Ela pulou em cima dele, no meio da madrugada, como uma gata, acordando-o com um susto.
"Como você pode estar dormindo?", ela perguntou, ansiosa, "não está ansioso por amanhã?".
Ele se sentou sobre os cotovelos, ainda sonolento. E observou a sua filha por longos instantes, como se aquela fosse a primeira vez que ele a via. Os cabelos castanhos anelados, quase selvagens, os olhos esmeralda, exagerados, as sardas espalhadas feito constelações pequeninas, o sorriso cheio de janelas quebradas, naquele rosto iluminado pelos seus 9 anos de idade.
Aquela menina linda, sua melhor amiga. Ele e ela, sozinhos no mundo.
A menina estava ansiosa porque sabia que o seu pai reencontraria um amor antigo, no dia seguinte. Um amor velho, de carta e fotografia, um amor de jovens, trancafiado sob o peso dos anos e do envelhecimento, um amor destes que fica para trás, quando as correntes do tempo decidem caminhar em direções diferentes.
"Você parece mais ansiosa do que eu", ele respondeu tocando o seu rosto. "Apenas vou encontrar uma amiga".
Ela sorria, um sorriso de gato, a cabeça levemente inclinada sobre o ombro, como se fosse capaz de ler os seus pensamentos. E então se aninhou no seu colo, abraçando-o com ternura, e adormecendo quase imediatamente.
E ele ficou ali, com a sua filha encaixada sobre o seu corpo, sentindo a sua respiração inocente, leve, aquele quase suspiro. O dia começava a pintar tons de ouro e cobalto na janela do quarto, a madrugada pouco a pouco cedendo espaço para um novo dia. E ele respirou fundo, a cabeça imersa numa centena de pensamentos sem costura, cochilando ao som dos pássaros lá fora e das primeiras buzinas.
Ligou o carro e podia vê-la na janela, olhando-o com ansiedade. Ela sabia, ele pensou, ela entendia. Não era só uma questão de amor ou solidão. Ela já o tinha visto, meditando sobre aquela caixa de lembranças, aquelas fotos; ela sabia das suas lágrimas anônimas e da sua saudade.
Ela só não falava nada.
Tirou o carro da garagem e acenou para a sua filha até que a casa se perdeu na esquina e seguiu seu caminho para o restaurante onde reencontraria aquele amor de espera.
A cidade ao seu redor, passando pela janela do carro, as luzes da manhã, as pessoas, os serviços, o trânsito, a música suave embalando o seu corpo envolvo em ar-condicionado. Ele sentia um frio na barriga que parecia fazê-lo pisar mais forte no acelerador, para chegar mais rápido.
Ficou sozinho à mesa pelo que pareceu uns 10 minutos, era o seu hábito de chegar sempre mais cedo. E então ela apareceu e, mesmo após aquela distância e aquelas décadas, ele soube que era ela. Ainda que não tivesse conseguido reconhecê-la.
Não é que ela não estivesse bonita, não era isso. De fato, não estava, mas isso não importava. Ela parecia estranha, como se ele estivesse a enxergando por trás de um filtro de realidade que ele nunca teve, já que apenas a lembrança emoldurava os seus entendimentos sobre ela.
Acompanhou os seus passos, o sorriso inexpressivo, os movimentos desajeitados e, por um instante, quis sair dali. Cumprimentaram-se e ela se sentou para imediatamente inaugurar um monólogo monocórdico sobre todos os aspectos que faziam da vida dela a coisa mais interessante da existência na terra. Seu carro, seus hábitos, seu trabalho, suas coisas.
"Deus, como ela é chata", ele pensava, a mão sob o queixo, disfarçando um sorriso.
E a mulher continuou tagarelando sem parar, o batom manchando alguns dentes, a maquiagem pesada nos cantos dos olhos, a pele flácida do seu rosto, o cabelo e as roupas esquisitas, como se ela tivesse caído de uma máquina do tempo quebrada. E ele ficava pensando o tempo todo no que cozinharia para a sua filha, quando voltasse.
"Fettuccine carbonara", pensava, "ou quem sabe cachorro-quente".
Sorria, então, verdadeiramente.
Olhava o relógio, discretamente, e torturava-se com aqueles ponteiros que se arrastavam no seu pulso. E a mulher continuava falando sem parar, rindo das suas próprias piadas sem graça, cutucando-o desnecessariamente.
"Não fique me tocando", ele pensava com um sorriso amargo. "Eu não te conheço".
"Eu não gosto mais de você".
Ele ficava observando aquela mulher esquisita à sua frente e buscando, no emaranhado dos seus pensamentos, onde estava o seu amor juvenil? Para onde ela havia fugido? Não restava mais nada ali, nenhum grão da mulher incrível que habitava as suas lembranças tão calorosamente. O corpo, os olhos, o sorriso, o humor. Tudo havia se perdido. Ela hava desaparecido e aquela pessoa à sua frente era alguém que ele não queria na sua vida.
Ela pediu licença para ir ao toalete. Ele então aproveitou a oportunidade para chamar um garçom e pagar a conta. E, sem cerimônia, deixou a mesa. O prato quase intocado, a taça de vinho cheia, o guardanapo imaculado.
E caminhou, lentamente, e então quase correndo. Abrindo as portas do restaurante como quem abre a porta de uma prisão. Ele estava livre daquela ideia. E havia compreendido melhor algo que sempre lhe parecera tão claro.
Deu partida no carro e voltou para casa, encontrando a sua filha brincando de dragões e princesas na sala, com a babá. Ela se virou e iluminou a sua vida com um dos seus sorrisos mais desarmantes e correu para o seu encontro. E os dois ficaram ali, parados, abraçados, pela eternidade de alguns segundos. Ela queria saber tudo sobre o seu encontro.
"Ela não apareceu", ele disse, sorrindo.
"Ela é estúpida", a menina respondeu inconformada, "mas você ainda vai encontrar o amor da sua vida, eu sei".
Ao que ele a olhou nos olhos, acariciando o seu rosto.
"Eu também sei", ele disse, abraçando-a novamente. "Eu sei".
E naquela noite decidiram comer fettucinne carbonara.
E cachorro-quente.
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