sábado, 23 de fevereiro de 2013

OS MENINOS PROTEGIDOS

"Havia algo na água", mamãe nos dizia, quando eu e meus irmãos tomávamos banho no lago com o resto das crianças. Aqueles dias quentes de verão em que abandonávamos com incompreensão a água que gelava deliciosamente os nossos corpos magricelas e imberbes.

Saíamos, obedientes, com olhos chorosos e ela nos falava de seres submersos, dragões marinhos e todo o tipo de entidade que habitava aquelas águas. Sentíamos medo, claro, mas ao mesmo tempo passávamos madrugadas em claro dando nomes, inventando histórias, criando mitos para aquelas criaturas que viviam ali.

Não deveríamos cogitar brincar no bosque, também, éramos avisados. Aquela mata fechada, cheia de animais e monstros, e fadas e bruxas. Mamãe nos contava de mantícoras e grifos, e duendes escondidos em cavernas, com seus tesouros que ninguém deveria se atrever a roubar.

Ela mencionava todo o tipo de contos e lendas, e detalhes misteriosos sobre os habitantes da mata em que planejávamos brincar. "Não se deve caminhar por lá", ela alertava, antes de começar a correr atrás de nós pelos corredores gigantescos daquela casa onde hoje depositamos as nossas memórias infantis.

Para tudo havia uma história, um elo mágico com algum tipo de evento absurdo e inexplicável... a altura da copa das árvores, as calçadas movimentadas, as conversas com estranhos; porque não deveríamos beber nem fumar como os meninos legais faziam. Porque não deveríamos fazer as meninas chorarem - "em hipótese alguma". Porque não podíamos brigar uns com os outros, porque deveríamos perdoar e sorrir e sermos cordiais. Todos os motivos pelos quais deveríamos cuidar dos nossos avós, e dos animais, e das crianças.

E das coisas.

Mamãe se escondia sob as cortinas para nos dar sustos e nos ajudava a fazer os melhores acampamentos - no fundo do nosso quintal - onde saboreávamos lanches que ela trazia para nós. E então nos explicava as propriedades especiais de cada uma daquelas comidas. Sanduíches que nos dariam mais coragem, sucos de frutas mágicas que nos deixariam mais fortes, bolinhos que davam sorte, biscoitos que faziam sonhos acontecerem. "Eram todas receitas perdidas, em livros há muito esquecidos", ela explicava.

Queríamos viver aventuras e ela então nos levava ao cinema; o mesmo valia para o parque ou a praia, onde ela sempre nos observava com olhos cautelosos e nos estabelecia limites que traçava com linhas imaginárias, nos impondo prendas e desafios. Em nossos pensamentos sem fronteira, fazíamos castelos e cabanas e minas e enseadas de onde contemplávamos reinos e labirintos e cidades encantadas.

Aqueles anos lindos, que compõem a matéria do que é inesquecível.

* * *

Ficamos devastados, claro, quando chegou o tempo em que ela já não se lembraria de mais nada daquilo. Ou de nós mesmos, até. Mas não importava; o que importava era que nós lembrávamos. De tudo, de cada minuto, de todos os detalhes. Aquelas memórias que aqueciam o peito.

Porque, no fim das contas foram estas as lembranças que ficaram; as marcas permanentes, quando a vimos pela última vez. E em nossas despedidas mais sinceras, eu sabia que todos os outros sentiam o mesmo.

Hoje, passados tantos anos, entendemos que ela só tinha medo de que nos machucássemos; que nos feríssemos à toda, que algo ruim acontecesse com a gente. Era o jeito dela.


Afinal, fomos todos nós meninos perdidos e protegidos, nesta nossa infância privada de perigos.

Mas, ao mesmo tempo, que infância tivemos.

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