terça-feira, 24 de abril de 2012

O ASTRONAUTA - DIRECTOR'S CUT

Até que, para sua avassaladora surpresa, ele sentiu um toque delicado nos seus ombros. Algo familiar. Acordou com um susto, o coração disparado, a garganta seca. Olhou ao redor. Ele ainda estava lá. Queria voltar a sonhar.

Queria saber a quem pertencia aquele toque. Decidiu correr as areias do planeta, investigador de araque. Procurando pegadas, procurando rastros, quem sabe cheiros. Pistas. Sabia que aquele era um toque feminino. Só não lembrava em absoluto de sua dona.

Correu os morros, os cânions, aquele sol mostarda coroando seus pensamentos desconexos. Aquela busca.

Então decidiu sentar-se sob uma sombra. Olhava seus pés. Eles pareciam distantes, como se narrassem uma caminhada que ele mesmo já não reconhecia. "Que pés são esses? Que histórias eles contam?". Olhava sua roupa, suas mãos, tocava-se para verificar que ainda estava lá. Sentado, sob o peso da gravidade.

"Sim, ainda estou aqui", apalpava o seu peito, um quase carinho. "Sim, ainda sou eu".

Olhava para o céu. Sorria. Perguntava-se, curioso, o que ainda haveria por lá. Que segredos escondia aquele céu negro, que mistérios? Melhor, que surpresas? Esticava o braço, feito uma criança, como se tentasse trocar uma lâmpada sem sucesso. Queria tocar o sol com os dedos. Aquela catedral de estrelas, astros e luzes ao seu redor. Aquele teatro do infinito que ainda o comovia imensamente.

Corria, sem rumo, os braços voando em todas as direções.
Aquele pássaro desajeitado.
Aquele pássaro desastrado.

Deitou-se. O chão árido, abraçando seu corpo com carinho. Morno. Sentia cada parte do seu corpo marinando sob aquela atmosfera que durante tanto tempo foi o seu lar. Aquele cheiro agridoce no ar. Ouvia sua respiração coordenando o sobe e desce no seu peito. Suspirava. Enfiava mãos e pés sob a areia, como que lembrando de suas brincadeiras de praia. E, por alguns instantes mágicos, parecia sentir o cheiro do mar. Aquele barulho de sonho, aquela espuma salgada, inebriante. E era como se conseguisse ver o seu avô pescando, distante, o corpo enfiado até a metade na água. Sorrindo, acenando para ele. Ouvia sua vó, chamando ao longe. Aquele tempo de sungas e sorvetes. Via sua mãe, sorrindo, aquele sorriso doce que só as mães sabem ostentar com devida propriedade.

E foi como se tudo tivesse ficado claro. Absurdamente claro. Como se as nuvens no céu tivessem se desfeito, espalhando-se num balé de desaparecimentos apenas com o propósito de iluminar as suas ideias. De olhos fechados, sentia a luz do sol pintando o seu rosto com linhas amarelas, vermelhas, alaranjadas. E, na paz daquele momento, lembrou que havia sido a sua mãe quem momentos antes tinha lhe tocado o ombro. Aquele era o toque da sua mãe.

Levantou-se, com um salto. E, ali, diante dos seus olhos, estava ela. Sua mãe. Não como ele a recordava, aquela mulher carinhosa, de saúde frágil e o maior coração do mundo, com quem ele passou menos tempo do que gostaria e deveria. Mas a sua mãe na flor da idade, linda como uma atriz de cinema. Aqueles olhos profundos, melancólicos, aquele abismo de não ditos. Os cabelos negros, longos, lisos, dançando na brisa leve. A silhueta fina. Sim, era a sua mãe, aquela linda jovem, vindo lhe apontar um caminho.

Ela estendeu a mão, feito um convite. E ele foi ao seu encontro. Abraçaram-se por um tempo que pareceu durar um infinito. Ele depositou sua cabeça em seu ombro, os ossos magros espetando seu rosto de maneira confortável. O coração batendo no peito. Um tambor de compassos descansados, de guardas baixas.

E, sem trocar uma palavra sequer, sua mãe desfez seus labirintos. Feito fada. Tocou seu rosto, acariciou seu cabelo, enxugou suas lágrimas com as palmas das mãos. E mostrou-lhe, então, o caminho. O horizonte que habitava o teto sobre a sua cabeça. Aquele teto estrelado, aquele teto de possibilidades. Sorrindo, mãos dadas, ela parecia guiá-lo aos entendimentos que, durante anos, ele não conseguiu compreender, navegando, errante, ambulante.

Sua mãe apontava para as estrelas.

E foi como se aquela gravidade tivesse se convertido em mito, em lenda, em história. E no raiar daquela constatação, ele notou que também sua mãe desaparecia diante dos seus olhos, não sem antes lhe jogar um beijo. Um último sorriso. E então desaparecendo por completo.

Feito mágica, ele sentiu seu corpo levitar. Flutuando, como se nadasse na água, seu corpo sendo empurrado para cima, aquela anti-gravidade. Sua matéria leve, quase inexistente, ele sentia-se como o vento. Sem peso, sem sombra. E subia, subia, subia, feito um foguete preguiçoso, aquela poeira estelar enamorando cada poro do seu corpo. Aquele balão sem dono.

É que ele havia encontrado o caminho de volta.

12 comentários:

I. disse...

Adorei o texto. Acho que sua mãe vai babar com ele, querido.

"E foi como se aquela gravidade tivesse se convertido em mito, em lenda, em história." foi como um soco na boca do estômago...

IONE GONZALEZ disse...

Obrigada.Não vou ''babar'',seria muito mundano e vaidoso.
Enebriada de beleza,saudades e lágrimas.Comovida,tocada eu mesma no ombro,tendo sido voce a me apontar um caminho.Meu sorriso é e sempre foi SEU.

Anônimo disse...

seus textos sao um tesouro. leio todos e sonho com o dia em que alguem escreva algo assim para mim. parabens a mocinha de sorte que acorda ao teu lado, meu caro.

Anônimo disse...

Melhor acordar ao lado de quem vive isso na prática do que só nessa bela e vaga teoria. Ah, se o mundo fosse feito só de letras... Eu seria coroada rainha e não seria essa plebéia, essa mortal que precisa dos pés de todos os dias para caminhar e sim, dos olhos para poder ler belas palavras como essas também. Antes a terra e o caminho do que o espaço e suas estrelas. Não posso ser astronauta: resta-me ser peregrina mesmo.

Orbitalc3 disse...

Querido AstRonauta, causaste polêmica com suas palavras dessa vez, hã?
Que bela homenagem à sua mãe... Que orgulho, hein, mãe? :)
Toda gravidade tem o seu peso, meu querido. Essa mensuração só dói pelo peso que damos a ela; seja mito, fantasia, realidade, só nós saberemos o valor que ela tinha, ou melhor, esse planeta com sua gravidade. Faça como o pequeno príncipe: viaje por todo o espaço, na cauda de cometas ou dragões, voe pelo mundo, meu amigo. Mas se o planeta tinha toda essa gravidade, volte para ele assim como o principezinho. Ampare a rosa, tire as ervas daninhas, acaricie o baobá e perceba que essa gravidade só tem o peso que você dá. ;)

Gostaria de trocar devaneios contigo. É possível? Se sim, cá está o meu contato profissional: orbitalc3@gmail.com
No aguardo da mensagem na garrafa espacial.

Paloma disse...

Amarga peregrina,esta ''é uma obra de ficção,qualquer semelhança...'' terá siso mera coincidencia.
O texto acima não é teoria,é literatura e de profunda poesia.

Anônimo disse...

Será mesmo, Paloma? Como pode afirmar tanto? Eu garanto à você que não é mera ficção. ;)

Rosa Moura disse...

Sempre venho por aqui ler seus textos marcados por uma subjetividade complexa com metáforas geniais,delicadas e comoventes.

Hoje ,com este texto tomei pra mim a dor..explico,tenho 3 filhos e senti inveja.

pois raras,são as mães que sabem o que são para seus filhos?

Quando nos tornamos mães,perdendemos a identidade..desde a maternidade somos ''a mãe de fulano''um ser sem singularidade.

Então quero te dizer que escreva,escreva muito,seus textos são jóias de compreensão da complexidade dos constantes humanos.

Parabéns!

Anônimo disse...

Belo.

Viviane disse...

Só as mães podem entender a enormidade de beleza deste texto.

Paloma disse...

Cara peregrina,tudo que sei é que este blog é sobre textos artes e afins...se voce é ''pé no chão'' e não aprecia a cultura este blog não é para voce.Abraços.

Anônimo disse...

Este texto é belissímo!