Da janela do seu apartamento ele imaginou ter enxergado o diabo. Amanhecia lentamente e, ao acender mais um cigarro, ele percebeu que talvez estivesse alucinando. Não havia ninguém lá, apenas a rua, calma e deserta, com tons acinzentados gradualmente amarelando com as primeiras luzes, mais impertinentes, que começavam a preencher as sombras da madrugada.
Levou a mão à boca e tragou ainda mais lentamente, de olhos semi-cerrados, sentindo a fumaça cobrir o seu rosto por inteiro. Via pingos de luz como se estivesse escondido por detrás de uma cortina. Debruçou-se então sobre o parapeito e ansiou por reflexões de alguma relevância, mas foi como se abrisse uma gaveta vazia ou uma caixa de fotos insignificantes. Nada.
Sentou-se na janela, com os pés descalços voltados para rua e roçou-os com preguiça contra o muro de pedra fria. Havia um vento, um musgo, uma poeira e ele sentia aquela mistura lhe cobrindo os calcanhares de maneira irresistível. Pensou num punhado de pessoas e eventos passados; coisas perdidas no caminho, apostas mal sucedidas, amizades desfeitas e romances medíocres. Por alguns instantes sentiu saudade de sua família, mas também esse pensamento se mostrou rapidamente rarefeito. Não sentia saudade de ninguém.
Precisava se vestir para o trabalho. Mas era como se o seu corpo estivesse preso. Não se tratava de letargia ou preguiça. Pelo contrário. Ele não queria sair dali, não queria se levantar da janela. Queria permanecer ali, à mercê de si mesmo, contemplando o formigueiro urbano que gradualmente começava a se manifestar. Mexeu os pés para um lado e para o outro e se lembrou de quando era criança, com as pernas afundadas na grande piscina da casa de seus avós.
Para um lado e para o outro, para um lado e para o outro.
O vento ocasionalmente lhe desarrumava os cabelos. Passava a mão levemente sobre a cabeça, sempre pensando se haveria ali mais fios brancos. Mais um cigarro para aquecer o rosto e as mãos. Era uma manhã inesperadamente fria.
Havia algo, meio sem nome, dentro dele. Algo que parecia corroê-lo. Uma ânsia, uma raiva, uma mágoa que, misturadas, davam a sensação de que seu corpo poderia implodir, de dentro para fora, a qualquer momento. Lembrou, novamente, de pessoas e eventos passados. E brincou consigo mesmo de uma forma como há muito tempo não fazia. Imaginou-se com poderes mágicos. Fazê-los desaparecer. Não eram pensamentos de vingança. Não necessariamente.
Sorriu, deixando escapulir um último rastro de fumaça pelo canto da boca. Queria que aquelas pessoas o vissem naquele momento. Elas nunca iriam acreditar.
Ficou de pé no parapeito da janela. Abriu os braços em cruz. Fechou os olhos. Respirou profundamente.
E, então, voltou para o quarto fechando a janela atrás dele com um pensamento fixo em sua cabeça. Uma ideia resolvida.
"Decidi me tornar um homem mau".
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