sexta-feira, 14 de maio de 2010

O GATO E A CULPA

Terminou o jantar sem pressa, apreciando cada pedaço, cada gole. Beijou a sua mulher na testa, acariciou o seu rosto, sorriu com ternura para as suas duas filhas adolescentes, pediu permissão para se ausentar e subiu para o escritório.

Os degraus de madeira, aquela madeira centenária que havia pertencido ao seu trisavó, rangiam sob os seus pés. Lâmpadas à meia luz amarelavam o seu caminho e pequenas janelas, como escotilhas, mostravam uma chuva insistente que caia sobre o jardim. Parou alguns instantes e contemplou um punhado de poças de lama e grama ao redor da fonte onde um querubim de braço quebrado parecia sorrir. Trovejava, ocasionalmente, e as explosões pintavam sombras nas paredes que, a um olhar descuidado, simulavam esqueletos.

Fechou a porta do escritório e se sentou à mesa. Uma imponente mesa de mogno vermelho onde habitavam, com muita simplicidade, um bloco de anotações, uma luminária de vidro verde e uma caneta tinteiro, presente do seu avô, quando completara 18 anos. Com a ponta dos dedos, rolou a caneta, para trás e para frente, para trás e para frente, como um pequenino rolo de macarrão. Como se estivesse maquinando algo, mas os pensamentos não ganhavam corpo e pareciam sumir de sua cabeça, como fumaça. Explosões de luz inundavam as suas costas através da imensa janela, de onde ele podia ouvir os pingos golpeando o vidro como pequenos meteoritos.

Algo cai à sua esquerda e ele rapidamente vira o olhar para encontrar o gato que sempre se escondia no escritório em dias chuvosos. O gato se ajeitou no chão com elegância e num piscar de olhos, como mágica, já estava acocorado sobre o encosto do sofá de couro de porco perpendicular à mesa onde ele estava. E ali, parado, como uma esfinge, o gato ficou observando o homem. Sem piscar, sem mexer a cabeça, o velho gato era uma estátua.

Olhou de volta para o gato e ambos ficaram, por longos instantes, contemplando-se mutuamente. Ele não gostava daquele gato. E naquela noite, especialmente, sentia ainda mais raiva do animal. E ele podia ver em seus olhos. O gato sabia. O gato sabia o que ele havia feito.

Como um inquisidor, o gato o olhava profundamente, como se aguardasse uma confissão. Ele sentia seu coração palpitar dentro do peito, como uma bomba descontrolada. Suor frio escorria de sua testa, como a chuva na janela. O relógio martelava em seus ouvidos como um juiz e os relâmpagos enchiam o velho escritório de vultos que pareciam cada vez mais perto, de mãos erguidas, com longas garras, como se quisessem enforcá-lo.

Do encosto do sofá, o gato continuava olhando-o, como um falcão empoleirado que observa a sua vítima com desdém. Ele não tinha a menor dúvida. O gato sabia. O gato sabia de tudo e ele precisava fazer algo. Não podia suportar aquela culpa. E refletiu que pescoços, de gatos e de homens, são frágeis como gravetos.

Um último relâmpago emoldurou o escritório inerte. Um gato esticado no chão feito um pedaço de pano, um homem pendurado sob o teto, uma folha de papel com desculpas apressadas.

O gato sabia sobre tudo, mas a sua culpa morria com ele.

Um comentário:

Lilian disse...

mistura de Edgar Allan Poe,Hitchcock
e Borges,este texto sombrio daria um exelente ''curta''.

Gostei,muito dark.