quarta-feira, 1 de setembro de 2010

IVO E A INDISCUTÍVEL CERTEZA




Quando Ivo completou 21 anos, ao invés de ser dono de todas as decisões, não fazia a menor ideia de que rumos dar a sua vida. Colecionava pontos de interrogação na mesma medida em que as respostas eram cada vez mais escassas. Vivia com seus pais e três irmãos, numa casa confortável e elegante. Acabara de se formar em Direito, amava a sua namorada e, mesmo sob a sombra de suas dúvidas intermináveis, considerava a sua vida feliz. Tinha seus medos, claro, como todo jovem; mas o resultado das somas e subtrações era sempre positivo.


Mas esse cenário se desfez por completo quando, num desses acasos do destino, a vida de Ivo foi virada pelo avesso. Ao atravessar uma rua movimentada, numa manhã sem importância, ele foi atropelado violentamente por um carro que fugiu sem deixar rastro. Estirado sobre o asfalto quente do meio-dia, Ivo fechou os olhos delicadamente e foi envolto num silêncio repentino e branco. Não havia mais nada, apenas silêncio e vazio. Num último pensamento perdido imaginou-se morto e sentiu um profundo desespero pelo roubo súbito de sua vida. Ele não queria morrer. Não ali, não tão cedo.

Mas Ivo não havia morrido. Ainda que sua mente estivesse adormecida, seu corpo sobreviveu e o deixou em coma profundo. Ele estava vivo,  só não estava lá.

E numa outra surpresa do destino, dessas que parecem copiadas de clichês das novelas da tarde, não demorou muito para que a família de Ivo descobrisse que a sua namorada estava grávida de gêmeos. E eis que o que era somente tragédia se converteu numa nuvem repentina de misteriosa felicidade, que derrubou uma água doce e renovada sobre aqueles campos que antes eram apenas deserto.

Ivo havia sobrevivido, ainda que estivesse em coma, e traria filhos ao mundo. Uma mistura de melancolia e euforia pintava os dias daquela família que já havia esquecido o que era, genuinamente, felicidade e devastação. Desde o acidente, todos os sentimentos eram experimentados em conjunto, como sorriso servido com lágrimas. 

E os dias foram passando. E, rapidamente, virando semanas e meses.


"Quando ele poderá acordar?"


"Hoje, amanhã, daqui a 10 anos, nunca".

Ivo permaneceu todo o tempo sobre a sua cama, envelhecendo horizontalmente, sem nenhum entendimento dos eventos ao seu redor. Fotos, presentes e adornos variados cobriam o seu quarto de memórias que nunca foram suas. Eventos, pessoas, idas e vindas, casamentos e formaturas, a vida de todos. Ivo não viu os seus filhos nascerem, não presenciou a deformação gradual da passagem dos anos, porque esteve em seu sono profundo enquanto a vida se erguia ao seu redor e à sua revelia. A vida de Ivo vivia sem ele. 

E assim se passaram 30 longos anos.

Novamente, numa manhã sem importância, tudo voltaria a mudar. Na janela do hospital batia uma chuva fina, espalhada no vidro por um vento insistente que parecia assobiar. A mãe de Ivo lia, sentada numa poltrona, como havia feito durante todos aqueles anos. E, como na novela de antes, Ivo abriu os olhos subitamente e se viu deitado sobre a cama. Confuso, sentou-se na beirada e pensou no seu atropelador, se alguém haveria anotado a placa e que, sem dúvidas, era um carro vermelho.

"Alguém viu para onde ele foi?", disse, ainda tateando o quarto com os olhos.

Atordoado, não conseguiu impedir a sua mãe de desabar no chão, desmaiada. Médicos, enfermeiras, telefonemas. Ivo estava de volta. 

Não reconheceu as ruas pelas quais o carro trafegava. Não reconhecia os automóveis, as luzes, aquela sucessão de imagens registradas pela primeira vez. Aquela cidade que, como ele, havia envelhecido 30 anos.

Observava prédios e avenidas com olhos de turistas. Tampouco reconheceu aquele apartamento, cheio de pessoas que o olhavam com lágrimas nos olhos e sorrisos largos. Não sabia quem era aquela mulher que o beijava apaixonadamente. Descobriu que tinha dois filhos. Descobriu que já tinha três netos. Conheceu a si mesmo, enquanto tocava o rosto enrugado e os cabelos prateados. Tocava o espelho como quem toca um quadro. "Quem é este velho no espelho?".

Era muito difícil explicar para ele o que havia acontecido. Ivo simplesmente dormiu jovem e acordou velho. E sem nenhum registro sobre absolutamente nada. Assim, como uma grande ironia, ele se viu mais uma vez coberto de dúvidas sem respostas sobre o que fazer de sua vida. Desta vez, no entanto, algo estava muito claro, como um brilho em seus olhos que contemplavam aqueles anônimos com uma mistura de interesse e perplexidade.

Quem sabe aquilo tudo não fosse apenas um sonho?

Por via das dúvidas, Ivo decidiu que não queria perder nem mais um segundo.

Ivo queria viver.

2 comentários:

Luana Ribeiro disse...

Fantástico! "Se eu 'vivesse' amanhã"...

lilian disse...

Muito comovente.Metafora para nós que passamos a vida inteira dormindo.Texto lindo,mais uma vez me leva as lagrimas.