sexta-feira, 20 de abril de 2012

15 DE ABRIL

Ela despertou com um susto. O coração na boca, como se tivesse acabado de sobreviver a um sonho ruim. Contemplou o teto do quarto por longos instantes. Suspirava. O seu marido dormia, alheio. Ela o observou por alguns instantes. Olhou aquele quarto, aquele apartamento, aquela vida. E, durante aqueles segundos, não soube responder para si mesma o que fazia ali. Queria fugir. Queria criar asas. 

Então lembrou dele. Aquele pensamento cortante, afiado, que a atravessou feito relâmpago. Pêlos arrepiados, o coração disparado, algo de vertigem, como se ele estivesse ali, do seu lado, sorrindo. Como naquelas lembranças há tanto perdidas. Como naqueles dias, aquelas horas, aquela colcha de lembranças que parecia abraçá-la. Era como se ela pudesse tocá-lo. Sentí-lo. Como se ele estivesse ali do seu lado, mãos enlaçadas, feito namorados. Porque ele diria a ela que estava tudo bem. E colocaria sua cabeça em seu colo e a cobriria de carinhos. E a faria rir.

E, como um passe de mágica, não havia mais nada ali. Fumaça. Apenas a noite. Apenas a janela, os silêncios, ela sentada diante da mesa da sala, contemplando a realidade dos seus próprios pensamentos. Queria ligar para ele, naquele instante, acordá-lo. Queria lhe entregar um ultimato. "Agora ou nunca".

* * *

Lembrou que ele também havia se casado. Lembrou que ela estava ali, nas primeiras fileiras, vendo-o sorrir, aquele dia feliz, festivo, em que suas despedidas pareciam definitivas, escritas em pedra. Aquelas duas criaturas adoráveis, e que poderiam ser tão felizes juntas, mas que haviam se especializado em se despedir. Revezavam-se em se despedir. E era ele quem ia embora naquele momento. 

Ela o observava, em silêncio, e achava-o o homem mais bonito do mundo naquele traje simples que ele escolheu para se casar. Ela sabia que ele odiava "roupa de noivo" e que "jamais vestiria uma no seu casamento"

E lá estava ele. Como prometido. Um terno preto, camisa branca, gravata preta, um botão de rosa vermelha. Ocasionalmente ele olhava para ela, sorria, como se trocassem aquela confidência. E ela chorava, um pranto discreto, quase invisível. Porque mulheres se emocionam em casamentos. Sim. Mas eis que ele voltava os olhos para sua futura mulher. Sob a luz calma daquela capela discreta em que não mais de vinte pessoas testemunhavam aquela cerimônia simples. 

Ela apertava suas mãos. Aquele desejo de fugir. Aquele desejo de desaparecer com aquelas pessoas e dizer a ele aquele caleidoscópio de lembranças, carinhos, palavras, segredos. Aquele baú de lembranças inesquecíveis, que sobreviviam ao tempo; a saudade dos seus corpos órfãos, as imagens mentais, os não ditos, não feitos, não vividos. 

Porque havia tempo. Ainda havia tempo. Haveria tanto tempo mais. Quem ele pensava que era? Onde ele estava com a cabeça? Porque eles pertenciam um ao outro e nada daquilo fazia sentido. Como não fez sentido algum, anos antes, quando ele a olhou se casar. Ali, sozinho, fazendo sua própria despedida. Observando-a da última fileira. Uma lágrima no canto dos olhos, desaparecendo antes que a cerimônia acabasse.

Aquelas pessoas felizes. Aquela simplicidade que a devastava. O jeito dele de fazer as coisas. Porque um casamento é feito de mãos, de beijos, de confidências e de promessas. E depois uma fuga. Discreta. Elegante. À francesa. Nada mais que isso.

Ela o viu partir. Ele sorria, sob o sol, o cabelo bagunçado de uma maneira que ela sempre se impelia a arrumar. Ele acenava, como se fosse uma criança. E parecia ser o homem mais feliz do mundo. Como ela o conhecia. Aquele homem feliz.

E então ele olhou para ela. De longe, pouco antes de entrar no carro. Pela primeira vez um olhar sério, um sorriso de canto de boca, e os dois parlamentaram por horas apenas naqueles olhares. Ele também sentia sua dose de luto. E os dois sabiam disso. Quem ela pensava que era, afinal, onde ela estava com a cabeça, anos antes, quando decidiu ir embora?

Vagarosamente, ele foi ao seu encontro. Atravessando aquelas pessoas que queriam tocá-lo, abraçá-lo. E era como se ele estivesse vencendo uma selva até chegar a ela. Ela. Tão linda. Aquele vestido de verão, aquele lindo cabelo preto, preso ao lado do pescoço, aqueles olhos pequeninos, eloquentes. A boca que por tanto tempo ele venerou. O corpo mais bonito, a pele mais branca, o cheiro de infância que emanava de cada poro dela. Deram-se as mãos, ele segurou seu pescoço por breves instantes, aquele arrepio instantâneo em ambos, aquele arrepio que antecedia seus beijos. Beijou-a no rosto. 

E então ela percebeu que também havia lágrimas em seus olhos. Aquelas lágrimas misturadas, aqueles olhos vermelhos, aqueles soluços discretos. De olhos fechados, despediam-se, sem a necessidade de palavras mundanas. 

Era hora de ele partir. Eis a caótica tapeçaria da vida.

O telefone tinha o peso do mundo em suas mãos. A madrugada sussurrando em seu ouvido, embalada pelo relógio da cozinha, martelando a passagem dos segundos. Ela precisava ligar para ele. Ela sufocava, engasgava. Precisava ouvir a sua voz. Ligava e desligava o aparelho. Não sabia o que dizer. Não saberia. Tantos anos haviam se passado. Tudo estava há tanto tempo para trás. Mas aquilo era mais forte que ela. Como uma onda, uma avalanche, como uma dor sem fim. E ela sabia que a cura era ele. 

* * *

Por um tempo que pareceu infinito, os dois desenvolveram um código, um idioma. Viam-se pouco, em ocasiões planejadas com maestria, feito senhores da guerra. Viam-se, "ao acaso", em cinemas onde matavam a saudade nas últimas fileiras dos filmes que ninguém queria ver. Em supermercados, consultórios médicos, bancas de jornal, lojas de artigos inúteis. Ocasionalmente em pet shops.

Usavam músicas para confidenciar seus pensamentos. Escolhiam eufemismos, brincadeiras de palavras, confidências sussurradas feito mensagens engarrafadas. Encontravam-se, publicamente, como amigos discretos. Cumprimentavam-se, educadamente. E devoravam-se, nas sombras, em algum canto, assim que a oportunidade surgisse. 

Aquela energia represada, desesperada, que às vezes o fazia chorar. 

Viagens à trabalho, cursos, atividades ao ar livre. Inventavam todo o tipo de artifício para viver aquela vida juntos, aquela vida de sonhos, feito espiões, até que pudessem alinhar seus momentos, sincronizar suas vidas de uma vez por todas, até que pudessem resolver todas as pendências do campo da realidade.  

Liam os mesmos livros, combinavam de ver os mesmos filmes e até mesmo de conhecer - separadamente - os mesmos restaurantes. Porque havia algo de inebriante na ideia de que haviam fundado um país. Um mundo secreto do qual ninguém, além deles, tinha as senhas. 

Até que chegou o dia em que seriam felizes para sempre. O dia em que não haveria ninguém na platéia se despedindo. Um dia somente de sorrisos. Um dia de entrega, de completude, o dia em que tudo faria sentido. Aquele dia simples, com talvez nem dez pessoas presentes. O dia em que nenhum coração seria partido. 

O dia em que fugiriam juntos. O dia que, enfim, saberiam que era para valer.

Viveram uma longa vida juntos. E sorriram durante cada segundo.

Até o fim.

Um comentário:

Anônimo disse...

E é por esse dia que pessoas como eu esperam. Pessoas que sofreram por um amor como esses e fez sofrer em demasia o ser amado também. Um infortúnio grande desses da vida, em que ela simplesmente decide por nós, ou nós em particular decidiu por ela que não daria para seguir o mesmo caminho naquele momento. Assim como um desses dois personagens sigo o meu momento, mas fico na esperta certeira de que serei eles novamente por tanto confiar nesse país que fundei com o meu amado há tanto tempo. Uma vez fundado tal pedaço de terra, com essa grandiosidade, não cabe e não dá para ser esquecido. Podem os compatriotas terem ido tentar povoar outros ares, mas todo compatriota acaba voltando para o seu país por saber no fundo as suas origens. Texto emocionante, meu caro. Parabéns!