terça-feira, 3 de março de 2015

COWBOYS E ÍNDIOS


I. Inércia: sem ação, nem atividade. Ausência de reação, falta de mobilidade, estagnação.

II. Ação, nas armas de fogo, é a mecânica responsável pela ativação do sistema de disparo ou ciclo de municiamento. Quando o atirador aciona o gatilho, a arma levanta o cão e com a continuidade do acionamento, o mesmo faz um movimento contrário que bate na espoleta disparando o projétil.


* * *

Colocou o disco no tocador do carro. O mesmo disco que ouvia há já nem lembrava mais quanto tempo. As mesmas músicas, repetidas em loop, que embalavam o trajeto de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Ele até sentia vontade de ouvir outras canções, mas inevitavelmente voltava a colocar o mesmo disco e seguia o seu caminho. Já nem ouvia mais as canções, apenas as ignorava, deixando que elas sufocassem os seus pensamentos no mar de luzes amarelas e vermelhas do trânsito. 

Ele odiava voltar para casa.

BANG!

Bateu a porta da sala com força, como sempre fazia, para dar tempo suficiente à sua esposa de interromper seus afazeres domésticos e vir até a sala explicar o que ela estava fazendo com aquele um de tantos visitantes masculinos. As roupas mal abotoadas, os cabelos desgrenhados, o suor evidente e a respiração ofegante não davam muita margem para interpretações equivocadas, mas ele fingia ouví-la mesmo assim, enquanto depositava as chaves na mesa e passava os olhos pela correspondência.

"Ele veio aqui me ajudar com..."

"Blá, blá, blá, blá, blá..." era só o que ele ouvia, enquanto caminhava entre os dois, no seu percurso entre a sala pequena e o banheiro, onde lavava o rosto por longos minutos, respirava fundo, e lamentava aquela existência patética.

Ele já nem lembrava quando aquele teatro havia começado. A sua mulher era infiel desde quando ele conseguia se lembrar. A diferença é que ela foi ficando descuidada, pouco interessada em disfarçar os passos, deixando os rabos cada vez mais soltos. 

Antes, no começo, ela era mais cuidadosa; deixando volumes escondidos sob os lençois enquanto fugia na madrugada para voltar no raiar do dia seguinte; ou as ligações de celular que ela saia do apartamento para atender, quando se lembrava que havia deixado algo no carro ou para ir à padaria, algo que ela fazia com grande frequência. Não, não mais. Ela acabou perdendo a paciência para essas manobras. E, por educação, inventava uma desculpa qualquer para esconder o seu adultério que parecia praticar como esporte. 

Ele odiava aquela mulher.

O que o intrigava era por que raios ele aceitava aquela condição precária, humilhante. Ele não sabia a resposta para essa pergunta que martelava os seus pensamentos sem piedade. Tinha uma suspeita, claro, que contaminava as suas ideias de chuveiro. Inércia. Por comodidade, estagnação, ele aceitava aquele teatro. A ideia de uma separação e todos os movimentos físicos - e financeiros - envolvidos pesavam mais sobre o seu julgamento. 

Ora, ele não amava mais aquela mulher - havia muito tempo. E não se importava, em verdade, com os constantes encontros dela com seus visitantes masculinos. Sim, claro, sentia-se ofendido, pela ideia de ser casado com uma mulher tão adúltera, sem valor, com um ser humano tão desprezível, e como isso afetava o seu orgulho, mas era só isso. Queria ela longe dele, que o deixasse em silêncio e em paz, e isso ela fazia todas as noites, quando saia para encontrar algumas amigas ou ir ao supermercado e voltava para casa na manhã do dia seguinte fedendo à bebida, cigarro e perfume. 

Então a água morna do chuveiro lhe trouxe uma cadeia de pensamentos novos, frescos, que invadiram o seu peito com uma onda de adrenalina que o fez se sentir vivo, pela primeira vez, em muito tempo. Uma equação simples, alguns passos, contatos, decisões que resultariam na resolução da essência dos seus problemas. Como se livrar daquela vida. E tudo parecia tão simples, afinal. 

Na volta do trabalho, virou uma esquina inédita. Mudou o percurso e se enveredou por ruas mais obscuras, com cara de centro de cidade e cheiro de perigo. Sem falar muito, pegou sua encomenda e entregou uma sacola com um maço de dinheiro. Lembrou de quando brincava de cowboys e índios, de quando era genuinamente feliz. O coração galopava em seu peito, marcando o compasso do suor frio que escorria pela sua testa, enquanto ele retornava para casa. 

BANG!

BANG!
BANG!

BANG!

Exatamente como no tempo de cowboys e índios.

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