quinta-feira, 16 de agosto de 2012

PÁSSARO

O sol pintava o seu rosto com aquela luz morna, adorável, que o fazia sentir-se vivo. Rajadas rebeldes de vento sob as asas, ganhando altitude e então despencando, apenas por diversão. Aquela liberdade absurda, aquela imensidão, aquela sensação salina ao voar rente sobre a água do mar. Ouvia seus irmãos gritando ao longe, em sequência, e então voltava ao bando. Voavam juntos, livres, libertos. Pássaros.

A vida se resumia àquela sucessão de eventos simples, aquele encadeamento de eventos relacionados à fome, ao descanso, à procriação. Navegar entre as nuvens, roubar lanches de mãos desatentas, acasalar no calor das árvores. Sol, lua, ar, estrelas. Os dias eram iguais e completamente diferentes. A cada nova manhã.

Não havia limite para o que o horizonte dos seus olhos podia registrar. Campos verdes, fecundos, vivos, estendendo-se até as montanhas. Prédios de múltiplas formas, cores, materiais. Pessoas de rostos distintos, roupas, hábitos. Veículos de todos os tamanhos e sons, pontes, monumentos. Cidades gigantescas, ruas e rodovias, tentáculos de animais impossíveis. Fontes onde refrescar-se do calor, sombras, sementes, antenas e fios de alta tensão. O mundo era incrível, visto do alto.

Divertia-se com os animais do chão. As travessuras dos gatos nas janelas, os cães correndo atrás das suas bolas, os bichos diversos nos zoológicos, os outros pássaros, uns tão agradáveis outros tão perigosos. Amigos e inimigos. Como tudo na vida.

Rodopiava, enamorava-se das pipas, assobiava ao som de canções distantes, perdia-se nos labirintos de lençóis estendidos nos varais anônimos. Aquele cheiro, aqueles abraços deliciosamente frios ao redor de suas penas. Sentia saudades, sem saber do quê. Sentia faltas sem rosto, sem nome. Voava, partia, ía embora, esquecia-se dos endereços.

Havia algo no ar, sempre; uma energia, uma eletricidade, um cheiro. Algo de perfume, algo de comida sendo feita, algo de poluição. Havia algo nas madrugadas, nas noites de janelas insones. Nas luzes sem ordem, nos caleidoscópios solitários, espalhados pelas casas, ruas e avenidas. Os homens enrolados em panos puídos sob as marquises, as crianças em suas camas confortáveis, no topo dos prédios.

Via amantes ingressando naquela luta complexa que une homens e mulheres. Via jovens ganhando as ruas nas noites perigosas. Via o crime, via o bem e o mal. Via a alegria dos casamentos nas igrejas e as despedidas nos cemitérios. Risos, lágrimas, brigas, acidentes, buzinas e sirenes.

Documentava tudo, com seus olhos pequeninos e curiosos. E parecia esquecer tudo, a cada novo dia. Culpava aquela sua cabecinha pequenina, todas as vezes que testemunhava um pôr-do-sol inesquecível. E praguejava, sozinho, por saber que não lembraria de nada daquilo quando o sol surgisse novamente no horizonte. Suas lembranças passageiras, desaparecidas. Suas lembranças de pássaro.

E parecia, ele mesmo, desaparecer na névoa, na penumbra que tomava a cidade. Era quando aqueles sons intermitentes, sequenciais, esverdeados, martelavam em seus ouvidos. Pi. Pi. Pi. Pi. Pi. Pi. Pi. Abria os olhos lentamente, iluminados pelo sol morno na janela. Seu corpo imóvel, sua língua muda, aquelas pessoas sem nome observando-o aflitas. O desespero de não conseguir mexer nenhum músculo de seu corpo. Os olhos pingando lágrimas sinceras, esperançosas, por uma nova noite de sonhos.

Seu sonho de pássaro.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

ILUSTRANDO

Joseph Minton - "Auto-retrato"

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

AMOR PLATÔNICO

A atriz escocesa, Rose Leslie, a Ygritte de "Game of Thrones". Honestamente? Não saberia nem por onde começar a explicar.

domingo, 12 de agosto de 2012

PÉS E OLHOS

Filosofia de vida: mantenha os pés no chão e os olhos nas estrelas.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

PARA VER E OUVIR: PEACHES ("FUCK THE PAIN AWAY")

E vamos lá que hoje é sexta-feira!

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"SEJA O MEU PLAYER 2"

Um pedido de casamento geek. Detalhe: quem fez o pedido foi ELA.

"ESTAMOS TODOS CONECTADOS"

Linda campanha da WWF. De arrepiar os ossos.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

PARA VER E OUVIR: JASON MRAZ ("93 MILLION MILES")

TARANTINARTE

Pôsters fenomenais de "Kill Bill" e "Bastardos Inglórios".

ILUSTRANDO

Geek art










A PARTIDA

Ela permaneceu no carro, por mais alguns instantes, antes de dar a partida. Antes de partir. Ela sabia, eles sabiam, que chegava ao fim aquela história. Ali, enfim, de uma vez por todas. Havia algo no ar, algo que podia ser sentido na pele, que no momento que os dois se dessem as coisas seria pela última vez. Como se o encanto estivesse - por fim - desfeito; a magia chegado ao fim, a fonte de esperanças esgotada. A constatação de que nada mais surgiria daquelas portas. Aquela bela mulher, aquele homem bom.

Os dois descobriram que a vida é o terceiro agente de todas as histórias. O inesperado coadjuvante. O ator que rouba a cena. O personagem que se infiltra em todas as decisões, em todos os laços afetivos, em todos os negócios, em todas as histórias de amor. Eles haviam feito uma escolha, dividido os espólios daquela aventura, e havia chegado a hora de seguirem caminhos diferentes.

Viveram numa passagem de horas a efemeridade agridoce de uma vida não vivida. Souberam sobre tudo - ou quase tudo - sobre um e o outro. Ou pelo menos o que era preciso saber. Amaram-se, odiaram-se, decepcionaram-se, descobriram-se com avidez adolescente, fizeram "juras de sal e limão", prometeram pactos sem fundamento. Eram adultos demais, temerosos demais, chatos demais. Ficara para trás, para sempre, aquela juventude de adorável irresponsabilidade, dinheiro curto e cabelos mais escuros. Eles não eram mais os mesmos.

Tentaram, é preciso dar-lhes esse crédito. Tentaram. Corajosamente, sim, tentaram. Provaram sabores, cheiros, sensações antigamente aprisionados em ideias, em pensamentos sem concretude, em sonhos desfeitos, natimortos. Experimentaram, verificaram, naquela apaixonada troca de sons, suor e saliva, que poderiam ser felizes até o fim dos seus dias. 

E então escolheram o caminho mais fácil. O amaldiçoado caminho mais fácil, que é justamente o mais difícil. Aquele em que se abre mão das coisas, deixadas, espalhadas pelo caminho, sem chance de serem novamente organizadas. Folhas espalhadas pelo vento. Perdidas.

Decidiram manter orgulhosas as velas puídas de seus barcos a pique. Decidiram continuar navegando, talvez para fundear, talvez para afundar. Já estavam cansados demais para fundar. Para pular na água, aqueles corpos que talvez não fossem capazes de levá-los à praia. Olhavam o horizonte, aquele sorriso profissional que aprenderam a montar no rosto, para demonstrar bravura e esconder a incerteza. Aquele sorriso confortante de estar fazendo a coisa certa.

Eles sabiam que quando ela desse a partida tudo teria enfim chegado ao fim. Não haveria mais espaços, sobras, pontas a serem atadas. Como os nós que, impossíveis de serem desfeitos, são cortados com faca. Coisa definitiva. Eles sabiam que acabava ali.

Olharam-se com melancolia, uma última vez, paralamentando despedidas que dispensavam palavras, órfãs de verbo. Tocaram as mãos com gentileza, beijaram rostos sem aquela certeza antiga que unia bocas sem hesitação. Corpos, olhos, mãos, bocas, almas, dizendo adeus. Para valer. 

Sim, para valer. Porque tinha valido à pena. Esqueceriam-se, em breve, aquelas memórias sendo enterradas, feito relíquia. Arqueologia. Desapareceriam, como fantasmas. Mas permaneceriam, em algum lugar ainda sem nome, onde se guarda o que passou sem passar. Onde se escreve as respostas que não se conheciam. Para não esquecer em definitivo. 

Não seriam mais nada. Abdicaram daquelas coroas, aqueles reis sem reino, aqueles heróis sem canções. Despiram-se do futuro. Tornaram-se mundanos, desimportantes, vírgulas, não mais que isso. Tornaram-se capítulos. Irrelevantes.

Um sol batendo no rosto, um vento prenúncio de noite mais fria. Uma porta batendo atrás das suas costas. Então a partida. E não se veriam nunca mais.

Aquela bela mulher, aquele homem bom.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

ILUSTRANDO

Gustave Caillebotte - Canotiers, Yerres

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

AMOR PLATÔNICO

Hayley Williams, vocalista da Paramore. Não precisa explicar muito, acho. Haverá sempre um lugar (suspirante) no meu coração geek para essa ruiva pequenina, de voz poderosa e inconfundível charme sagitariano. Mais uma destas [tantas!] que não me deixam esquecer o vermelho.

PARA VER E OUVIR: JON MCLAUGHLIN / SARA BAREILLES ("SUMMER IS OVER")

"TRAGAMOS LENHA"

LXXVIII
Pablo Neruda

Não tenho nunca mais, não tenho sempre. Na areia
a vitória deixou seus pés perdidos.
Sou um pobre homem disposto a amar seus semelhantes.
Não sei quem és. Te amo. Não dou, não vendo espinhos.

Alguém saberá talvez que não teci coroas
sangrentas, que combati o engano,
e que em verdade enchi a preamar de minha alma.
Eu paguei a vileza com pombas.

Eu não tenho jamais porque distinto
fui, sou, serei. E em nome
de meu mutante amor proclamo a pureza.

A morte é só pedra do esquecimento.
Te amo, beijo em tua boca a alegria.
Tragamos lenha. Faremos fogo na montanha.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

domingo, 29 de julho de 2012

COMEÇO, QUEDA E RENASCIMENTO


A celebrada trilogia do Batman, de Christopher Nolan, termina de forma apoteótica. A terceira e última parte da sua visão do cavaleiro das trevas, além de ser o melhor dos três filmes, encerra uma saga de heroísmo e provação de maneira surpreendente, ainda que absolutamente esperada (para não dizer sonhada).

A construção deste Batman tão real, verdadeiro e honesto às origens da criação de Bob Kane - a saber, atraído pelo negro, confuso, beirando à loucura, flertando com o caos - é solidamente fundamentada em três grandes filmes que, juntos, criam muito mais que uma mera trilogia. É quase uma ópera em torno da ascensão, queda e renascimento do cavaleiro mais amado do planeta. E a interpretação de Christian Bale dá propriedade e caráter ao personagem. Do mesmo modo que nunca haverá outro Christopher Reeve, permito-me esta heresia, não haverá outro Christian Bale.
Haverá, algum dia, outro Batman como o vivido por Bale?

Em "Begins", a lenda nasce. E, com ela, a visão inconfundível de Nolan

Em "Begins", Bruce Wayne descobre a máscara e, com ela, a luta e o poder que nascem com o medo. O dele, intrínseco, seus fantasmas, seus esqueletos escondidos, suas limitações e fraquezas. E, por fim, daqueles que ele aterroriza por ser a sombra, por ser invisível, por estar em todos os lugares. Batman começa, de fato. Nasce, ascende, como a estrela solitária que mantém Gotham City a salvo todas as noites. Nasce a lenda.
Em "Dark Knight", o cavaleiro das trevas enfrenta seu maior inimigo. E alma gêmea

Em "Dark Knight", Batman é apresentado ao seu maior antagonista e, porque não, sua alma gêmea: o Coringa. Interpretado magistralmente pelo inesquecível Heath Ledger, o Coringa - eterno agente do caos - promove um duelo de titãs que, no malabarismo de forças absurdas de atração e repulsão, promovem uma explosão sem precedentes na cidade. Não há um sem o outro, não há Batman sem Coringa, o espelho que não pode ser quebrado. Duas metades de uma mesma alma atormentada. Inimigo-mor, o Coringa - derrotado - não se submete sem antes ele mesmo devastar o próprio Batman, fisica, emocional e moralmente. Ele cai, sim, mas leva o morcego consigo para o abismo.

O Coringa magistral e inesquecível de Heath Ledger

Em "Rises", Gotham volta a ser uma arena. Para o confronto definitivo

Por fim, em "Rises", o cavaleiro das trevas é um herói esquecido, desorientado, despido, desprovido de máscara, confundido com um bandido. O duelo com o Coringa ainda rende cicatrizes que latejam, em seu corpo e numa cidade devastada pelo medo e a orfandade. Já não se sabe quem era herói e quem era bandido. De uma caverna, sob as sombras que sempre o acolheram, Batman observa o colapso do seu reino. 

Mas eis que uma nova ameaça surge na cidade. Bane (vivido por Tom Hardy), um terrorista mascarado, sem limites para a sua ambição, que transforma Gotham City numa utopia fascista onde os valores são retorcidos até não terem valor algum. A cidade se rende, sob as botas de um monstro, sem ninguém para salvá-la. É quando Bruce Wayne, do conforto de sua mansão, ainda envolto em ataduras em seu corpo e sua mente, decide vestir a capa. É hora de voltar. 
Bane (Tom Hardy), o senhor supremo de Gotham City

Uma ameaça nuclear, ou seja, extrema, definitiva, dá o tom deste combate. Batman contra Bane, duas forças que não vão medir esforços para subjugar uma à outra. Um caminho sem volta, o ato final, o fim definitivo. O final do caminho, de uma jornada de sacrifícios, em que as máscaras voltam a ser nítidas e o morcego em chamas nos céus de Gotham não dá espaço para dúvidas. O cavaleiro das trevas e está de volta. O medo acabou, sim, mas o fim também está próximo.

Desta vez, porém, acompanhado pela Mulher-Gato [competentemente] interpretada por Anne Hathaway, Batman dá os passos finais ao panteão erguido em seu nome. Fiel à essência da ladra apaixonante, sensual, rápida e letal, a Selina Kyle de Hathaway consegue ser parte heroína, parte vilã, parte amante, numa provocação constante que nem o impávido Batman consegue resistir. O cavaleiro sabe que não há mulher no mundo capaz de habitar o seu mundo. A não ser por uma. 
Anne Hathaway é a Mulher Gato. O flerte impossível - e irresistível - do morcego

A lenda então, de sua queda abissal, renasce mito. A capa, aberta, em farrapos, que volta a acolher milhões de almas numa cidade paralizada. O desfecho que, como todo fim, é, em si mesmo, cartarse, canalização de energias, renascimento. Do fogo que consome seu duelo final, o morcego também se mostra uma fênix.

Há uma despedida, claro, seria impossível não haver. Há uma orfandade, novamente. Há uma saudade e um questionamento inevitável. Mas há também uma certeza, vibrante, brilhante, dourada, como o morcego de asas abertas, que olha sobre a cidade, do alto das nuvens.

Batman nunca estará longe demais.


sexta-feira, 27 de julho de 2012

ILUSTRANDO

Joseph Minton - "Cada vez mais próximo"

terça-feira, 24 de julho de 2012

ÀS VEZES...

Dá uma vontade de pegar carona nas asas de pássaros imigrantes. Às vezes.

MUSA

segunda-feira, 23 de julho de 2012

"EM SEU TEMPO, ELES TE ENCONTRARÃO NO SOL"

Primeiro teaser oficial do novo filme do Super-Homem, "Man of Steel". De arrepiar.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

PARA VER E OUVIR: CAT POWER ("GOOD WOMAN")



Bonito que chega a doer:

"Sentirei saudade deste coração tão carinhoso
Amarei esse amor para sempre
E é por isso que vou embora
E é por isso que não posso mais te ver".

quarta-feira, 18 de julho de 2012

ILUSTRANDO

Auto-retrato de Frida Kahlo

segunda-feira, 16 de julho de 2012

NADA EXIGE, NADA PEDE, NADA ESPERA

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de sua presença.
Nada exige ou pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza,
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não.
Ele venceu a dor, e resplandece no
canto obscuro, tão mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 15 de julho de 2012

A VIDA RENASCE

Novo comercial da Johnson's Baby. Há muito tempo eu não via uma propaganda tão tocante. Bato palmas de pé para a agência responsável por essa campanha.

DIA DE SÃO SWITHIN

Hoje é dia de São Swithin. Será que chove ou faz sol?

St. Swithin's Day, if it does rain
Full forty days, it will remain
St. Swithin's Day, if it be fair
For forty days, t'will rain no more


*Saudades de Emma e Dexter. Onde eles estiverem.

sábado, 14 de julho de 2012

HISTÓRIAS SEM FIM

A vida é como a Índia, assim nos diz "O exótico Hotel Marigold" (The Best Exotic Marigold Hotel). Repleta de surpresas, emoções, sensações. Resista e você cairá. Aceite o fluxo, siga com ela, e aproveite a jornada, então. 

Se eu tivesse que resumir este filme modesto e despretensioso em apenas uma palavra, eu escolheria sem pensar duas vezes: "lindo". Simplesmente lindo. Deslumbrantemente lindo. 

Transbordando com um elenco estelar de grandes veteranos, como Judi Dench, Bill Nighy, Tom Wilkinson e Maggie Smith, o filme narra a história - ou o "fim das histórias" - de sete idosos que, por uma série de circunstâncias, veem-se rumo à Índia para um hotel luxuoso que servirá como uma espécie de asilo exótico.

E para lá fogem os protagonistas. Fogem da solidão, da viuvez, da doença, dos segredos, da tristeza e se veem num lugar caindo aos pedaços que, como eles, é um lugar ultrapassado, arcaico, condenado, sem esperança. 

A vida é misteriosa, como a Índia. É preciso seguir em frente, resistir é um erro

Rapidamente, a vida vai dando as caras, mostrando novas cores e perspectivas. E deixando claro que não há nenhuma história, por mais perto do fim que esteja, que não se renove, transforme e ganhe novos capítulos ou mesmo se reescreva do zero. 

Eis um filme mágico, comovente, sobre como a existência é misteriosa, como somos criaturas realmente estranhas e como a vida não se cansa de surpreender, deixando claro que não há fim, só começos. Sempre.

ILUSTRANDO

Edward Hopper - "Reclining Nude"

quinta-feira, 12 de julho de 2012

ÚLTIMA CHAMADA

Os dois permaneciam imóveis, seus corpos cansados quase inteiramente submersos naquela água morna, que os envolvia. Sob a água, dois pares de pernas entrelaçadas, de pelos, de peles, num diálogo silencioso que misturava curiosidade e carinho. Uma ternura antiga, com jeito de lar.

Por cima da água, seus olhos em cantos opostos da pequena banheira, num parlamento de pensamentos não confessados. As mãos delicadamente se encontrando nas bordas, equilibrando taças de vinho e charutos numa atmosfera sensual, quase cinematográfica.

Música tocando no quarto, nem alto, nem baixo. Algo para se ouvir de olhos fechados, sem dormir. Algo de vento, algo de chuva, algo de amor, algo de dor que lateja. Dedos se procurando, um quê de desespero. Sim, estavam ali. Ainda estavam ali. 

Trocavam sorrisos, lançavam um ao outro olhares de ternura, de desejo, de provocação. Cabelos úmidos, pingando sobre os ombros, arrepios ocasionais, numa penumbra de sombras e velas que transformavam aquele banheiro numa catedral de uma religião inventada. Aquela fé anônima, compartilhada pelos dois na eternidade daqueles momentos fugazes.

Ele decidia entretê-la. Ela gargalhava, dobrando a cabeça para trás, o cabelo claro, desgrenhado, espalhando-se como tentáculos. Ele avançava em busca do seu pescoço revelado. Empurravam-se, buscavam-se. Abraços, beijos, arranhões sem cortesia. Faziam ondas, maremotos, bagunças, feito crianças.

Havia uma felicidade genuínia que os unia. Uma cumplicidade especialista em libertar borboletas de abdômem. Aquela celebração banal, quase secreta. Telefones desligados, cortinas fechadas, uma cama de lençóis desfeitos havia mais dias do que conseguiam contar. Ou queriam. Sobre a mesa, frutas, queijos, vinho, aquela paixão meio renascentista. E peças e pedaços de roupa espalhados pelo chão, como fragmentos de uma batalha. Testemunhas de uma pressa, de uma ausência, de uma distância.

De uma promessa. 

Pegariam um avião em uma hora, pouco mais que isso. E seguiriam para lados opostos do país. Como faziam havia tantos anos. Aquela despedida iminente. Os sorrisos sofridos, as lágrimas sempre inesperadas, sussurros, abraços mais apertados.

"Até a próxima vez" pensavam. "Quando, onde for possível".

Olharam-se, os corpos nus ainda entrelaçados, úmidos do banho demorado, unidos por um desejo de alma, não só de carne. Mãos tocando ombros, cinturas, pescoços, cabelos. Uma última imagem, um último registro. Uma poesia de sons, cheiros, sabores. Suor, água, unhas. Palavras órfãs, sem frase, promessas que não se cumprem.

Entraram juntos no taxi, como todas as vezes. Aquele cheiro de couro, de coisa usada. Aquele cheiro de saudade anunciada. Mãos entrelaçadas sobre o banco, como namorados, enquanto as luzes da cidade faziam caleidoscópio na janela do carro. Sinais verdes, vermelhos, cães sem rumo, música de rádio, propagandas de produtos desinteressantes. Uma cabeça sobre um ombro. Um carinho no rosto.

"Seria tarde demais?", pareciam pensar em uníssono. "Seria?"

Pediram que o carro desse meia volta.

Era hora de perder aquele voo.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

PARA VER E OUVIR: PABLO ALBORAN ("TE HE ECHADO DE MENOS")

AMOR PLATÔNICO

Emily Blunt. Algo de mutante, de camaleoa, que faz dela um ser meio múltiplo, flutuante, sem formato definido. Ela é a jovem rainha Vitória da Inglaterra e, num passe de mágica, é a assistente de uma temida editora de moda. Ruiva, loira, morena; um rosto marcante, meio máscara, de onde se projeta um par de olhos azuis hipnotizantes. Coisa de água, que dá vontade de pular. Linda, misteriosa, algo de bela e de fera. Mais um amor platônico. 

terça-feira, 10 de julho de 2012

"EU NÃO PRETENDIA TE ACORDAR...

...mas é que eu queria muito te mostrar uma coisa".

ILUSTRANDO

Renoir - "Frau mi sonnenschirm"

domingo, 8 de julho de 2012

PARA VER E OUVIR: PABLO ALBORAN ("SOLAMENTE TÚ")


Alguém para ficar em vista: Pablo Alboran, pop (espanhol) de qualidade com uma pegada cigana incrível.

O PESO DA CAPA

Muitos vestiram essa capa [muitos tentaram]; e alguns até conseguiram. Mas, para mim, Adam West será sempre o Batman definitivo. Do mesmo jeito que nunca haverá outro Superman que não o Christopher Reeve.

sábado, 7 de julho de 2012

sexta-feira, 6 de julho de 2012

ILUSTRANDO

Gustave Caillebotte - "Interior"

terça-feira, 3 de julho de 2012

ILUSTRANDO

Jacques Louis David - "Napoleão em seu escritório"

UM LUGAR PARA VOLTAR

devo ter visto "Darjeeling Limited" (Viagem a Darjeeling), obra-prima, de Wes Anderson um bom punhado de vezes. E me assusto com como a experiência é quase inédita todas as vezes; como se eu não soubesse nada sobre a viagem daqueles 3 irmãos, afastados pelas circunstâncias, em busca de se renovarem e se "reencontrarem" na viagem espiritual mais artificial de todos os tempos. A agridoce essência de Anderson em cada segundo do filme; as relações familiares distorcidas, as figuras materna e paterna idealizadas ainda que absolutamente não-ideiais; as obsessões, ideias-fixas e tudo mais que permeia este filme tão absurdo, surreal e flutuante que preciso (re)ver para acreditar que de fato ele existe. Um filme que figura sempre na minha cabeceira, que me faz sonhar acordado, que transpira inspiração e perfeição. E que usa câmeras-lentas que são simplesmente lindas de morrer.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

2 DE JULHO

Hoje é dia de lembrar que foi preciso derramar muito sangue baiano para que a Independência do país fosse plena. Salve o 2 de Julho!

domingo, 1 de julho de 2012

A MARCHA DA RAINHA NEGRA

Esta é só mais uma história de ninar, como tantas outras, sobre um tempo de heróis e princesas, castelos e batalhas, grifos e dragões. Fragmentos de lendas, misturadas ao longo dos anos, pela língua comum, de modo que já não se sabe ao certo a essência da sua originalidade. Ou mesmo sua utilidade. Uma história sem moral, sem ensinamento. Apenas uma história. E ela começa assim:

A paisagem árida, cinza, melancólica cercava quilômetros ao redor daquela arena. Esqueletos de árvores espalhados por todos os lados, rochas queimadas, apenas chão, apenas barro, apenas cascalho e um vasto céu negro sobre dois vultos dormentes, lado a lado, como amantes.

O grande dragão negro jazia ali, abatido. A cabeça enorme, imóvel, a língua verde musgo, como uma esmeralda fosca, pendendo feito uma cortina entre os dentes afiados como adagas, pingando um líquido viscoso que fazia fumaça ao encontrar no chão. Os olhos cor de âmbar, paralisados, escondidos atrás de pálpebras semi-cerradas. O gigantesco corpo de escamas cor de ônix, duras feito aço, espalhado como uma noite compacta sobre o chão marrom. Aquele colosso. No peito da besta, uma espada cravada, como um broche. Um vapor forte, um cheiro cortante escapando pela ferida aberta pelo aço. Não havia dúvida que o dragão estava morto.

Logo ali, ao seu lado, pequenino, estava o herói desta história. Deitado, imóvel, o peito arfando vagarosamente sob a armadura chamuscada. Onde antes havia aço reluzente restava apenas rasgos num metal queimado, sujo de terra e de sangue. Onde antes havia uma longa capa, pérola e azul, agora estava um trapo rasgado como uma rede de pesca. O elmo, antes orgulhoso, com duas asas adornando as têmporas, agora parecia uma máscara sem forma, fragmentada. E, centenas de metros dali, seu longo escudo, estampado com um leão orgulhoso e o lema "Graça Plena", jazia como uma bandeja velha e imunda.

Ele olhava para o céu, com lágrimas nos cantos dos olhos, incrédulo do seu feito; sorriria se houvesse um músculo em seu rosto que não estivesse completamente exaurido. Fechava os olhos devagar e voltava a abri-los, absorvendo a luz tênue do sol da manhã que começava a banhar os dois combatentes. Aquela luta que, por seus cálculos rápidos, devia ter se arrastado por semanas. E ele até se levantaria para ir embora, caso a sua montaria ainda estivesse viva e se cada osso de seu corpo não estivesse completamente estilhaçado, feito vidro.

A lenda conta que este cavaleiro foi o único herói que conseguiu encerrar o reino de terror da Rainha Negra que, em sua última marcha, havia tomado para si a forma de Zalfatrax, o grande dragão negro. O rei de todos os dragões. Ela havia sido derrotada, até o dia que voltasse para a nova marcha.

Os dias foram se transformando em anos e a história foi virando lenda. As crianças ouviam a narrativa do herói anônimo e ficavam imaginando que forma a Rainha Negra tomaria quando voltasse. "Ela voltará como uma fada, para enfeitiçar todos os homens do reino", diziam algumas meninas. "Ela voltará como uma grande serpente", arriscavam uns meninos. "Ela não voltará nunca mais", diziam os velhos, antes das velas apagadas e dos beijos sobre as testas inquietas. "Pelo menos rezamos todos os dias que não", pensavam em silêncio.

Mas ela voltaria. Centenas de anos depois.

E rapidamente a história correu entre os vilarejos. A Rainha Negra estava de volta e, pouco a pouco, tombavam as torres e castelos. As fronteiras se estreitando, a sombra cobrindo o reino novamente. "Sob que forma ela voltou?", os aldeões suplicavam aos mensageiros. Mas ninguém havia visto quem comandava as hordas selvagens que aterrorizavam o reino. A marcha ganhava cada centímetro do mapa, feito tinta derramada, inundando todos os cantos sob uma névoa tão grossa que quase podia ser tocada. Estava de volta o tempo de culpas e tristezas.

Os exércitos eram dizimados. Soldados sem pernas, sem braços, sem olhos, moribundos, retornando às cidades para narrar novos episódios da marcha. "Ela tem devorado meninos recém-nascidos", diziam alguns. "Ela escraviza as meninas", diziam outros. "Escondam as crianças", todos pareciam concordar.

Até o dia em que ela se revelou. Sombria, os braços compridos como tentáculos. Olhos negros, profundos, abissais, a pele branca como a neve, os cabelos cor de fogo, lembrando serpentes.

* * *

"Os cabelos cor de fogo, lembrando serpentes...", a voz dela, ao seu ouvido o retirou de um transe profundo. Com um salto, ele se virou ao encontro de sua mulher, que lia sua história do seu ombro, como sempre fazia; contra a sua vontade. Pela milésima vez, ele reclamou do hábito impertinente, que tirava a sua concentração e fazia as ideias desaparecerem. Não gostava que lessem nada antes de concluído. Quebrava a mágica, o encanto se perdia.

Ela sorria, como sempre fazia. Um punhado de beijos carinhosos, cócegas e carinhos que derrotavam todos os argumentos. 

"Deseja salvar o documento?".
Não.

O jantar estava na mesa. E ele a acompanhou, rabugento. 

E feliz. É que ele não sabia como terminar aquela história.

PARA VER E OUVIR: BOB DYLAN ("MOST OF THE TIME")


Uma música simplesmente perfeita.

PARA VER E OUVIR: JOHN MAYER ("QUEEN OF CALIFORNIA")

ILUSTRANDO

Georgia O'Keeffe - "Cavalo"