quinta-feira, 9 de setembro de 2010

JANTAR PARA ALICE

Como fazia todos os dias, ele acordou bem cedo para fazer café. Colheu um punhado de amoras e tangerinas no quintal, que cortou em pedaços e fez suco. Tentou passar mel em fatias de pão, mas suas mãos cada vez mais trêmulas já não permitiam muita precisão. Uma rosa solitária, um guardanapo de linho e pequeninos biscoitos de aveia. Todos os dias. E estava pronta a bandeja com o café da manhã de Alice.

Subiu a escada com muito cuidado, planejando cada passo, cada degrau. Lamentava as gotas derramadas e a pequena bagunça que o trajeto impunha à sua bandeja, porque ele queria que tudo estivesse perfeito para Alice. Ela gostava de ser acordada assim, desde quando ainda namoravam. Alice gostava de tomar café na cama.

Mas Alice estava doente, há tanto tempo, que aquele café da manhã não passava de um adorno diário em sua cama. Ela sorria e agradecia com muita dificuldade, enquanto dedilhava os itens espalhados cuidadosamente na bandeja. Mas isso não tinha a menor importância. Era o que ele gostava de fazer por Alice; era o que ainda conseguia fazer por Alice, e ficava feliz com isso.

Estavam juntos há tanto tempo que já nem lembravam mais. As décadas, sobrepostas como livros de histórias, eram muitas. Uma vida juntos. Uma vida feliz juntos. E ele sabia, era inevitável, que estavam diante do ocaso dos seus dias. Mas ainda se desesperava com a ideia de que Alice fosse embora antes.

"Que ela não fosse embora sem ele". Era tudo o que ele queria.

Sentado, na beirada da cama, acariciava os longos cabelos de Alice, gris e prateados, levemente ondulados e ainda tão cheios e bonitos, esparramados sobre o travesseiro. E Alice sorria, com aquele carinho familiar. Ele tocava a sua testa com cuidado e se esforçava para que os dedos trêmulos não fossem por demais inconvenientes. Às vezes Alice retribuia, tocando-lhe a mão, outras vezes voltava a dormir.

Filhos, netos, um lar. Não sabia como medir a gratidão por aquela mulher que havia lhe dado uma vida tão feliz. Não havia nada incompleto, nada pendente. Na companhia de Alice, viu, sentiu, experimentou e conheceu tudo o que julgavam necessário. E, talvez por causa disso, se contentassem com aquela vida de silêncios naquela casa enorme onde o tempo parecia ter parado.

Foi caminhar sozinho no pequeno pomar, ao redor da casa, como gostavam de fazer quando Alice ainda tinha saúde. Há tantos anos Alice quase não saia do quarto. Sentiu o sol morno sobre o rosto e um vento repentino que o fez abotoar o casaco. Havia uma umidade na relva, um cheiro de terra molhada, e ele lembrou da chuva na noite anterior. E imaginou, com certa conformação, que o dia não teria muito mais a oferecer.

Quando o horizonte começou a ganhar tons violeta e caramelo ele decidiu fazer uma sopa. Não sabia fazer sopa, mas imaginou que não deveria ser muito difícil. Cortou legumes de forma irregular, esquentou água. Temperos não muito ortodoxos e uma profunda dificuldade em diferenciar sal e açucar. Mas ele queria fazer jantar para Alice.

Subiu os degraus com dificuldade, equilibrando a sopa como se fosse uma bandeja de cristais. O líquido derramava pelas beiradas, sujava seus dedos, e ele praguejava baixinho por causa daquelas mãos que já não lhe serviam tão bem. Queria que Alice gostasse da sopa, porque ela apreciava surpresas.

Abriu vagarosamente a porta. O quarto, inundado pelo pôr-do-sol à janela, estava coberto de tons alaranjados que deixavam Alice especialmente iluminada. Colocou a sopa com cuidado sobre a cômoda e acordou Alice. Ela abriu os olhos, sentou-se com esfoço e ele ajudou-a a experimentar a sopa, que parecia estar boa.

Alice só não lembrava mais quem ele era. E isso sempre o deixava tão triste.

"Achei que você fosse gostar de uma sopa".

"Achei que você não sabia fazer sopa".

E naquele instante, tão breve e fugaz, Alice olhou-o nos olhos com tanta familiaridade que ele não conseguiu evitar marejar os olhos.

Na manhã seguinte, aquela manhã agridoce, de chuvas e lutos, os dois voltariam a caminhar juntos no pomar.

Um comentário:

lilian disse...

comovem tanto seus personagens masculinos.Sensiveis, humanos,atentos as minucias e delicadezas que desapercebidas não alcançam o universo masculino.
Penso que ''ele'' decidiu bem.

mais uma vez,parabens e obrigada!