sucessor espiritual de "Desconstruindo Harry", meu favorito até hoje. Como o título sugere, há um pessimismo instantâneo a respeito da sua visão sobre a vida. Mas neste pessimismo há espaço, também, para a celebração da vida, do amor, e de "qualquer coisa que funcione para você". Genial, original, hilário, surreal, histérico, absurdo, ofensivo, perfeito. Imperdível.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

UM FILME PARA SE VER DE OLHOS FECHADOS

"Bright Star" (Brilho de uma paixão) é um filme arrebatador e ao mesmo tempo delicado, comovente, poético e que beira o onírico. É um sonho na tela, ou melhor, é uma tela. Um quadro impressionista, sublime, perfeito. Dirigido por Jane Campion ("O Piano"), a história é um relato biográfico baseado no livro "Bright Star: Love Letters & Poems from John Keats to Fanny Brawne", uma compilação de cartas e poemas de amor escritos pelo poeta inglês John Keats e dedicados ao seu grande amor, Fanny. Os dois, portanto, são os protagonistas e interpretados belamente por Abbie Cornish (Fanny) e Ben Whishaw (Keats), que convencem na condução de um amor sofrido, desesperado e sufocado por uma época em que a paixão não era algo bem visto. Os dois não partilham o mesmo mundo - ele é um poeta romântico, ela uma aficcionada por moda - mas iniciam uma amizade que se converte em amor, tendo a poesia como um idioma.
É um filme. Mas poderia ser pendurado na parede.

O filme é marcado por uma produção brilhante. A fotografia e a diração de arte são de tirar o fôlego, onde cada aspecto em cena parece estudado, para compôr uma peça de arte, como se cada cena fosse um quadro a ser emoldurado. É uma direção feminina, delicadíssima e que transpira beleza. É tudo tão belo que muitos podem talvez nem se encantar tanto com a história (que pode parecer morna demais - mas não esqueçamos do contexto). Mas é impossível não ceder ao arrebatamento visual deste filme, que parece pintado, tecido, por mãos habilidosas e apaixonadas. E é impossível - seria um crime - não comentar a vocalização de "Serenade in B-Flat K 361 - Adagio", de Mozart, que abre os créditos iniciais e é de um tom sublime absolutamente inédito.

Esse é um filme para se ver de olhos fechados.

É a melhor, e a talvez a única forma de explicá-lo.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

E AFINAL...

Nada de esoterismo, ciência, viagem no tempo, civilizações perdidas ou obscuras iniciativas de pesquisa. Percebi, afinal, que este tempo todo LOST foi um seriado sobre o amor. Quanta saudade...

terça-feira, 25 de maio de 2010

ADORÁVEL PORTA-LÁGRIMAS


A Cosac Naify lançou uma discreta preciosidade no mercado brasileiro: "Fico à espera", de Davide Cali com ilustrações de Serge Bloch. Com um inusitado formato de envelope, o livro é uma coleção de cartas de um menino que devaneia sobre a passagem do tempo, da vida e, eventualmente, a chegada da morte. É uma comovente e delicada história de uma criança que está amadurecendo e, no seu crescimento, ele ri, sofre, se apaixona, tem filhos e envelhece. Um fio de lã vermelha une os inúmeros aspectos da complexa existência, do amor à guerra, do bolo de infância à dor das despedidas. É um punhado de cartas, é um álbum de lembranças, é um livro de rabiscos sem pretensão; é um adorável porta-lágrimas que, apesar de ser destinado às crianças, vai, sem pudor algum, comover qualquer adulto. Ganhou prêmio Livro do Ano no Salão de Montreuil (França), em 2005. Lindo, lindo demais.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

PARA VER E OUVIR: CHOPIN (ETUDE OP. 10, N. 3 - "TRISTESSE")


Ao piano, Freddy Kempf. Dizem que Chopin foi o "poeta da música". Difícil discordar.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

TEMPO DE DESPEDIDAS

Falta apenas um episódio para o desfecho da série de TV mais importante do século 21. "LOST" reinventou o entretenimento ao misturar ação, aventura, mistério e esoterismo numa série de sucesso que durou 6 anos. No próximo domingo (23), descobriremos, enfim, o que une uma ilha, um grupo de náufragos, um urso polar, uma fumaça escura, viagem no tempo, entre tantos segredos que mexeram com o nosso imaginário nestes últimos anos. Em clima de despedida e nostalgia, Josh Holloway (Sawyer), Evangeline Lilly (Kate) e Matthew Fox (Jack), que protagonizaram um complexo triângulo amoroso, fizeram um ensaio para a Vanity Fair em uma praia do Havaí. Deixará muita saudade...

domingo, 16 de maio de 2010

HÁ ALGO FANTÁSTICO EM SER... DIFERENTE

Wes Anderson encanta novamente como seu filme mais recente: "O Fantástico Sr. Raposo", baseado no clássico homônimo de Roald Dahl. Como em todos os seus filmes, este também é marcado por uma direção elegante, silenciosa e uma deliciosa melancolia marcada por um quê de sonho e devaneio que permeiam todas as suas obras. Aqui, igualmente, a temática central é a figura paterna e sua complexa existência (ou ausência) na família. Anderson tem fascínio em retratar relações familiares complicadas e pais excêntricos, com a cabeça nas nuvens e ideias mirabolantes. É assim em "Os excêntricos Tenenbaums", "Viagem à Darjeeling", "A vida marinha" etc.
Há algo realmente fantástico sobre o Sr. Raposo...

O Sr. Raposo é uma figura carismática, cheio de charme e fleugma, e quer levar a vida caçando galinhas. A sua esposa, porém, o convence que este tempo passou e é hora de arrumar um trabalho de verdade. Ela engravida, ele arruma um trabalho como colunista de um jornal e os dois passam a levar uma vida "normal", com contas a pagar e dias a serem sobrevividos. Mas tudo o que o Sr. Raposo mais sonha é em roubar galinhas novamente.

E ele o faz, escondido da mulher, ao invadir as granjas de três vizinhos. O roubo desencadeia uma série de eventos que chegam a proporções épicas, que constroem uma atmosfera caótica e obviamente engraçada, sob a qual se esconde a verdadeira alma desta animação. As crianças vão gostar, claro, dos bonecos animados e das situações cômicas. Mas são os adultos que vão apreciar e se comover com este filme da maneira que ele realmente deve ser apreciado e sentido.

Como todos os protagonistas de Anderson, ele é absolutamente desorientado e encantador

Como tudo que Wes Anderson faz (ainda hoje acho as câmeras lentas de Darjeeling inebriantes), este é um filme lindo na sua mais pura simplicidade e desprovimento de complicação. Anderson não tem nenhuma grande ambição aqui, a não ser pontuar esta história da maneira como ele enxerga o mundo, a vida e as complicações da existência (esse é o maior valor do seu estilo característico).

Porque também há, no calor da discussão sobre galinhas e fazendeiros, reflexões sobre amor, auto-estima, cumplicidade e medo de existir. E um punhado de animais adoravelmente complicados, mas que tanto têm a nos ensinar sobre nós mesmos.

Delicado, precioso e imperdível.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O GATO E A CULPA

Terminou o jantar sem pressa, apreciando cada pedaço, cada gole. Beijou a sua mulher na testa, acariciou o seu rosto, sorriu com ternura para as suas duas filhas adolescentes, pediu permissão para se ausentar e subiu para o escritório.

Os degraus de madeira, aquela madeira centenária que havia pertencido ao seu trisavó, rangiam sob os seus pés. Lâmpadas à meia luz amarelavam o seu caminho e pequenas janelas, como escotilhas, mostravam uma chuva insistente que caia sobre o jardim. Parou alguns instantes e contemplou um punhado de poças de lama e grama ao redor da fonte onde um querubim de braço quebrado parecia sorrir. Trovejava, ocasionalmente, e as explosões pintavam sombras nas paredes que, a um olhar descuidado, simulavam esqueletos.

Fechou a porta do escritório e se sentou à mesa. Uma imponente mesa de mogno vermelho onde habitavam, com muita simplicidade, um bloco de anotações, uma luminária de vidro verde e uma caneta tinteiro, presente do seu avô, quando completara 18 anos. Com a ponta dos dedos, rolou a caneta, para trás e para frente, para trás e para frente, como um pequenino rolo de macarrão. Como se estivesse maquinando algo, mas os pensamentos não ganhavam corpo e pareciam sumir de sua cabeça, como fumaça. Explosões de luz inundavam as suas costas através da imensa janela, de onde ele podia ouvir os pingos golpeando o vidro como pequenos meteoritos.

Algo cai à sua esquerda e ele rapidamente vira o olhar para encontrar o gato que sempre se escondia no escritório em dias chuvosos. O gato se ajeitou no chão com elegância e num piscar de olhos, como mágica, já estava acocorado sobre o encosto do sofá de couro de porco perpendicular à mesa onde ele estava. E ali, parado, como uma esfinge, o gato ficou observando o homem. Sem piscar, sem mexer a cabeça, o velho gato era uma estátua.

Olhou de volta para o gato e ambos ficaram, por longos instantes, contemplando-se mutuamente. Ele não gostava daquele gato. E naquela noite, especialmente, sentia ainda mais raiva do animal. E ele podia ver em seus olhos. O gato sabia. O gato sabia o que ele havia feito.

Como um inquisidor, o gato o olhava profundamente, como se aguardasse uma confissão. Ele sentia seu coração palpitar dentro do peito, como uma bomba descontrolada. Suor frio escorria de sua testa, como a chuva na janela. O relógio martelava em seus ouvidos como um juiz e os relâmpagos enchiam o velho escritório de vultos que pareciam cada vez mais perto, de mãos erguidas, com longas garras, como se quisessem enforcá-lo.

Do encosto do sofá, o gato continuava olhando-o, como um falcão empoleirado que observa a sua vítima com desdém. Ele não tinha a menor dúvida. O gato sabia. O gato sabia de tudo e ele precisava fazer algo. Não podia suportar aquela culpa. E refletiu que pescoços, de gatos e de homens, são frágeis como gravetos.

Um último relâmpago emoldurou o escritório inerte. Um gato esticado no chão feito um pedaço de pano, um homem pendurado sob o teto, uma folha de papel com desculpas apressadas.

O gato sabia sobre tudo, mas a sua culpa morria com ele.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A INSESPERADA PRESENÇA

Ninguém sabia quem era o pai ou a mãe do presidente. "Ele nem deve ter uma", era um pensamento partilhado por todos na empresa. Porque o presidente era um homem rígido, discreto, de poucas palavras. Conhecido e respeitado por ser um destes homens de antigamente, que "se fizeram sozinhos", o presidente era assim, admirado e temido por todos que trabalhavam para ele.

Secretárias cruzavam seu caminho de olhos baixos, enquanto outras, mais abusadas, arriscavam um "bom dia" ou "até logo". Quase sempre sem resposta. Ele passava e, como Átila, deixava silêncio em seu caminho. Conversas eram interrompidas abruptamente, olhares voltavam para as mesas. Era como se o tempo parasse quando o presidente passava.

Ninguém sabia ao certo de onde vinha aquela fama, na verdade. Ele nunca havia feito mal a ninguém, jamais tratara um funcionário sem cortesia e nunca ouviram o presidente sequer elevar o tom da voz. Poucas, aliás, foram as vezes em que ele foi ouvido, até. Como um imperador japonês, sua voz era reservada aos cômodos discretos, dentro dos quais as decisões realmente importantes eram tomadas.

Sabia-se pouco sobre sua vida. Era o filho mais novo, de cinco irmãos, e vivera até os 17 anos  no interior, onde ajudava sua mãe e irmãos a cuidar de uma granja e uma horta muito humildes. Sua mãe, viúva, havia cuidado dos cinco filhos com muito esforço e dedicado à vida para que todos pudessem estudar na cidade.

Ao que parecia, ele não tinha mais contato com nenhum irmão. Nem se sabia, de certo, se algum ainda era vivo. Sua mãe morrera, em casa, quando ele ainda estava no segundo ano da faculdade. Mas ele não foi ao enterro. Na verdade, ele nunca mais voltou à sua cidade. Sua vida, desde que foi embora, era aquela fábrica, onde ele teve a sua carteira assinada pela primeira e única vez. Tudo para ele era aquela fábrica. O resto havia se perdido na poeira dos anos.

O presidente era um homem solitário e muito simples. Viúvo, pai de três filhos homens, chegava ao escritório na primeira hora da manhã, quando sempre aceitava uma xícara de café do vigia da madrugada, que prontamente lhe abria a porta. Agradecia ao velho porteiro com um breve aceno de cabeça e subia para a sua sala. Era também o último a ir embora, limitando-se a oferecer um discreto "boa noite" ao mesmo vigia que, ao amanhecer, recebia-o com café.

Todos os dias. Às vezes até no domingo. E assim se transformou num mito vivo e chefe inesquecível por razões não convencionais. Não era odiado, definitivamente, mas não era amado por ninguém. Ele mantinha distância. De tudo. E seguiu esta rotina todos os anos de sua vida, mesmo com quase 80 anos. Sempre bem vestido, bigode aparado, cheirando à colônia cara, ele era o relógio, a alma e o coração da velha fábrica.

Eis que certa vez, ao sair para almoçar no restaurante da esquina, onde ia todos os dias, esbarrou com uma senhora, na porta da sua fábrica. Muito idosa, frágil, lenço amarrando os cabelos, roupa puída. Com mãos calejadas, ela segurava uma sacola pesada onde guardava marmitas para vender aos funcionários. A senhora o olhou, com olhos tenros, e sorriu delicadamente, enquanto enxugava o suor do meio-dia que insistia em molhar a sua testa.

Foi quando, inesperadamente, ele tocou o rosto da mulher e se aproximou, abraçando-a longa e carinhosamente. E, sob o olhar espantado de todos, desabou num choro sentido, engasgado, e soluçando como se houvesse arrancado de suas costas toda a dor do mundo.

A mulher o abraçou de volta, ainda que confusa, e acariciou os cabelos prateados daquele homem tão bem vestido e perfumado que, por alguma razão, a abraçava. Ela tinha um cheiro de mofo, azaléia, tempero e suor e sobre o ombro de sua blusa florida, as lágrimas pingadas já haviam formado uma mancha.

No dia seguinte, a fábrica amanheceu de luto.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

MAYBE IN ANOTHER LIFE

E se, como em LOST, existir uma outra dimensão em que nós somos exatamente as mesmas pessoas, só que... não somos? PS: Não quero, em hipótese alguma, dar uma de pseudo-filósofo. É uma pergunta mesmo.

PARA VER E OUVIR: SARA BAREILLES ("MORNINGSIDE")

domingo, 2 de maio de 2010

ILUSTRANDO

Modigliani - "Jovem ruiva em vestido de noite" (1918)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

QUEM DISSE QUE LADY GAGA NÃO É COISA DE HOMEM?

Os caras de um grupo de humor da Universade do Oregon (EUA), conhecidos como "On the rocks", provam exatamente isso nesta apresentação de "Bad Romance" totalmente a capella (e extremamente performática). Excelente.

Ficou com vontade de ver o original? Clica aqui.

O QUE HÁ NO FIM DA ESTRADA?

A vida na terra chegou ao fim, por conta de uma hecatombe que a devastou de ponta a ponta, transformando o mundo - como o conhecemos - num grande abismo cinza e sem vida. Incêndios, inundações, pouco a pouco, tudo foi se desfazendo e levando pessoas a morrerem de fome e até mesmo a se matarem por conta do desespero. Mas ainda assim, o pior ainda estava por vir. O impensável: canibalismo. Neste cenário arrasado, um pai e um filho atravessam uma jornada perigosa e solitária pelos Estados Unidos, ao longo de uma estrada que levará ao Sul, onde supostamente há alguma chance de vida.

Cumplicidade na mais profunda solidão marcam o resvalamento em "A Estrada"

Baseado no best-seller de Cormac McCarthy, The Road ("A Estrada"), estrelado por Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee e com participação especial de Charlize Theron, Robert Duvall e Guy Pearce, é um filme impactante e imperdível. Com a direção sensível e precisa de John Hillcoat, vemos na tela - de forma quase documental - a transformação do homem em animal e nesta triste metamorfose, a descoberta dos extremos a que a humanidade pode chegar em nome da sobrevivência.

O mundo é habitado por personagens anônimos, errantes, que vão de ponto a ponto, dia após dia, atravessando vales e florestas de sombras numa luta exaustiva pela sobrevivência. O pai e o filho, igualmente, não tem nomes. Não sabem do tempo, já esqueceram até quem são. Há uma triste cena em que o filho, atônito ao observar um espelho, diz para o pai, "vê, papai, como estamos magros...".

As atuações dos protagonistas são impressionantes. Viggo Mortensen tem algo mágico em seu olhar, ao mesmo tempo determinado e devastado, e é a força máxima que sustenta o filme do começo ao final e nos garante fôlego para aguentar a tensão durante uma série momentos de grande perigo.

A jornada é absurdamente melancólica e perigosa, neste "road movie pós-apocalíptico", mas isso não impede que o filme também presenteie a audiência com momentos adoráveis, como a descoberta do que pode ser a última lata de coca-cola ou uma escotilha que esconde centenas de mantimentos absolutamente impensáveis. Este é um filme que mostra sem pudor o extremo, o limite da vida quando um banho, um raro banho e uma lata de sopa são suficientes para se acreditar em mais um dia.

Viggo Mortensen é pura luz num mundo que parece esquecido por Deus

Não há vida, na Estrada, porque ao longo de seus quilômetros infindáveis, só é possível enxergar o vazio, a maldade e o perigo. Essa história se dedica, de corpo e alma, a nos mostrar (como se fossemos acompanhantes) o trajeto de um homem dedicado em garantir que seu filho possa viver uma vida longe do caos. São dois mendigos, desorientados, caçados como animais e dividindo uma linda cumplicidade que só enxergaremos verdadeiramente nos instantes finais. Quando também descobrimos que, se há desepero e morte na Estrada, nela também pode habitar a esperança.


domingo, 25 de abril de 2010

ONDE REINA O CAOS


"Misógeno", "grotesco", "pretensioso", "arte". Muitos são os possíveis adjetivos ao filme "Antichrist" (Anticristo), de Lars von Trier, e nenhum será justo ou equivocado. Porque este filme é, sem dúvidas, o conjunto de todos esses adjetivos e muitos outros mais. Este é um filme raro, polêmico, forte e profundo sobre o qual apenas um argumento é inequívoco: é impossível ficar indiferente a ele.

Na história, "Ele" (Willem Dafoe) e "Ela" (Charlotte Gainsbourg) perdem um filho tragicamente. Após uma belíssima cena, rodada em preto e branco, Lars von Trier constrói o prólogo perfeito para o seu filme que é, ao mesmo tempo, sonho e pesadelo: ao som de "Lascia la Spina", de Handel, o casal faz amor apaixonadamente enquanto seu filho pequeno caminha para uma janela aberta. Tragédia anunciada e um casal em frangalhos. Devastados, os dois fogem para uma cabana, onde tentam um audacioso processo de cura, enfrentando a dor e a tristeza, ao invés de negá-la ou combatê-la.

Amor e morte caminham de mãos amarradas no novo filme de Lars von Trier

Mas, justamente, ao se depararem com a verdade da dor, os dois também se deparam com a dura verdade da existência humana, que pode ser falha, corrompida, má. E nessa turbulenta jornada de cura e auto-conhecimento, os dois seguem um caminho sem volta onde o desespero e a loucura fazem com que eles se percam nos labirintos de suas próprias mentes. Neste momento, já não é possível distinguir realidade de alucinação, certo de errado, fato e suspeita. Na cabana, cercada por uma região de mata fechada chamada Eden ("Paraíso"), Ele e Ela, como Adão e Eva às avessas, descobrem real e dolorosamente que "o caso reina". 

"Anticristo" é um filme belo e, ao mesmo tempo, horrendo. Com uma cinematografia fantasmagórica e precisa na intenção em retratar duas mentes perturbadas, este é um filme delicado, na mesma proporção em que é explícito e visceral. É arte na igual proporção em que pode ser interpretado como lixo. Porque não é um filme para todos. É, na verdade, um filme para ninguém, como se Lars von Trier tivesse construído seu próprio pesadelo, num exercício pessoal, egoísta, autista e de celebração de sua própria angústia. Dizem que Trier filmou "Anticristo" num momento de grande tristeza pessoal e isso pode ser percebido em cada  segundo deste filme impressionante que destila melancolia. 

Definitivamente, "Anticristo" é um filme arrebatador e com certeza não sou a mesma pessoa de antes de tê-lo visto. Ao mesmo tempo, há em mim uma satisfação - talvez inocente - em ter visto este filme, na medida em que é, na pior das hipóteses, uma peça de arte simplesmente imperdível. Não sei interpretar que impacto, especificamente, este filme provocou em mim além do silêncio. Porque esta é a essência e a beleza genuína deste filme: a sua capacidade de nos silenciar.


Fantasmagórica e brutalmente real é a jornada pelo "paraíso"

Despertei ao final deste filme, como quem acorda de um sonho ruim. Mas, de alguma maneira, quis dormir novamente. Talvez nem o próprio Trier tenha noção do poder de sua obra. Na falta de adjetivos definitivos para este filme, um, pelo menos, não me foge à mente: poderoso. 

O caos reina em "Anticristo". Mas é justamente no caos que nasce a ordem e "Anticristo" transpira esta reflexão com eloquência.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

23

Dia de São Jorge

quarta-feira, 21 de abril de 2010

BRASÍLIA, 50 ANOS


"Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu País e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino". 
Juscelino Kubitschek

Meus sinceros parabéns a minha querida Brasília. 50 anos, horizontal e infinita, e nem um centímetro menos utópica.

sábado, 17 de abril de 2010

LAPSO


Uma bela mulher, de longos cabelos ruivos o acordou com um beijo de bom dia: “levante, preguiçoso! As crianças já estão atrasadas!”. Levantou-se, letárgico. Um pouco de água no rosto, um banho breve, um punhado de roupas escolhidas e dobradas sobre uma cadeira de couro. Vestiu-se. A escada que descia para a sala, coberta com carpete marrom, felpudo, rangia sob os dedos dos seus pés. Meia dúzia quadros na parede, algumas fotografias, um vaso inexpressivo com flores quase murchas. Na cozinha, movimento apressado de pessoas.

“Pai! Anda! Eu não posso me atrasar para a feira de ciências!”, gritou o menino, da porta da casa; as bochechas rosadas e o uniforme pouco arrumado. “Pai, toma seu café com calma, não esquenta”, intercedeu a jovem à mesa, enquanto arrumava os livros para as aulas da faculdade. "Lógica", "Teoria do Caos".

Ele olhava tudo com olhos de vidro, de cansaço e surpresa, como uma máquina obsoleta, incapaz de processar um dilúvio de novos comandos e informações. Mal conseguia levar a xícara de café à boca, enquanto observava aquela cena familiar tão rotineira. A mãe ajudava o filho com uma maquete. O garoto segurava a chave do carro. A garota lia enquanto bebia um suco que parecia ser de maçã, alheia ao barulho da cozinha.

Um cachorro veio à sua perna, lambeu seus pés e ficou aguardando ser afagado. Ele olhou para o cão como quem olha alguma figura mitológica. “Meu bem, você não está atrasado para o trabalho?”, interrompeu a mulher. “Pai, você está bem?”, a jovem completou o inquérito. Ele os olhava inquieto, sem saber o que lhes responder. Pensou em histórias de fantasmas e realismo fantástico. Se é que conseguia, realmente, pensar em algo.

A mulher falava dos preços do mercado. Aparentemente, o suco de laranja nunca esteve tão caro. Ouvindo uma buzina alta, a jovem se levantou e, num salto, despediu-se, correndo para entrar no carro do namorado. Um carro vermelho, com um rapaz bonito, de óculos escuros, esperando, sorridente. Beijaram-se de forma pouco comportada.

O menino correu para depositar a maquete no banco de trás do carro estacionado fora da garagem. Já sentado no banco do passageiro, gritava como uma sirene de bombeiros. “Pai! Pai! Pai! Pai! Pai!”.

“Ei, o que você tem hoje?”, a ruiva interrompeu seus pensamentos, ajeitando-lhe a gravata e fechando a sua pasta. Uma bela pasta de couro de porco com duas iniciais: A. H. “Você esqueceu de pagar o cartão de crédito? Eles ligaram ontem, alegando que estamos atrasados”. Olhou-a como quem vê os créditos de um filme subirem. Através dela. Um perfume esquisito. Um pouco mais de maquiagem do que deveria àquela hora do dia.

A mulher o conduziu para a porta, trancando-a atrás dele. O sol brilhava intensamente, mas a grama estava molhada, como se tivesse chovido à noite. Na casa ao lado, um homem gordo e de roupão vinha em busca do jornal. Acenou para eles, com cortesia. Do outro lado da rua, uma senhora acenou da janela. Sorriu para os dois. Uma jovem deu bom dia, enquanto passava de bicicleta. No final da rua, cruzou uma viatura da polícia em ronda. Aquele silvo estranho. Azul. Vermelho. Azul. Vermelho.

“Você ainda não me disse o que achou das novas cores para as cortinas. Ficamos com lilás ou bege claro?”, perguntou a mulher enquanto caminhava para um outro carro, dentro da garagem. Ele não respondeu. Apenas a observou, emudecido demais. Ela deu de ombros. Ele estava estranho. Insônia, talvez. 

Jogou-lhe um beijo de longe pouco antes de se sentar à direção. Por alguns instantes,  olhou a mulher entrar no carro e retocar a maquiagem no retrovisor. Então, após breve meditação, abriu a porta do seu carro, sentou-se e apoiou uma das mãos ao volante.

Antes de dar a partida no carro, porém, questionou-se com certa preocupação: “quem diabos, afinal, são estas pessoas?”

quarta-feira, 14 de abril de 2010

PARA VER E OUVIR: PARAMORE ("THE ONLY EXCEPTION")

Por motivos muito meus, uma linda música que me proporciona deliciosos calafrios e me faz lembrar da minha "única exceção".

terça-feira, 13 de abril de 2010

E JÁ QUE O ASSUNTO É BEIJO...


"Beijando Jessica Stein" (Kissing Jessica Stein) é um filme adorável, imperdível e um daqueles que eu já perdi as contas de quantas vezes assisti. Os diálogos são ótimos, os personagens convencem e todo o filme é rodado em Nova York, o que promove uma deliciosa atmosfera para cenas hilárias, românticas e tocantes. É uma história completa, que não se apressa em nenhum instante e, nem por isso, também se arrasta. De alguma forma, acabamos esquecendo dos atores e acreditamos, nem que brevemente, que estamos acompanhando as vidas de pessoas reais. Muitos se enganam, ao definir este filme delicado e especial como uma comédia romântica sobre a descoberta do amor entre duas mulheres. Esta é uma forma muito superficial de encarar a história e todas as suas nuances tão interessantes. Beijar Jessica Stein é algo muito mais complexo...

Jessica procura o homem perfeito, mas acaba encontrando a garota perfeita...

Jessica (Jennifer Westfeldt) é uma solitária novaiorquina, neurótica e tímida; dedicada ao trabalho, no seu tempo livre, também é uma talentosa (e desconhecida) artista plástica. Pressionada por sua família judaica a arrumar "um bom partido" e se casar e cansada de desilusões amorosas, Jessica decide dar o passo mais ousado de sua vida ao responder a um anúncio romântico de jornal: "elas procuram elas". Com isso, acaba conhecendo Helen Cooper (Heather Juergensen). Helen é o oposto de Jessica e tudo que ela precisa: altiva, animada, engraçada, destemida e sem medo de experimentar as novidades. Com um punhado de tropeços, mas cheias de vontade de acertar os passos, Jessica e Helen acabam se envolvendo e descobrindo uma vida juntas. Naturalmente, isso envolve um punhado de sacrifícios e sofrimento, sobretudo para a família tradicional de Jessica, que tinha outros planos para ela.

Jessica Stein é como um beijo: intenso ou delicado, sempre guarda surpresas

O filme segue com ótimo ritmo, misturando polêmica e comédia em doses exatas enquanto vamos naturalmente percebendo em que medida Jessica está (ou não) decidida sobre as suas novas escolhas. Ao redescobrir um amor antigo, Josh Meyers (Scott Cohen), Jessica se depara com uma grande confusão e talvez a mais difícil decisão da sua vida: ficar com o homem errado, por quem sempre foi apaixonada, ou continuar com a garota perfeita, mesmo que isso não defina a pessoa que ela é, de verdade?

Por estas e tantas outras razões, "Beijando Jessica Stein" é um filme ideal para se ver no Dia do Beijo. Porque, como um beijo, é algo vivo, cheio de energia, e repleto de surpresas no caminho.

EM LEMBRANÇA DO "DIA DO BEIJO"


Burt Lancaster e Deborah Kerr, em "A um passo da eternidade" (1953)

sábado, 10 de abril de 2010

A DESCOBERTA DE GEORGE

Quando George nasceu, prematuro, na mesma hora recebeu o nome do santo de devoção de sua mãe. Ela havia feito uma promessa ao santo guerreiro que daria o seu nome ao seu primeiro filho caso tudo corresse bem. Apesar de ter crescido num ambiente de profunda devoção religiosa, George se tornou ateu antes mesmo de se tornar adulto. Sentia, desde muito cedo, que não havia necessidade de se apegar a ideias que não fossem concretas e sentia pavor da histeria provocada pelas religiões que, em seu entendimento, desvirtuavam as pessoas das suas próprias decisões. George não aceitava que houvesse um plano maior, além do seu controle terreno. Religião, qualquer uma que fosse, não era o seu negócio. Ele simplesmente não era um homem de fé.

Assim George viveu, por toda a sua vida. Prático, científico, materialista. Como Woody Allen, preferia o ar-condicionado ao Papa e ria, com uma mistura de pena e deboche, da sua mãe, uma senhora adorável, que sempre cheirava a incenso. Quando a visitava, olhava para o altar em destaque na sala, onde uma imagem de São Jorge podia ser vista em esplendor. "Meu Santo vestido", dizia sua mãe, enquanto tocava orgulhosamente a capa de veludo vermelho do santo imponente.

Em situações como estas, George sempre aproveitava a oportunidade para fazer alguma piada sobre os hábitos, as velas, as flores. Todo aquele "teatro" não fazia sentido para os seus olhos de matemático. Mas sua mãe não se incomodava, pelo contrário, olhava para George com um sorriso tenro e dizia, fitando-o nos olhos e acariciando seu rosto: "Ele olha por você, mesmo assim, meu filho".

George era um homem pacífico, de hábitos comuns. Separado, sem filhos, morava só numa casa confortável perto da universidade onde dava aulas de estatística. Ia de bicicleta para o trabalho, gostava de tomar água de coco ao final do dia e, sempre que possível, encontrava um pequeno grupo de amigos para ouvir jazz no centro da cidade.

Além disso, alguns livros e discos antigos traziam novidade para a grande casa que dividia com Crono, seu gato siamês que havia sido castrado há duas semanas e passava dias e mais dias deitado sobre uma grande almofada azul da qual se levantava, ocasionalmente, para comer ou frequentar a sua caixa de areia. Ele gostava de conversar com o gato, que parecia observá-lo com bastante atenção. Fazia carinho em sua cabeça, e ele respondia prontamente, vibrando como um aparelho elétrico a cada novo afago. "Desculpe por ter feito isso com você, mas é para o seu bem. E nunca esqueça: você não é nem um pouco menos homem agora. Pense que perdeu um acessório, só isso".

Aos 49 anos, George se deparou com a maior provação de sua vida. Após alguns exames de rotina, ele descobriu que tinha um câncer nos testículos. Ele viu o seu mundo desabar naquele dia. Era como se estivesse despencando, num abismo sem fim, onde a sua vida parecia se desfazer como névoa e poeira.

Quando contou essa notícia à sua família, sua mãe chorou um choro diferente. Um choro de coragem. Um choro de quem se arma para a guerra. Ao ver o seu filho soluçar, sozinho num canto, aproximou-se e disse, com convicção e veemência: "Não desespere, meu filho, porque nós venceremos essa". George agradeceu o conforto, mas em sua cabeça havia espaço apenas para pensamentos de probabilidades. Causas e efeitos. Ações e consequências.

O tratamento começou e se provou mais doloroso e sofrido do que George podia imaginar. Alternava momentos de esperança e desepero enquanto seguia para as sessões de quimioterapia a que se submetia. Inicialmente, houve um quadro de melhora, mas rapidamente o seu estado piorou a um ponto crítico. George via as horas sumindo por entre os seus dedos enquanto percebia que ficava mais no hospital do que em casa. O tempo, o seu tempo, era cada vez mais fugaz.

Numa tarde especialmente nublada, George se sentiu consumido por pensamentos melancólicos. Sabia que o seu corpo definhava e enxergava um homem de cem anos no espelho. Deixou um envelope pardo sobre a mesa, contendo um bilhete breve com mais instruções do que reflexões. Levou seu gato, Crono, para a casa de sua irmã, beijou-a e abraçou seu corpo com grande demora, como se estivesse dizendo adeus. Ouviu-a dizer palavras de conforto e esperança, enquanto caminhava para a porta da rua, mas nada daquilo fazia qualquer sentido para ele.

George saiu, observou o movimento e a rotina da cidade com olhos de turista. Tentou respirar fundo, mas uma tosse áspera o impediu de continuar. Passou a mão sobre a cabeça quase sem cabelo, olhou para as mãos de centenário e sentiu as roupas ainda mais folgadas. "Que tipo de homem eu acabei me tornando?". Não via mais sentido em nada daquilo ao seu redor e tinha a impressão de ser um observador de si mesmo, coadjuvante em seu próprio corpo.

Atravessou a avenida com algum desleixo, quase invisível para os poucos carros que iam e vinham naquelas primeiras horas do dia. Descalço, andou sem pressa pela areia que massageava seus pés. Gostou daquela sensação e sorriu brevemente enquanto seguia seu caminho em direção ao mar que estava especialmente calmo naquele momento.

A água já começava a esfriar e George sentia cada novo centímetro escalando seu corpo frágil e dormente. Pés, cintura, ombros. Sentia o barulho das ondas, o sal da água e um canto de gaivotas voando não muito longe. O movimento o levava para cima e para baixo, como um barco de papel, e George decidiu fechar os olhos, antes do seu mergulho final. No instante derradeiro de sua passagem na terra, George sentiu vontade de conversar com Deus. "Perdoa-me, Deus, porque eu não consigo mais continuar".

E o mar engoliu George, cobrindo-o rapidamente e deixando-o inconsciente. Subitamente, sentiu o sol nascendo no horizonte e percebeu duas mãos habilidosas erguendo seu corpo, levando-o graciosamente para a areia. "Ainda não, George. Ainda não". Ele não conseguia enxergar o rosto do seu salvador que, naquele momento, era não mais que um vulto gigante ao seu redor. Um bombeiro, um salva-vidas.


"Porque você está me ajudando?", perguntou com palavras tossidas. "Eu não aguento mais, não consigo continuar", completou. Ao que o estranho respondeu, com um sussurro que pareceu ventar em seus ouvidos: "você consegue, sim. E mesmo quando não conseguir, não desespere porque eu vou te carregar em meus braços". E então George apagou num sono profundo.

Quando abriu os olhos, George estava numa cama de hospital. A luz branca feriu os seus olhos, enquanto ele tateva por alguma informação. Viu sua mãe e sua irmã olhando-o radiantes. E aguardou alguma explicação. Sua última lembrança era ter caminhado em direção ao mar. Nada mais.

Sua mãe acariciou sua cabeça e com uma fina lágrima nos olhos explicou ao seu filho tudo o que havia acontecido até ele ser trazido ao hospital. George ouviu incrédulo e pareceu recordar alguns fragmentos de memórias sem conexão.

Seis meses depois, os médicos deram a George a inesperada notícia de que ele estava completamente curado. Não sabiam como, mas ele estava são como se nunca tivesse ficado doente. Algo que, mesmo a medicina em sua infinita sabedoria definia por "milagre". "Deve haver alguém olhando por você lá em cima, George, porque você nunca esteve tão bem".

A brisa salina mexia em seus cabelos de forma muito especial naquela manhã em que decidiu caminhar cedo na beira da praia. Gostava do calor do sol em sua pele e sentia como se tivesse não mais que vinte anos. Achava-se um novo homem. George havia vencido uma batalha que ele sequer tentou ganhar. E como Einstein havia percebido tantos anos antes, descobriu que não havia milagres na vida, mas que todos os aspectos da vida eram milagres.

Emoldurado, na sua sala de jantar, o recorte do jornal que noticiava a história do "homem desaparecido que havia sido encontrado na areia da praia, envolto num grande manto de veludo vermelho".

terça-feira, 6 de abril de 2010

DIA D.

Todas as pessoas, em algum momento das suas vidas, vivem um "Dia D". O dia decisivo, de transformação, da virada da maré. Um ponto de transição na jornada. A curva, a mudança das águas. O meu foi quando eu te conheci. Porque você invadiu a minha Normandia, tomou-me de assalto, no segundo em que os nossos olhares se encontraram. E foi como se o céu gris daquela manhã tivesse sido tingido com o vermelho do seu cabelo. E desde então você passou a cintilar minhas manhãs com fogo, onde ora me queimei, ora me aqueci. Quando eu contar essa história aos nossos netos, acrescentarei sempre algo novo. Você estaria com uma flor no cabelo, eu com uma pena na jaqueta. Quem se importará?

Naquela manhã fria e chuvosa, em que eu julgava inocentemente estar desembarcando para te conquistar, eis que foi você quem saltou, sem aviso, nas minhas areias calmas, com seus ventos de novidade, de modernidade; com seus passos decididos e seus carros de combate. E me mostrou a guerra e a paz. Com seu jeito delicado e belicoso, de bailarina armada, você me pacificou. E mesmo mergulhado em seu bom combate, ou mesmo confuso por ele, descobri que você, como os heróis juvenis 1944, também me resgatava das trevas.

Com você, ingressei de verdade na guerra da vida. Aprendi seu idioma, seus costumes, as leis do seu país. E me rendi sem resistência. Porque você reinventou o meu mundo, como eu o conhecia. Porque você me reinventou. Fui argila e bronze em suas mãos habilidosas que ora moldaram e acariciaram; ora bateram e cortaram.

Você me mostrou novos caminhos, novas cores. Abriu meus cadeados e minhas fechaduras, com paciência gatuna ou com martelo e maçarico. Tudo ao seu jeito. Foi paciente com minhas infantilidades imperdoáveis e implacável com meus deslizes mais casuais. Mas sou seu cativo, seu território conquistado, quem disse que me cabe questionar os seus termos? Porque se você trouxe desafio e regra, também trouxe o progresso. Correndo para acompanhar o ritmo dos seus passos, eu acabei evoluindo como quem deixa a paisagem para trás na janela do trem.

Enquanto você enchia as minhas mãos com as novidades que pegávamos no caminho, nem percebi o que acabava deixando cair. Descobri novas importâncias ao seu lado e me desapeguei de muitas coisas que tinham outro valor antes de você transformar o meu mundo. Disse adeus, para sempre, a parte do menino em mim que já deveria ter me desfeito. Só você me mostrou como. Você igualmente me ajudou a construir o homem em mim e o menino que ficou, e que sempre ficará, acabou se transformando no Peter Pan a quem você mesma recorre quando precisa fugir desesperadamente para a Terra do Nunca. Quando cansamos, juntos, da realidade e nos escondemos dos relógios, crocodilos e piratas.

Somos garotos perdidos. Casados e crianças. Bela e Fera. Dante e Beatriz. Humildes aprendizes e pedantes catedráticos na discussão das nossas ciências. Falamos uma língua que ninguém parece entender, rimos das piadas ocultas, pintamos as horas com cores que só a gente enxerga. Porque, se de um lado temos metades que não se encaixam, de outro parece que somos a mesma pessoa.

O engraçado é que hoje percebo que eu, de invadido, acabei te transformando também, invasora. Lembro com saudade dos seus olhos de menina, quando nos encontramos. E mesmo que de alguma forma eles tenham sumido na passagem dos anos, em algum lugar eles ainda estão refletidos hoje nos seus olhos de mulher. Porque viramos adultos chatos, juntos. E, de alguma forma, também não viramos. São as nossas aventuras diárias, em que vamos das manhãs de calmaria às noites de fogo cruzado. E inventamos armistício, cessar-fogo, paz duradoura. E declaramos independência. E reinventamos tudo, novamente. Todos os dias. Das cinzas, mesmo quando tudo parece perdido. E juntos, mesmo quando separados.

"Porque você nunca está mais longe de mim do que as batidas do meu coração".

E o meu dia D. é você.

sábado, 3 de abril de 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

"O VENTO DA VIDA PÔS-TE ALI"


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda