quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A SEGUNDA IMPRESSÃO

O filme "O casamento de Rachel" (Rachel getting married) é um ótimo exemplo de que nem sempre a primeira impressão é a que fica. Os filmes têm disso. Estão vinculados a uma série de fatores que podem implicar em gostarmos ou não deles: momento, estado de espírito, maturidade, experiência. Por isso é tão comum rever um filme que havíamos detestado e nos surpreendermos ou, então, um filme que havíamos adorado na primeira vez para descobrir que ele não era tão bom assim. Coisa de momento. Isso acontece comigo com grande frequência, para o bem e para o mal. Perco e ganho filmes na mesma proporção e, deste quase constante 0 x 0, (re)descubro filmes especiais. E fico feliz por isso.

Com "O casamento de Rachel" foi assim. Achei o filme intragável na primeira tentativa. Não gostei do ritmo do filme, ainda que tenha notado - desde a primeira vez - que o roteiro, atuações e direção mereciam uma segunda chance. Anos depois, revendo o filme, percebi como a minha interpretação inicial havia sido equivocada. Este não é um filme ruim, absolutamente. Mas ele precisa, sem dúvidas, de um pouco mais de esforço. Não é tão palatável ou fácil de assimilar sem alguma reflexão.

A questão toda, imagino, está na concepção de uma família disfuncional. Todos nós, de uma forma ou de outra, temos uma família disfuncional. São irmãos problemáticos, primos, tios, avós, mesmo pais. Acho impossível encontrar alguma família que não tenha os seus "esqueletos no armário". Isso para mim é um fato. No cinema, porém, as famílias - quando não são perfeitas - são "charmosamente disfuncionais", o que geralmente é algo cômico ou dramático sempre com um toque destinado a comover o espectador.

Isso, em hipótese alguma, acontece aqui. A família retratada em "O casamento de Rachel" é disfuncional, problemática e verdadeira como as nossas. E, justamente por isso, seja difícil - em imediato - apreciar os personagens ali. Ninguém sente prazer em observar seus defeitos no espelho, correto? Isso cria aquele desconforto e um desejo desesperado de mudar de assunto, de ares.

Esse é o verdadeiro trunfo do filme de Jonatham Demme ("Silêncio dos inocentes") e estrelado - de forma muito honesta - por Anne Hathaway. A história, como o título sugere, narra o casamento de Rachel. No entanto, a questão toda por trás do casamento (seus preparativos e expectativas) é a angustiosa espera pela filha problemática, Kym (Hathaway), que em breve retornará de uma clínica de reabilitação. A família, na medida do possível, é alegre, amorosa, todos tentando viver ao seu jeito, respeitando as diferenças e seguindo em frente (percebam como a questão racial JAMAIS é tema de discussão aqui).

Mas há um passado trágico do qual Kym é protagonista. Aos 16 anos, completamente entorpecida pelo uso de remédios, Kym sofreu um acidente de carro que acabou matando seu pequeno irmão, Ethan. Ninguém se recuperou verdadeiramente deste trauma e Kym, especialmente, carrega-o como um fardo pessoal que, justamente, acabou levando-a para um precipício ainda mais profundo.

A chegada de Kym deixa a família em constante estado de pânico e expectativa

Por conta disso, a "presença" de Kym é desconcertante. Ácida, agressiva, intransigente, impertinente, egoísta; ninguém sabe o que esperar dela e sua presença pesada na casa cria um constante ambiente de pânico e expectativa. Ela é imprevisível, instável, inconstante, volátil. Num momento, ri, abraça, ama sua irmã e família. Num outro, quase imediatamente, é irônica e violenta. "Você está tão magra; poderia jurar que voltou a vomitar", Kym diz a Rachel enquanto ela prova o vestido de casamento.

Inevitavelmente, Kym provoca um turbilhão de emoções na sua breve estadia em casa. Ela chega, como um furacão, mas sabe do seu prazo de validade. Ela sabe que quer - e precisa - ir embora. Este reencontro provoca uma catarse familiar, uma troca de confissões veladas, a abertura de um baú de mágoas e lembranças que ninguém queria abrir, muito menos na véspera de um casamento. Mas esse parlamento coletivo, de uma forma ou de outra, também se mostra necessário e frutífero sob inúmeros prismas. Kym fere aqueles que ama, para ser ferida de volta e, talvez assim, enxergar mais claramente os seus fantasmas. É o seu jeito e, certamente, o faria diferente se pudesse. Isso é o que faz a atuação de Hathaway tão comovente.

Kym sabe, perfeitamente, dos seus defeitos e da sua capacidade (auto)destrutiva. Ela só não é capaz de fazer diferente, é como se isso estivesse realmente além da sua capacidade. Podemos ver isso em cenas emblemáticas em que ela, alguém tão incrédula e sarcástica, fecha os olhos para repetir - como num ato de fé - as reflexões de auto-ajuda do seu grupo de dependentes anônimos. Kym deseja ser diferente, "normal", se ajustar. Ela só não sabe como fazê-lo.

Anne Hathaway desfila um show de interpretação neste papel caótico, profundo, atormentado - quase "feia" - tão diferente das personagens delicadas e encantadoras com as quais ficou famosa. Dando vida à uma Kym tão perdida, Hathaway mostra outras cores e isso é parte da alma deste filme. Os olhares, sorrisos, lágrimas; o desejo desesperado de viver - mesmo que isso implique em atentar contra a própria vida - Kym é um ser nu, caminhando solitário entre aquelas pessoas que não a compreendem e que, provavelmente, nunca compreenderão.

Mas, como nas nossas famílias disfuncionais (e verdadeiras), há espaço para a mágoa, sim, e para a redenção. Porque nós também amamos aqueles familiares que nos fazem mal, que nos ferem. É parte do contrato, da lógica que sustenta qualquer família disfuncional. Não há exílio, longe disso, mantemos perto aquelas pessoas que, normalmente, iríamos querer longe. Isso é ilustrado lindamente numa cena de cortar o coração em que Rachel dá um banho em sua irmã, Kym. Um momento comovente, imensamente delicado, decisivo. "Estou tão feliz de você estar aqui, com a gente", diz Rachel para sua irmã.

Se Kym pudesse, se fosse capaz disso, ela feria tudo diferente

Não, definitivamente, não é fácil gostar de "O casamento de Rachel". Como a própria Kym, o filme se esforça para que não gostemos dele. Basta não ceder a esse jogo para descobrir um filme, mais que bonito, honesto e muito bem feito. Um filme realmente necessário.

Um comentário:

Luana Ribeiro disse...

Que bela crítica, vou assistir! Adoro seus textos, só não gosto dessas letrinhas brancas que parecem piscar o tempo todo, rs.