Quando eu piso com os pés descalços sobre o chão frio, é como se eu tivesse três anos de idade novamente. E todo o peso daquela última noite volta, como um piano despencado sobre o meu juízo. Sinto o vento nas minhas pernas descobertas, o corpo frágil, coberto por uma fralda e uma camiseta estampada por balões e palhaços. E o braço firme da minha mãe, me carregando como uma bola de futebol, para dentro da noite escura.
Mas também é só o que eu me lembro.
* * *
A minha mãe foi a mulher mais corajosa que eu conheci. E lembrar dela dispara uma cadeia de pensamentos um tanto desconexos, um caleidoscópio de imagens borradas capturadas por uma câmera mental de um menino inocente.
Como quando a minha mãe me colocava fones de ouvido, no meio da madrugada, para que aqueles sons estranhos, de cordas e flautas, me fizesse dormir. Ela amanhecia com o rosto machucado, vermelho, braços e pernas arranhados.
"Foi um monstro", ela sorria, por trás da minha tigela de cereal.
Eu ficava espantado com aquelas palavras e, com a colher enfiada na boca, imaginava a criatura que a havia ferido na noite; os olhos amerelos, as unhas compridas, as orelhas de lobo. Era assim que eu imaginava o monstro que havia ferido a minha mãe.
Então ela me escondia no armário, ou debaixo da cama. "Não saia daí", dizia, "não faça barulho". E eu me encolhia, no canto escuro; a respiração ofegante, embriagado por aquela adrenalina infantil, enquanto ouvia os barulhos de coisas quebradas, os gritos, toda aquela dor tão estrangeira e desconhecida. Era a minha mãe, enfrentando o monstro.
Quando ela me acordava, na manhã seguinte, tocava o seu rosto estranho, os olhos envoltos num miasma lilás e carmesim, a sua roupa de dormir rasgada, as marcas da violência estampadas por todo o corpo.
"Foi o monstro, mamãe?", eu perguntava, enquanto ela me abraçava.
Sentia a sua cabeça consentir, enquanto seu peito arfava e ela umedecia o meu ombro.
Até que aquela madrugada chegou. Ouvi o grito estridente, assustador, como um uivo. Os passos pesados no corredor do apartamento pequeno, o barulho de um furacão transtornado, revirando a casa pelo ar. Os gritos da minha mãe, o som do seu corpo sendo jogado no chão. Uma sinfonia de caos que inundava a minha mente com imagens aterrorizantes, enquanto eu rezava baixinho, para que o monstro não a levasse embora.
"Por favor, por favor, por favor".
Então o silêncio. O choro. Os passos apressados da minha mãe, a luz do corredor explodindo no meu quarto escuro, a minha mãe me puxando de dentro dos lençóis, o vento frio da rua, os gritos e as palavras de cólera nas nossas costas, os meus olhos fechados, a voz da minha mãe, sussurrando no meu ouvido: "acabou".
* * *
Num dia como hoje, de nostalgia que escorre pela janela com a chuva, me pego contemplando a rua. A cabeça encostada no vidro, olhos fechados. Suspiro. Saudade. Dor de órfão, vazio profundo, ferida aberta por fotografia.
A minha mãe foi a mulher mais corajosa que eu conheci.
Ela me salvou do monstro.
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