domingo, 2 de junho de 2013

O SEXO DOS PEIXES


Ela já nem lembrava ao certo em que momento da madrugada havia caminhado até a praia. O fato é que estava sentada ali, há um bom tempo, hipnotizada pelo som da água indo e vindo, indo e vindo, quebrando a poucos metros dos seus pés completamente enterrados na areia. 

Um vento calmo, salino, penetrava pela sua camiseta folgada, sua roupa de férias, fazendo-a suspirar. Arrepiando-se, como se fosse o toque de um amante gentil. O céu, de um negro azulado e cheio de estrelas, pouco a pouco começava a ser rabiscado por linhas douradas e carmesins, que nasciam suavemente no horizonte. 

Um barulho distante, talvez um barco, chegava aos seus ouvidos. Algumas luzes pequeninas, estrelas de céu e estrelas de água, e gaivotas tímidas começavam a reconquista do céu ao seu redor. Vagarosamente. 

Ela respirava de forma pausada, de olhos fechados, como se estivesse acalmando o seu espírito. E navegava com as mãos a areia fina ao redor do seu corpo, fazendo castelos secos que desapareciam antes mesmo de ganharem forma. Uma quase lágrima ameaçou suicidar-se dos seus cantos de olhos mas foi sufocada em seu berço.

"Ainda não".

Abraçou as suas pernas, com força, embalando o seu corpo para frente e para trás, para frente e para trás, como o balanço de uma nau. Temia estar afundando na areia, sufocando; mas era só uma ilusão. 

Sentiu passos lentos, atrás de si, e virou-se para encontrar o seu marido caminhando até ela com um semblante que misturava aflição, melancolia e sono. Ele tocou o seu ombro, com carinho e cuidado, e beijou a sua cabeça. E ficou ali, do seu lado, acocorado, fazendo carinhos no seu rosto e chamando-a para dentro.

Em vão.

"Quero que você vá até a cidade agora", ela disse quase cerimonialmente. "Precisamos de leite, pão e manteiga"

Ele concordou, com um aceno leve de cabeça, e caminhou de volta para a casa.

"Você acha que os peixes são felizes?", ela perguntou, olhando fixamente o mar.

Ele permaneceu alguns instantes parado, olhando para a sua mulher. Os olhos úmidos, exaustos, a boca sem verbo. E então voltou para dentro da casa.

Após 20 minutos, ou menos que isso até, ela ouviu o ronco da caminhonete. Seu marido estava indo para a cidade, como ela havia pedido. E, quando o som ficou quase inaudível, ela se levantou. 

Permaneceu de pé, alguns instantes, inalando profundamente a brisa salgada que invadia os seus pulmões. A luz começava a aquecer o seu rosto e o vento parecia glacial enquanto fazia dançar os pêlos dos seus braços. 

Despiu-se, completamente.

E caminhou até a água, onde mergulhou e emergiu, seguidas vezes. Sua mente era um caleidoscópio de imagens mentais. Bolos de aniversário e vestidos floridos; bonecas despenteadas e cigarros escondidos. Beijos roubados, suor, lágrima, sangue. Mãos e bocas anônimas, cheiro de tinta, passagens de avião. 

Saiu da água e conseguia sentir cada uma das gotas que escorriam pelo seu corpo nu. Um corpo bonito, branco, sardento, de linhas firmes e bem desenhadas. A água fazia sua pele brilhar e o seu cabelo, liso e curto, era uma máscara ao redor do seu rosto delicado. 

Ela sorria e chorava. Soluçava, de joelhos na areia, num pranto profundo, antigo, que fazia o seu abdômen se contorcer.

E então voltou para casa, abandonando as suas roupas na areia. Na cozinha, pegou alguns fósforos e pôs as cortinas da sala em chamas. Rapidamente, o fogo vermelho lambeu com voracidade tudo ao seu redor, reduzindo fotografias, móveis e objetos às cinzas. 

Ela permaneceu ali, parada, sentindo o fogo consumindo a sua pele com imensa facilidade. Um calor tão inédito, tão estrangeiro, fazendo sumir carne e cabelo feito mágica. E, como ela havia suspeitado, sentia-se inteira pela primeira vez.

* * *

O homem avistou a fumaça de longe. E encontrou a casa numa grande fogueira. E no meio dela lá estava a sua mulher, dançando, rodopiando, como um dervixe, até tombar no chão e, como o resto da casa ao seu redor, ser uma com o nada.

Ele ficou de pé, diante daquela cena de absurdo e caos. Incrédulo demais para pensar qualquer coisa.

E foi como se todo o peso do mundo tivesse sido retirado das suas costas. 

Ele estava livre.

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