segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A PARTIDA

Ela permaneceu no carro, por mais alguns instantes, antes de dar a partida. Antes de partir. Ela sabia, eles sabiam, que chegava ao fim aquela história. Ali, enfim, de uma vez por todas. Havia algo no ar, algo que podia ser sentido na pele, que no momento que os dois se dessem as coisas seria pela última vez. Como se o encanto estivesse - por fim - desfeito; a magia chegado ao fim, a fonte de esperanças esgotada. A constatação de que nada mais surgiria daquelas portas. Aquela bela mulher, aquele homem bom.

Os dois descobriram que a vida é o terceiro agente de todas as histórias. O inesperado coadjuvante. O ator que rouba a cena. O personagem que se infiltra em todas as decisões, em todos os laços afetivos, em todos os negócios, em todas as histórias de amor. Eles haviam feito uma escolha, dividido os espólios daquela aventura, e havia chegado a hora de seguirem caminhos diferentes.

Viveram numa passagem de horas a efemeridade agridoce de uma vida não vivida. Souberam sobre tudo - ou quase tudo - sobre um e o outro. Ou pelo menos o que era preciso saber. Amaram-se, odiaram-se, decepcionaram-se, descobriram-se com avidez adolescente, fizeram "juras de sal e limão", prometeram pactos sem fundamento. Eram adultos demais, temerosos demais, chatos demais. Ficara para trás, para sempre, aquela juventude de adorável irresponsabilidade, dinheiro curto e cabelos mais escuros. Eles não eram mais os mesmos.

Tentaram, é preciso dar-lhes esse crédito. Tentaram. Corajosamente, sim, tentaram. Provaram sabores, cheiros, sensações antigamente aprisionados em ideias, em pensamentos sem concretude, em sonhos desfeitos, natimortos. Experimentaram, verificaram, naquela apaixonada troca de sons, suor e saliva, que poderiam ser felizes até o fim dos seus dias. 

E então escolheram o caminho mais fácil. O amaldiçoado caminho mais fácil, que é justamente o mais difícil. Aquele em que se abre mão das coisas, deixadas, espalhadas pelo caminho, sem chance de serem novamente organizadas. Folhas espalhadas pelo vento. Perdidas.

Decidiram manter orgulhosas as velas puídas de seus barcos a pique. Decidiram continuar navegando, talvez para fundear, talvez para afundar. Já estavam cansados demais para fundar. Para pular na água, aqueles corpos que talvez não fossem capazes de levá-los à praia. Olhavam o horizonte, aquele sorriso profissional que aprenderam a montar no rosto, para demonstrar bravura e esconder a incerteza. Aquele sorriso confortante de estar fazendo a coisa certa.

Eles sabiam que quando ela desse a partida tudo teria enfim chegado ao fim. Não haveria mais espaços, sobras, pontas a serem atadas. Como os nós que, impossíveis de serem desfeitos, são cortados com faca. Coisa definitiva. Eles sabiam que acabava ali.

Olharam-se com melancolia, uma última vez, paralamentando despedidas que dispensavam palavras, órfãs de verbo. Tocaram as mãos com gentileza, beijaram rostos sem aquela certeza antiga que unia bocas sem hesitação. Corpos, olhos, mãos, bocas, almas, dizendo adeus. Para valer. 

Sim, para valer. Porque tinha valido à pena. Esqueceriam-se, em breve, aquelas memórias sendo enterradas, feito relíquia. Arqueologia. Desapareceriam, como fantasmas. Mas permaneceriam, em algum lugar ainda sem nome, onde se guarda o que passou sem passar. Onde se escreve as respostas que não se conheciam. Para não esquecer em definitivo. 

Não seriam mais nada. Abdicaram daquelas coroas, aqueles reis sem reino, aqueles heróis sem canções. Despiram-se do futuro. Tornaram-se mundanos, desimportantes, vírgulas, não mais que isso. Tornaram-se capítulos. Irrelevantes.

Um sol batendo no rosto, um vento prenúncio de noite mais fria. Uma porta batendo atrás das suas costas. Então a partida. E não se veriam nunca mais.

Aquela bela mulher, aquele homem bom.

Um comentário:

Anônimo disse...

''...despedidas orfãs de verbos ''..é lindo.Aliás texto impecável.