segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

SETE DIAS PARA O FIM DO MUNDO


Primeiro veio a euforia. Os casamentos coletivos nos parques, os novos profetas, as odes públicas ao desapego, com pessoas queimando dinheiro, jogando fora todo o tipo de bens materiais. De uma hora para a outra, a cidade estava tomada por pilhas de televisores de tela fina e smartphones, amontoados, ignorados, como lixo. 

O amor era celebrado em cada esquina, onde estranhos se abraçavam, dançavam; casais faziam amor ao ar livre, crianças corriam nuas, e música podia ser ouvida onde quer que se procurasse. Era como se a humanidade estivesse saboreando uma redenção, diante daquela certeza que parecia vinda de um filme ruim de ficção científica: a terra chegaria à completa aniquilação em uma questão de dias. 

Então veio à realidade. 

E isso foi como um golpe que subitamente pareceu pegar a todos desprevenidos. As ruas, que antes estavam tomadas por música e alegria, de repente viraram desertos, onde só o silêncio podia ser ouvido. Com algum esforço, era possível ouvir o desespero de uma pessoa à janela, olhando incrédula para o horizonte. O cenário de caos era inconfundível: os carros largados pelas avenidas, animais abandonados, com suas coleiras arrastando no chão, homens, mulheres, velhos, todos caminhando sem rumo, sem propósito. 

Foi quando começaram as revoltas. A cidade foi lambida por uma onda voraz de destruição e depredação. Lojas sendo saqueadas, carros em chamas, vidros e janelas destruídas, mulheres sendo atacadas nas ruas; como numa ode ao hedonismo extremo, jovens se embriagavam até cair, homens e mulheres consumindo todo o tipo de entorpecentes, policiais e bandidos roubando juntos; morte, conflito, dor, fúria, em todos os cantos. Atos desesperados diante do fim inevitável. 

Nesse momento, ele decidiu que iria embora dali. Correu para o armário e se viu diante de uma escolha inacreditável. O que carregar consigo, que itens eram indispensáveis? Sem meditar muito, buscou seu casaco predileto, um par de calças, algumas camisetas, dois livros, um tocador de música, algumas fotografias e mantimentos secos. Organizou tudo sem muito critério e seguiu para o seu carro. Ele não morreria ali. Ali, não. Nem que tivesse de dirigir por dois dias, sem parar para dormir ou comer, ele passaria os seus últimos instantes diante do mar.

Então, no meio do caminho, em meio à confusão ao seu redor, com pessoas pulando em cima dos carros e o ar tomado por cheiro de coisa queimada, ele teve um pensamento repentino. Ele lembrou dela. Ali, sem mais nem menos, à espera do fim do mundo, ele pensou nela. Mas imediatamente foi repreendido por uma pergunta simples: "Por que?".

E então, por outra ainda mais simples.

"Por que não?".

Como um dublê de filme de ação, ele girou o carro, golpeando uma placa que voou longe dali, feito um dardo e cruzou à cidade em busca dela, rumo ao último endereço de que se recordava. 

Alheio ao cenário de batalha campal, atravessou um enxame de pessoas, que arremessavam entulho e e detrito no vidro do seu carro. Nada daquilo importava, nada mais importava, a não ser aquela ideia fixa e repentina: ele passaria os seus últimos instantes na terra ao lado daquela mulher, seu grande amor, seu único amor; a que tinha ido embora, a que tinha se perdido. E nem que isso lhe custasse cada instante valioso, ele estava decidido a viver os seus últimos segundos ao lado dela.

Para a sua surpresa, encontrou-a sentada na frente do prédio; a mão sobre o rosto, em prantos. Parou o carro e, sem nem tirar a chave da ignição, correu ao seu encontro. Seus olhos se encontraram e, sem nenhuma necessidade de verbo, ela voou em sua direção, agarrando-o pelo pescoço e desabando numa torrente de lágrimas e palavras desconexas. 

Como um tradutor, ele tentou concatenar a cadeia de frases fragmentadas e organizou o roteiro do seu desespero. A sua colega de apartamento havia fugido com o seu carro, ela não sabia para onde ir, estava morrendo de medo e o resto eram soluços e palavras engasgadas. 

Ele pôs as mãos em seu rosto, vermelho e úmido, e por breves instantes ignorou a sua aflição. Queria apenas confirmar, ter certeza de que era ela ali, diante dos seus olhos. Era ela. Os cabelos cor de carvalho, cascateando sobre os ombros; os olhos expressivos, os traços delicados, a pele sardenta, a voz suave.

E, em meio aquele cenário absurdo, ele demorou para entender por que diabos não passou todo aquele tempo com ela; não sabia dizer. Talvez pela certeza tão equivocada de que se tem todo o tempo do mundo para se fazer as coisas de forma diferente.

Pouco a pouco foi acalmando-a, explicando o seu plano. Ela começou a sorrir, entrecortando palavras por um soluço ocasional. Pediu alguns instantes e subiu correndo para o apartamento, para também ela escolher alguns itens para a última viagem. Ele olhava o relógio aflito, rindo da ironia de que nem no fim do mundo uma mulher conseguia se arrumar rapidamente. 

E então ela apareceu na porta do prédio e ele não conseguiu esconder um sorriso. Ela vestia um lindo vestido de festa, preto, adornado por brilhos e rendas e cortado por um longo decote. Tinha os cabelos arrumados num rabo de cavalo apressado, calçava um tênis surrado e sem cadarços, e trazia uma bolsa em uma mão e o seu cachorro em outra. 

"Eu nunca tive a chance de usar esse vestido", ela disse, como se alguma explicação fosse necessária. Pegou a sua mão e a levou em direção ao carro. Acomodou a sua bolsa e o cão no banco de trás e seguiram viagem juntos. 

As estradas estavam vazias e, gradualmente, a civilização ia ficando para trás, dando lugar somente à vegetação, ao céu, às montanhas, aos pássaros voando em bando e fazendo barulho. Como se nada estivesse acontecendo. O vento fazia dançar os seus cabelos, enquanto eles riam, lembravam de histórias do passado; ou então simplesmente se olhavam, em silêncio; ou paravam no acostamento para fazerem amor. De mãos dadas, o tempo todo, seguiram viagem rumo à praia. 

Pouco a pouco, notavam que já não havia mais eletricidade no caminho. Os celulares há muito tempo não tinham mais sinal. Mas ainda havia combustível para fazê-los chegar ao destino. O rádio foi a última herança da civilização à ir embora. Foi quando eles pararam de saber das notícias. 

Faltava muito pouco, porém.

E então lá estava ele, de repente, diante dos seus olhos. Como se fosse a primeira vez. O mar. Esplendoroso e azul, imenso, calmo, completamente ignorante do fim. Eterno, como sempre foi. O barulho das ondas quebrando na areia a fez fechar os olhos, enquanto caminhava descalça rumo à água, a barra do seu vestido já ensopada.

A brisa salina tomava conta do ar ao redor deles e não havia outro som que não o da espuma, das aves, do cão correndo em êxtase pela beirada. De mãos dadas, ficaram ali, diante do mar, contemplando o sol que decorava o horizonte com tons vermelhos e púrpuras. Aquela sinfonia silenciosa que os deixou com olhos úmidos e sorrisos largos. 

O que mais haveria a ser dito? O que mudaria a realidade dos fatos? No fim, no literal fim, estavam ali, sozinhos, diante do mar que lambia os seus pés descalços. E na falta de um discurso propriamente dito, para encerrar aquela história, contentaram-se com o suficiente. 

"Eu te amo".

"Eu te amo".

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