terça-feira, 17 de abril de 2012

O LADRÃO DE MOMENTOS

Os dois eram amigos há mais tempo do que conseguiam lembrar. Inseparáveis, incansáveis, aquelas duas almas refletidas num espelho. Aquelas duas metades de uma mesma pessoa. Ele e ela. Amigos de gostos iguais, opiniões, vontades, aventuras. Sabiam tudo, absolutamente tudo sobre as vidas um do outro. Amores, conquistas, tristezas, decepções, frustrações, sonhos, desejos, segredos. Eram confidentes. 

Apenas um pequeno grande detalhe os separava. Enquanto que para ela ele era um irmão entregue pelo destino, ela era o completo, perdido e desesperado amor de sua vida. Ele colecionava seus sorrisos, como um fotógrafo. Mapeava seu corpo, cada canto, cada imperfeição, cada sinal, feito um cartógrafo. Desenhava seus contornos com dedicação e paciência. Ela era sua religião, seu templo, seu destino, seu horizonte. Sua doença sem cura.

Ele sabia os seus cheiros, suas roupas, seus trejeitos, manias, seus sabores preferidos. Era dono de cada sorriso, cada lágrima de que conseguia lembrar. Ela era seu livro, sua música, sua arte, sua profissão. Sua especialização.

Consolava-a, com paciência, todas as vezes que seu coração era partido em pedaços. Mais, ajudava-a a colá-los todas as vezes. Conhecia todos os seus códigos, suas senhas. O que funcionava, o que não funcionava com ela. E ria, um riso largo, ao testemunhar os passos em falso dos inúmeros pretendentes que tentavam conquistá-la em vão. Eles faziam tudo errado. Ela também. Sofria e ele acabava sofrendo também porque a coisa que ele mais detestava na vida era vê-la chorar.

Aquele álbum de fotos mentais. Sua coleção particular, seu mundo secreto. Aquelas milhares de fotos que ele folheava insistentemente. O dia em que se abraçaram sob um mesmo guarda-chuva. Sua respiração ofegante. A vez em que ela o puxou pela mão, ao atravessarem a rua. O cheiro dela que inundava a sua roupa. Sua cabeça, sobre o seu ombro, quando viam filmes juntos. A sensação do cabelo dela em seu rosto. Aquele cabelo levemente ondulado, com cheiro de infância. Seu choro compulsivo com os filmes românticos. O jeito de comer brigadeiro, feito criança, sem receio de lambuzar cabeça, tronco e membros.

Quando dividiam alguma bebida e ele fazia questão de provar onde ela havia deixado a marca de sua boca. Aquela centena de beijos perdidos. Ele tocava onde ela havia tocado, pisava onde ela havia pisado, feito um fantasma. Gostava de visitar seus lugares preferidos, mesmo só, porque a via em todos os cantos que olhava. Sua amiga, sua senhora. Ele era o barco, ela o vento.

A primeira vez que a viu maquiada. A primeira vez que a viu num vestido de baile. Seu cabelo comprido, feito o de uma princesa. Seu cabelo solto no vento, parecendo ter vida própria, cobrindo seu rosto das formas mais encantadoras. Seu cabelo curtinho, rebelde. Seu cabelo preto, castanho, vermelho, amarelo.

Sua adorável inconsistência. Seus sapatos jogados sobre o tapete da sua casa. As coisas que ela perdia e ele achava. As camisas que ela pegava emprestado. E não devolvia. O primeiro beijo escorregado, quando por muito pouco seus lábios não se encontraram. Sua alegria contagiante com as coisas mais banais. Sua mania de chorar com as coisas mais banais.

Ela era linda, ela era perfeita, sua garota, sua menina urbana. Seu sonho acordado. Inacabado. Mas ela não tinha olhos para ele. Ele, o ladrão de momentos, que tinha de se contentar com os fragmentos deixados pelo caminho. Porque ele não tinha morada em seus olhos. Ele era fugaz, feito paisagem na janela do trem. Ele era levado junto, nunca era o ponto de chegada.

No dia do seu casamento, ela estava linda como nunca. Uma rainha sem coroa, caminhando em passos flutuantes, para aquele altar que, para ele, tinha a dimensão do infinito. Aqueles passos lentos, calculados, para cada vez mais longe. E era como se ela desaparecesse na linha do horizonte. No seu horizonte. Ela sorria, feliz, aquele brilho inconfundível no olhar que as pessoas ostentam quando acreditam que será para sempre. E ele estava lá, seu padrinho ilustre, acompanhado apenas por um botão de rosa na lapela e a mais sincera lágrima entre todas no mundo. 

"Você deve estar tão feliz", sussurravam em seu ouvido. Aquelas pessoas sorridentes.

Ele a observava de longe, um sorriso de canto de boca. Desconversava.

"Estou dizendo adeus".

2 comentários:

Anônimo disse...

''ele não tinha morada nos seus olhos'' ,uma das frases mais perfeitas que já li.

Ainda bem que ele disse adeus,ainda bem.

Anônimo disse...

Talvez ele nunca vá conseguir dizer adeus, mesmo que queira. E ela.....só perceberá o grande equívoco dela depois que tiver perdido o seu hospedeiro visual...