sábado, 10 de abril de 2010

A DESCOBERTA DE GEORGE

Quando George nasceu, prematuro, na mesma hora recebeu o nome do santo de devoção de sua mãe. Ela havia feito uma promessa ao santo guerreiro que daria o seu nome ao seu primeiro filho caso tudo corresse bem. Apesar de ter crescido num ambiente de profunda devoção religiosa, George se tornou ateu antes mesmo de se tornar adulto. Sentia, desde muito cedo, que não havia necessidade de se apegar a ideias que não fossem concretas e sentia pavor da histeria provocada pelas religiões que, em seu entendimento, desvirtuavam as pessoas das suas próprias decisões. George não aceitava que houvesse um plano maior, além do seu controle terreno. Religião, qualquer uma que fosse, não era o seu negócio. Ele simplesmente não era um homem de fé.

Assim George viveu, por toda a sua vida. Prático, científico, materialista. Como Woody Allen, preferia o ar-condicionado ao Papa e ria, com uma mistura de pena e deboche, da sua mãe, uma senhora adorável, que sempre cheirava a incenso. Quando a visitava, olhava para o altar em destaque na sala, onde uma imagem de São Jorge podia ser vista em esplendor. "Meu Santo vestido", dizia sua mãe, enquanto tocava orgulhosamente a capa de veludo vermelho do santo imponente.

Em situações como estas, George sempre aproveitava a oportunidade para fazer alguma piada sobre os hábitos, as velas, as flores. Todo aquele "teatro" não fazia sentido para os seus olhos de matemático. Mas sua mãe não se incomodava, pelo contrário, olhava para George com um sorriso tenro e dizia, fitando-o nos olhos e acariciando seu rosto: "Ele olha por você, mesmo assim, meu filho".

George era um homem pacífico, de hábitos comuns. Separado, sem filhos, morava só numa casa confortável perto da universidade onde dava aulas de estatística. Ia de bicicleta para o trabalho, gostava de tomar água de coco ao final do dia e, sempre que possível, encontrava um pequeno grupo de amigos para ouvir jazz no centro da cidade.

Além disso, alguns livros e discos antigos traziam novidade para a grande casa que dividia com Crono, seu gato siamês que havia sido castrado há duas semanas e passava dias e mais dias deitado sobre uma grande almofada azul da qual se levantava, ocasionalmente, para comer ou frequentar a sua caixa de areia. Ele gostava de conversar com o gato, que parecia observá-lo com bastante atenção. Fazia carinho em sua cabeça, e ele respondia prontamente, vibrando como um aparelho elétrico a cada novo afago. "Desculpe por ter feito isso com você, mas é para o seu bem. E nunca esqueça: você não é nem um pouco menos homem agora. Pense que perdeu um acessório, só isso".

Aos 49 anos, George se deparou com a maior provação de sua vida. Após alguns exames de rotina, ele descobriu que tinha um câncer nos testículos. Ele viu o seu mundo desabar naquele dia. Era como se estivesse despencando, num abismo sem fim, onde a sua vida parecia se desfazer como névoa e poeira.

Quando contou essa notícia à sua família, sua mãe chorou um choro diferente. Um choro de coragem. Um choro de quem se arma para a guerra. Ao ver o seu filho soluçar, sozinho num canto, aproximou-se e disse, com convicção e veemência: "Não desespere, meu filho, porque nós venceremos essa". George agradeceu o conforto, mas em sua cabeça havia espaço apenas para pensamentos de probabilidades. Causas e efeitos. Ações e consequências.

O tratamento começou e se provou mais doloroso e sofrido do que George podia imaginar. Alternava momentos de esperança e desepero enquanto seguia para as sessões de quimioterapia a que se submetia. Inicialmente, houve um quadro de melhora, mas rapidamente o seu estado piorou a um ponto crítico. George via as horas sumindo por entre os seus dedos enquanto percebia que ficava mais no hospital do que em casa. O tempo, o seu tempo, era cada vez mais fugaz.

Numa tarde especialmente nublada, George se sentiu consumido por pensamentos melancólicos. Sabia que o seu corpo definhava e enxergava um homem de cem anos no espelho. Deixou um envelope pardo sobre a mesa, contendo um bilhete breve com mais instruções do que reflexões. Levou seu gato, Crono, para a casa de sua irmã, beijou-a e abraçou seu corpo com grande demora, como se estivesse dizendo adeus. Ouviu-a dizer palavras de conforto e esperança, enquanto caminhava para a porta da rua, mas nada daquilo fazia qualquer sentido para ele.

George saiu, observou o movimento e a rotina da cidade com olhos de turista. Tentou respirar fundo, mas uma tosse áspera o impediu de continuar. Passou a mão sobre a cabeça quase sem cabelo, olhou para as mãos de centenário e sentiu as roupas ainda mais folgadas. "Que tipo de homem eu acabei me tornando?". Não via mais sentido em nada daquilo ao seu redor e tinha a impressão de ser um observador de si mesmo, coadjuvante em seu próprio corpo.

Atravessou a avenida com algum desleixo, quase invisível para os poucos carros que iam e vinham naquelas primeiras horas do dia. Descalço, andou sem pressa pela areia que massageava seus pés. Gostou daquela sensação e sorriu brevemente enquanto seguia seu caminho em direção ao mar que estava especialmente calmo naquele momento.

A água já começava a esfriar e George sentia cada novo centímetro escalando seu corpo frágil e dormente. Pés, cintura, ombros. Sentia o barulho das ondas, o sal da água e um canto de gaivotas voando não muito longe. O movimento o levava para cima e para baixo, como um barco de papel, e George decidiu fechar os olhos, antes do seu mergulho final. No instante derradeiro de sua passagem na terra, George sentiu vontade de conversar com Deus. "Perdoa-me, Deus, porque eu não consigo mais continuar".

E o mar engoliu George, cobrindo-o rapidamente e deixando-o inconsciente. Subitamente, sentiu o sol nascendo no horizonte e percebeu duas mãos habilidosas erguendo seu corpo, levando-o graciosamente para a areia. "Ainda não, George. Ainda não". Ele não conseguia enxergar o rosto do seu salvador que, naquele momento, era não mais que um vulto gigante ao seu redor. Um bombeiro, um salva-vidas.


"Porque você está me ajudando?", perguntou com palavras tossidas. "Eu não aguento mais, não consigo continuar", completou. Ao que o estranho respondeu, com um sussurro que pareceu ventar em seus ouvidos: "você consegue, sim. E mesmo quando não conseguir, não desespere porque eu vou te carregar em meus braços". E então George apagou num sono profundo.

Quando abriu os olhos, George estava numa cama de hospital. A luz branca feriu os seus olhos, enquanto ele tateva por alguma informação. Viu sua mãe e sua irmã olhando-o radiantes. E aguardou alguma explicação. Sua última lembrança era ter caminhado em direção ao mar. Nada mais.

Sua mãe acariciou sua cabeça e com uma fina lágrima nos olhos explicou ao seu filho tudo o que havia acontecido até ele ser trazido ao hospital. George ouviu incrédulo e pareceu recordar alguns fragmentos de memórias sem conexão.

Seis meses depois, os médicos deram a George a inesperada notícia de que ele estava completamente curado. Não sabiam como, mas ele estava são como se nunca tivesse ficado doente. Algo que, mesmo a medicina em sua infinita sabedoria definia por "milagre". "Deve haver alguém olhando por você lá em cima, George, porque você nunca esteve tão bem".

A brisa salina mexia em seus cabelos de forma muito especial naquela manhã em que decidiu caminhar cedo na beira da praia. Gostava do calor do sol em sua pele e sentia como se tivesse não mais que vinte anos. Achava-se um novo homem. George havia vencido uma batalha que ele sequer tentou ganhar. E como Einstein havia percebido tantos anos antes, descobriu que não havia milagres na vida, mas que todos os aspectos da vida eram milagres.

Emoldurado, na sua sala de jantar, o recorte do jornal que noticiava a história do "homem desaparecido que havia sido encontrado na areia da praia, envolto num grande manto de veludo vermelho".

terça-feira, 6 de abril de 2010

DIA D.

Todas as pessoas, em algum momento das suas vidas, vivem um "Dia D". O dia decisivo, de transformação, da virada da maré. Um ponto de transição na jornada. A curva, a mudança das águas. O meu foi quando eu te conheci. Porque você invadiu a minha Normandia, tomou-me de assalto, no segundo em que os nossos olhares se encontraram. E foi como se o céu gris daquela manhã tivesse sido tingido com o vermelho do seu cabelo. E desde então você passou a cintilar minhas manhãs com fogo, onde ora me queimei, ora me aqueci. Quando eu contar essa história aos nossos netos, acrescentarei sempre algo novo. Você estaria com uma flor no cabelo, eu com uma pena na jaqueta. Quem se importará?

Naquela manhã fria e chuvosa, em que eu julgava inocentemente estar desembarcando para te conquistar, eis que foi você quem saltou, sem aviso, nas minhas areias calmas, com seus ventos de novidade, de modernidade; com seus passos decididos e seus carros de combate. E me mostrou a guerra e a paz. Com seu jeito delicado e belicoso, de bailarina armada, você me pacificou. E mesmo mergulhado em seu bom combate, ou mesmo confuso por ele, descobri que você, como os heróis juvenis 1944, também me resgatava das trevas.

Com você, ingressei de verdade na guerra da vida. Aprendi seu idioma, seus costumes, as leis do seu país. E me rendi sem resistência. Porque você reinventou o meu mundo, como eu o conhecia. Porque você me reinventou. Fui argila e bronze em suas mãos habilidosas que ora moldaram e acariciaram; ora bateram e cortaram.

Você me mostrou novos caminhos, novas cores. Abriu meus cadeados e minhas fechaduras, com paciência gatuna ou com martelo e maçarico. Tudo ao seu jeito. Foi paciente com minhas infantilidades imperdoáveis e implacável com meus deslizes mais casuais. Mas sou seu cativo, seu território conquistado, quem disse que me cabe questionar os seus termos? Porque se você trouxe desafio e regra, também trouxe o progresso. Correndo para acompanhar o ritmo dos seus passos, eu acabei evoluindo como quem deixa a paisagem para trás na janela do trem.

Enquanto você enchia as minhas mãos com as novidades que pegávamos no caminho, nem percebi o que acabava deixando cair. Descobri novas importâncias ao seu lado e me desapeguei de muitas coisas que tinham outro valor antes de você transformar o meu mundo. Disse adeus, para sempre, a parte do menino em mim que já deveria ter me desfeito. Só você me mostrou como. Você igualmente me ajudou a construir o homem em mim e o menino que ficou, e que sempre ficará, acabou se transformando no Peter Pan a quem você mesma recorre quando precisa fugir desesperadamente para a Terra do Nunca. Quando cansamos, juntos, da realidade e nos escondemos dos relógios, crocodilos e piratas.

Somos garotos perdidos. Casados e crianças. Bela e Fera. Dante e Beatriz. Humildes aprendizes e pedantes catedráticos na discussão das nossas ciências. Falamos uma língua que ninguém parece entender, rimos das piadas ocultas, pintamos as horas com cores que só a gente enxerga. Porque, se de um lado temos metades que não se encaixam, de outro parece que somos a mesma pessoa.

O engraçado é que hoje percebo que eu, de invadido, acabei te transformando também, invasora. Lembro com saudade dos seus olhos de menina, quando nos encontramos. E mesmo que de alguma forma eles tenham sumido na passagem dos anos, em algum lugar eles ainda estão refletidos hoje nos seus olhos de mulher. Porque viramos adultos chatos, juntos. E, de alguma forma, também não viramos. São as nossas aventuras diárias, em que vamos das manhãs de calmaria às noites de fogo cruzado. E inventamos armistício, cessar-fogo, paz duradoura. E declaramos independência. E reinventamos tudo, novamente. Todos os dias. Das cinzas, mesmo quando tudo parece perdido. E juntos, mesmo quando separados.

"Porque você nunca está mais longe de mim do que as batidas do meu coração".

E o meu dia D. é você.

sábado, 3 de abril de 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

"O VENTO DA VIDA PÔS-TE ALI"


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda

quarta-feira, 31 de março de 2010

ILUSTRANDO

"O Sonho" - Pablo Picasso

quarta-feira, 24 de março de 2010

TRISTE BORBOLETA

Acordou naquela manhã com uma ideia fixa na cabeça: “preciso me livrar desta angústia que quer me matar”. Sentia-se feia e disforme. Acreditava, dia após dia, que era uma mulher sem graça. Apalpava a pele flácida na esperança de que algum milagre pudesse ter acontecido enquanto dormia e passava a mão pelos cabelos desgrenhados em decepção. Todas as manhãs. Não gostava mais de si. Achava-se uma mulher feia. Sentia-se uma mulher feia.

Ninguém conseguia explicar o seu comportamento. De uma hora para outra, era como se tivesse enlouquecido. Tudo era muito estranho, quase surreal. Num domingo qualquer passou a se vestir daquela forma, com o rosto maquiado como uma pintura abstrata. Raspou a cabeça, as sobrancelhas e todos os pêlos restantes do corpo. Sentia-se uma mulher torta, uma mulher quebrada. Sentia-se como a cria de um quadro de Dalí com um desenho de Picasso.

Eventualmente, todos começaram a se afastar. Por medo, asco, vergonha, estranheza. Ninguém conseguia explicar o que havia acontecido a Joachim para ele agir daquela forma. Nunca havia feito nada errado. Havia sido sempre um menino correto, bem comportado. Terceiro filho de uma família de judeus ortodoxos, nunca deu problemas nem durante a adolescência. Havia se transformado num homem silencioso, é verdade, e notoriamente solitário. Tinha suas excentricidades, mas não incomodava ninguém em sua solidão de jovem velho ermitão de trinta e oito anos.

Morava nos fundos da casa de seus pais. Trabalhava na garagem, o dia inteiro, mexendo em motores velhos e eletrodomésticos condenados. Tinha mais dois irmãos, que moravam em Tel-Aviv servindo ao exército e uma irmã morta num terrível acidente de barco. Era uma família estranha, mas que não demonstrava suas estranhezas a ninguém. Eram extremamente reservados, até. E talvez por isso o menino Joachim tenha sido uma criança isolada. Mas isso não era justificativa. Não para o que estava acontecendo com ele.

E assim continuou, por meses. Perambulava pelas ruas como um louco. Escondendo-se nas sombras das esquinas, com medo de si mesmo, parecendo estar em busca de um destino sequer conhecido por ele. Foi quando se deparou com um cartaz de um salão de beleza maltrapilho, no centro de cidade: “Você é uma mulher linda, não importa o que eles digam”. Olhou fixamente para a placa desbotada, quase em transe religioso. E teve uma epifania.

Correu para dentro e se trancou no banheiro, assustando uma meia dúzia de mulheres tristes que estavam ali, cuidando umas das outras. Assustadas, ouviram o som de um touro numa loja de cristais. Era como se alguém tivesse aberto os portões do inferno, dentro do pequeno banheiro. Ouviam o rapaz urrar com ira, êxtase, dor, cólera. E o escutavam se debater e quebrar o que tivesse ao seu alcance. Sentiram medo e chamaram a polícia.

Joachim se observou perplexo, por horas nos restos de espelho caídos no chão do banheiro. Narciso às avessas, tinha uma confusa atração pelo seu reflexo, que, ao mesmo tempo, parecia odiar visceralmente. Queria se cortar inteiro com os cacos espalhados aos seus pés. Sentia ódio de tudo e vontade de gritar até os pulmões estourarem. Apanhou um longo pedaço de espelho, em formato de foice, acocorou-se no chão e como um samurai de Kurosawa fez de si uma triste madame borboleta, em desesperada metamorfose, naquele obscuro canto de cidade. 

Quando a polícia chegou, meia hora depois, já era possível ver um rastro de sangue correndo por debaixo da porta. Sentiram cheiro de tragédia e chamaram uma ambulância para salvar a sua vida.

* * *

Ela não podia acreditar no que estava acontecendo. Semi-acordada, sozinha naquela cama de hospital, tocou o rosto inteiramente coberto de ataduras. Pulsos, pescoço e ventre enrolados em panos ensopados. Teve vontade de chorar. E chorou silenciosamente, soluçando sob a penumbra de seu quarto, enquanto se  agarrava na fria barra de metal de sua cama. Segurava-se na cama com força para não despencar no abismo que parecia querer engoli-la.

E no limiar de seu retorno à sanidade que ainda era possível, chegou a uma revelação: era, definitivamente, a mais feia de todas as mulheres.

E não tinha mais dúvida alguma. Havia se transformado num homem.

sexta-feira, 19 de março de 2010

NO CALOR DO ALASKA

Após longo confinamento, uma mamãe ursa é vista pela primeira vez com o seu filhote, na costa do Alaska. Linda imagem, de puro calor nos polos, e cada vez mais rara. Em consequência do aquecimento global, os ursos polares correm risco de extinção. Fotografia de Steven Kazlowski.

quinta-feira, 18 de março de 2010

FIDÉLIO E O RÁDIO

Fidélio era um homem comum, de hábitos simples e poucas ambições. Havia sido assim por toda a sua longa vida, mas nem por isso se considerava um homem insatisfeito. Pelo contrário, era altivo e agradecido. Tinha 82 anos, viúvo há oito, pai de três filhos e avô de dois netos. Todos homens. Vivia só, num pequeno apartamento onde era assistido por um jovem enfermeiro, Javier; um cubano muito atencioso, contratado por seus filhos depois que ele quebrou uma perna tentando trocar uma lâmpada. "O senhor ainda vai acabar me matando do coração!", dizia Javier, sempre que corria para evitar que aquele homem tão frágil e sem referência da própria condição se machucasse em alguma aventura doméstica.

A saúde de Fidélio era boa mas, segundo o seu médico particular, ele já estaria desenvolvendo um princípio de Alzheimer. Nada muito grave, porém. Isso só era percebido quando trocava os nomes dos filhos ocasionalmente, esquecia o dia da semana ou repetia alguma história. Não mais que isso.

Seus filhos e netos o visitavam com bastante frequência. E ele sempre gostava de fazer da ocasião um evento. Mandava Javier fazer café e comprar biscoitos, dava notas de 5 para seus netos universitários e criticava o governo de 10 anos antes. Quando todos iam embora, Fidélio gostava da companhia do seu rádio e ficava por horas e horas, tarde a dentro, com ele ao pé do ouvido. Quase sempre acordava Javier, há muito cochilando no sofá, para pedir que o ajudasse a se trocar para dormir. O enfermeiro disfarçava o cochilo enquanto Fidélio lhe dava palmadas carinhosas no rosto. "Javier, você sente sono demais"

No seu aniversário de 83 anos, o sr. Fidélio ganhou dos seus netos um ipod recheado de músicas antigas. Eles viam o avô sempre com o ouvido no rádio e tentaram melhorar de alguma forma a sua vida, tão sem caprichos. Fidélio agradeceu com felicidade comovente, mesmo sem nem saber exatamente o que era a caixinha de acrílico em suas mãos. Nunca nem abriu, guardando-o com carinho na cômoda de sua cama, onde deixava um punhado de importâncias: um terço de prata, fotografias de sua mulher, um livro de Pablo Neruda e dezenas de cartas amarradas com fita vermelha.

Desde que se tornou viúvo, Fidélio encontrou uma calorosa companhia no rádio que ouvia em volume tão baixo que todos pensavam estar desligado. Ele podia ficar por horas, sentado quase imóvel, com o pequeno rádio. Atento, como se ouvisse instruções, Fidélio nem parecia dar bola para os acontecimentos ao seu redor. Apenas o rádio tinha importância. Os médicos disseram que era normal, algo como uma muleta emocional, um autismo temporário, e aconselharam os filhos a observar e respeitar o hábito do pai, sem grandes preocupações. Que mal havia em ouvir um rádio, mesmo em volume tão baixo? Era o que ele queria fazer e todos aceitavam. Mas só Fidélio sabia o quão especial era aquele rádio em suas mãos.

Um dia seu neto mais velho perguntou o que tanto ele ouvia com tamanha concentração. Ao que Fidélio retrucou, sorridente e sem cerimônia, que "ouvia a voz de Deus". Todos se olharam por alguns longos instantes e, desconcertados, julgaram tê-lo interpretado de forma equivocada. E deduziram, num melancólico parlamento de silêncios, que ele estava demente. Por mais quatro anos Fidélio continuou na companhia de seu rádio, sempre sob olhos de comoção de seus filhos e netos.

Chovia forte na manhã em que Fidélio se foi. Era como se o céu estivesse de luto. Javier foi acordá-lo para tomar café e o encontrou deitado, imóvel, em paz. Havia morrido em seu sono. Ao lado da cama, sobre a cômoda, percebeu o velho rádio que Fidélio nunca largava. Sorriu como quem sorri de uma criança inocente, segurou o aparelho por alguns instantes e se surpreendeu de como ele era leve. Sacudiu algumas vezes ao ouvido e constatou que o rádio era oco e sequer possuia pilhas. Depositou então o aparelho sobre a cama, ao lado de Fidélio, e sorriu novamente, com certa tristeza. Sentiu pena de Fidélio como nunca havia sentido de nenhuma pessoa antes. Acariciou os cabelos ralos em sua cabeça, fez uma breve oração e foi até a sala para ligar aos seus filhos. "Ele passava o dia inteiro ouvindo um rádio vazio e sem pilhas".

Fidélio parecia dormir o melhor sono de sua longa vida, com o rosto sereno e iluminado com um sorriso de quem não sente culpa. E o rádio estava lá, próximo ao seu corpo.

Eis que na lateral do aparelho uma pequenina luz azul piscou três vezes e desvaneceu, lentamente, em companhia de um chiado que parecia sussurrar até se transformar em silêncio.

De todos no mundo, aquele era o menos vazio dos rádios.

"ABRACE A VIDA"

Belíssima propaganda sobre a importância dos cintos de segurança. Lindo demais.

terça-feira, 16 de março de 2010

O PESO DA CHUVA

Um assassino está à solta. Suas vítimas são todas crianças, encontradas afogadas na água da chuva, após dias desaparecidas. A marca conhecida dos seus crimes é um pequeno origami deixado sobre os corpos. Em torno deste cenário, orbitam quatro pessoas comuns. Um pai desesperado. Um policial doente. Um investigador com dependência química. Uma mulher insone. Pessoas sem nenhuma ligação aparente umas com as outras e que se veem subitamente envolvidas com a série de crimes promovida pelo "Assassino do Origami". O que poderia ser um roteiro de um interessante thriller policial é, na verdade, um jogo exclusivo do Playstation 3: Heavy Rain, desenvolvido pela Quantic Dreams, já é considerado mais um passo na evolução do entretenimento digital. Heavy Rain coloca o jogador na pele de quatro personagens, reponsável por todos os seus atos, desde escovar os dentes e tomar banho a interagir com outras pessoas ou mesmo morrer. Tudo em caráter definitivo. Não há "continue". O jogo é construído sobre decisões interativas que conduzem a narrativa até o seu desfecho. Cada palava conta. Cada gesto, cada ação. Um jogo que promete levar os jogadores ao limite, testando suas emoções e raciocínio, sob a premissa de "até onde você iria para salvar quem você ama"? Heavy Rain é uma aposta no público adulto, maduro, sendo definido, inclusive, como "filme interativo" e não videogame. Alguns críticos associaram o jogo ao aclamado filme "Seven", tamanha a tensão promovida pelo jogo que, naturalmente, é recomendado para maiores de 18 anos. Em Heavy Rain não há "vidas", "pontos" ou "níveis". Há mistérios, profundos e envolventes, e a curiosidade humana em desvendá-los. E, naturalmente, o preço a se pagar pela curiosidade.

quinta-feira, 11 de março de 2010

SOBRE O RETORNO DE UM AMOR IMORTAL

Eis que surge Andrew Lloyd Webber com a notícia de seu novo musical: "Love Never Dies", a ser inaugurado em Londres. A trama, supreendentemente, será uma continuação direta da idolatrada história do "Fantasma da Ópera". Os eventos se passarão uma década após os eventos de Paris, em Nova York (Coney Island), onde Christine aceita um convite para um trabalho mal sabendo que o seu fantasma também atravessou o oceano para continuar admirando-a nos bastidores. No vídeo, a canção tema, "´Till I hear you sing", é cantada por Ramin Karimloo, que interpretará o Fantasma. Eu que tive a grata oportunidade de assistir ao Fantasma na Broadway por duas vezes só posso acreditar que este novo show, sem a menor sombra de dúvidas - e apesar de toda a controvérsia - será mágico também. É o toque de Midas de Webber. Eis que surge o Fantasma da Ópera, do silêncio e das sombras, quando todos já haviam se conformado com o "fim" de sua história. A história de seu amor desesperado por Christine. Um "amor que nunca morre".

quarta-feira, 10 de março de 2010

TREZE


Após longos anos de espera, atrasos e rumores, 9 de março de 2010 entra para a história como o dia de lançamento (ocidental) do aguardadíssimo Final Fantasy XIII. Pura arte digital, o supra sumo da qualidade narrativa e de entretenimento da mais famosa franquia de JRPGs. Meu lado geek, sempre presente, só tem apenas uma palavra a dizer: celebremos.

terça-feira, 9 de março de 2010

ILUSTRANDO

"São Jorge Guerreiro" - Ed Ribeiro

sexta-feira, 5 de março de 2010

VOZES


Celeste já não compreendia tão bem como antes o que as vozes queriam dizer. Com o tempo, as mensagens foram ficando cada vez mais confusas, como código cifrado, como charadas sem sentido. Só uma coisa permanecia intacta, o fato de que se sentia compelida a obedecê-las. “As vozes são a melhor coisa que nos aconteceu, Beatriz, desde que ele foi embora”.

* * *

O marido a havia abandonado com sua filha ainda pequena. Saiu de casa como um foragido, numa madrugada, sem deixar pistas. Nem bilhete, nem dinheiro, nada. Era como se elas simplesmente não existissem. Em um mês as duas tiveram que ir morar numa pensão, enquanto ela tentava ganhar a vida como garçonete. Quando sentiram fome pela primeira vez as vozes começaram a se manifestar. E a tranqüilizaram, quando ela mais precisou de esperança. “As vozes estão falando comigo, Beatriz. E elas estão dizendo que não devemos ter medo”.

A única coisa que seu ex-marido havia deixado, ou esquecido, era um revólver calibre 38, que ficava escondido numa caixa de cereal, dentro do armário da cozinha. Celeste sempre verificava se a arma ainda estava lá. “As vozes mandam eu checar todos os dias, Beatriz, e ela está sempre lá. Foi a única coisa que seu pai nos deixou”.

Durante o dia, a dona da pensão olhava Beatriz, pelo menos por algumas horas, enquanto Celeste trabalhava. Tarde da noite, voltava exausta para casa e encontrava a pequena Beatriz adormecida. Ás vezes ela chorava, de medo, de fome, de solidão. O desespero sobre o desamparo a fazia ter vontade de gritar. Levava a filha para sua cama onde tentava niná-la, cantarolando algumas poucas músicas que conhecia. Beatriz dormia como um anjo ao seu lado enquanto ela acendia mais um cigarro com suas mãos trêmulas de garçonete desastrada. “As vozes não me falam mais claramente, Beatriz. Gostaria que elas me ajudassem, porque já não sei mais o que fazer”.

* * *

Amanheceu um domingo completamente desorientada. Café escorrendo na pia, leite espalhado na mesa, fatias queimadas de pão. Arrastava-se pelo minúsculo apartamento, fechando as cortinas, letárgica. Ligou a velha televisão e colocou Beatriz sentada, desenhando no chão. Sentou-se à mesa e acendeu mais um cigarro. Os cabelos estavam embaraçados e seus olhos eram negros e profundos como se não dormisse há um século. Vestia uma camisola encardida e suas mãos tremiam enquanto tentava trabalhar. Havia recebido uma revelação. “As vozes me mandaram entalhar duas letras nelas, Beatriz. Para que elas se tornem mágicas. Não precisamos mais temer, assim as vozes disseram”.

Beatriz brincava no chão com um velho urso de pelúcia e observava a televisão ligada num volume ensurdecedor. Sua mãe estava sentada à mesa, fazendo movimentos repetitivos com as mãos, como se lixasse alguma coisa. E estava serena, pela primeira vez na vida.

“Hoje voltei a entendê-las, Beatriz. Ficou claro como a luz do sol. As vozes me disseram para sentar aqui e separar essas duas. Vê como elas são brilhantes, Beatriz? Nesta vou raspar um B de borboleta. Naquela um C de coração”. 

PARA VER E OUVIR: BLOCKHEAD ("INSOMNIAC OLYMPICS")

"PRA QUE PENSAR? TAMBÉM SOU DA PAISAGEM"

I

Mario Quintana - A Rua dos Cataventos



Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!

quinta-feira, 4 de março de 2010

O MENINO QUE SONHAVA EM SER REI


Contam lendas muito antigas, que soberanos do Império Persa mantinham contatos com entidades demoníacas, chamadas Djinns (de onde se origina a palavra "gênio", hoje tão comumente utilizada em histórias infantis).

Segundo as histórias, passadas oralmente de pai para filho ao longo da poeira dos séculos, esses Djinns, ou "Gênios" tinham o poder de garantir aos seus amos a realização de todo o tipo de sonho e desejo.

"Ouro!", e então se erguiam pilhas sem fim de tesouro. "Armas!", e fileiras de homens armados, cavalos e carruagens se encontravam prontos para guerra. "Mulheres!", e as mais belas dançarinas surgiam como mágica, por entre colunas de fumaça azul.

Estas lendas contam, ainda, que uma pedra mágica havia sido criada por um Djinn muito poderoso e, de todos, talvez a entidade mais maléfica: uma pedra pequenina que garantiria ao seu detentor poder e glória sem limites; um presente máximo ao soberano da Pérsia, que desejava viver o céu na terra, com posses, exércitos e riquezas.

A pedra, porém, era amaldiçoada como todos os desejos realizados por um Djinn. Tinha um preço a ser pago: traria conquista e destruição a quem quer que colocasse as mãos nela, além do rei. Mas não demorou até que todos esquecessem disso.

E os séculos foram passando. A história virou lenda e a lenda virou mito. E a pedra, pequenina e insignificante como um pedaço de carvão, acabou chegado à Europa por meio de bandidos que se infiltraram nas missões das Cruzadas ao oriente.

No seu caminho, porém, teria ajudado na tomada de Jerusalém e afundado navios carregados de tesouro roubado. Homens teriam sido assassinados após fabulosas vitórias no jogo. Reis depostos após anos de extravagância. Ascensão e queda de impérios, revoluções e pragas.

E de mão em mão, trazendo fortuna e desgraça aos seus inúmeros donos, a pedra acabou sendo jogada fora pelo seu último detentor, cansado de tragédias. “Maldita seja!”. Perdida, acabou se misturando com pedras normais, no chão, sem valor. E, assim, ficou esquecida, como todas as pedras são.

Mas conta uma outra lenda, esta bem mais recente, que um menino muito pobre e infeliz, numa obscura cidadezinha de fronteira, em mais uma de suas inúmeras andanças sem destino pelo bosque, teria encontrado esta pedrinha. Ele, ainda de calças curtas, pés sujos de lama, mal vestido, melancólico e solitário, encontrava companhia da natureza nas suas caminhadas, enquanto se perdia em seus próprios devaneios e ilusões sobre falanges alexandrinas e canhões da Áustria-Hungria.

Sem posse outra qualquer, além de alguns almanaques de guerra e soldados de chumbo, resolveu ficar com a pedrinha e guardá-la no bolso como um amuleto para trazer sorte à sua vida e sua família.

Mas aquela não era uma pedra qualquer e tampouco era aquele um menino qualquer.

Acabara de fazer doze anos. "Será meu presente de aniversário", pensou o insignificante Adolf, guardando a pedrinha no bolso enquanto um vento forte e sombrio corria por entre as árvores, ao seu redor.

quarta-feira, 3 de março de 2010

PARA VER E OUVIR: NAT KING COLE ("FOR SENTIMENTAL REASONS - I LOVE YOU")


Nat... o que dizer...

ILUSTRANDO

"Auto-retrato com cabelo cortado" - Frida Kahlo

terça-feira, 2 de março de 2010

"EDUARDO E MONICA"


Animação absolutamente adorável sobre esta música inesquecível da Legião que, sem dúvidas, é parte da trilha sonora deste blog. Uma música cheia de devaneios urbanos, reflexões de média superficialidade e efemeridades importantes. Lembranças à minha querida e maltratada Brasília, que tão bem me acolhe.

PASSAPORTE PARA A IDADE MÉDIA

"Azincourt", novo romance de Bernard Cornwell, é simplesmente um livro impossível de largar. Em resumo, oferece um passaporte para a Inglaterra medieval, durante os turbulentos tempos da Guerra dos 100 Anos. O livro é entitulado a partir da famosa Batalha de Agincourt, travada em 25 de outubro de 1415, Dia de São Crispim, quando algumas dezenas de bravos soldados ingleses, exaustos e doentes, conseguiram derrotar o vasto exército francês. O grande trunfo dos ingleses eram os seus arqueiros de arcos longos, a arma mais temida da Idade Média. A passagem histórica foi imortalizada por Shakespeare, em sua peça "Henrique V" (minha predileta) e que foi levada ao cinema por Kenneth Branagh e Laurence Olivier."Azincourt" é protagonizado pelo jovem e intrépido arqueiro Nicholas Hook que, pelas idas e vindas do destino, acaba ingressando nas fileiras do exército do jovem Henrique V a caminho de Harfleur, cidade costeira a ser tomada antes da grande marcha pela conquista da França. O texto é leve, rápido, fluido, orgânico, como se nós mesmos estivéssemos ali, testemunhando toda a beleza, a bravura e a brutalidade daqueles anos escuros da história europeia. Quando me debruço sobre "Azincourt", é como se castelos se erguessem ao meu redor, cercados por bosques em névoa. Percebo pequenos riachos e conversas em tavernas. Sinto como se fosse transportado para os campos de batalha, com flechas voando em todas as direções, cavalos a galope, cavaleiros em combate e fogo, gritos, pólvora e sangue por todos os cantos. E consigo ouvir o jovem Henrique gritar "por Deus, Henrique e São Jorge!", antes de investir novamente na brecha em Harfleur. É uma jornada imersiva ao medievalismo que nenhum aficionado ao tema pode se privar de experimentar. A escrita de Cornwell é de um poder quase místico e este livro é obrigatório para qualquer pessoa que se interesse por romances de fundo histórico. Lamento cada página virada, enquanto vejo o livro definhar sob meus dedos ávidos em saber o que será do jovem arqueiro que, sozinho, parece ajudar a desenhar a história de um país inteiro. Imperdível.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

ILHAS

Desde muito cedo eu soube que havia algo de ilhéu em mim. Lembro que deveria ter uns 8 anos quando uma imagem capturou meu olhar por muitas horas: um anjo, deitado sobre uma nuvem pequena, como se ela fosse um país. Não demorou muito para eu me apaixonar pelo "Pequeno Príncipe", tampouco. O fato é que eu sempre flertei com a solidão - talvez mais até do que eu deveria - como se assim eu conseguisse emular a ideia de habitar um país microscópico, um atol, um planeta, uma ilha. E apreciei os frutos disso em igual proporção que sofri com as suas consequências. É algo meio inevitável, acho. Um quê de antisociabilidade disfarçada sob sorrisos que dão a entender que o que mais desejo no mundo é companhia. Nietzsche disse, certa vez, "odeio quem me rouba a solidão sem me oferecer verdadeira companhia". E acho que ele sabia o que estava falando. Porque imaginamos algum tipo de verdade e conforto na ideia de estarmos cercados por pessoas, mas quem nunca se sentiu imensamente só na multidão? Aprecio o silêncio e a companhia, mas talvez seja rigoroso na combinação perfeita de ambos; deve ser isso. Não sei. É tudo muito subjetivo demais. Sei também que sofro, principalmente pelo fato de que não é algo sobre o qual tenho qualquer sombra de controle. É mais forte que eu. Da mesma forma que tenho rompantes de "abstinência de companhia" igualmente sinto o desejo de subir para a caverna e me entreter com as sombras que a luz de fora projeta nas paredes. Será melancolia? Será "personalidade"? Será que é algo assim, fácil de demonstrar, como uma fórmula? Talvez seja o fato de eu não ter tido irmãos ou ter convivido com muitos adultos desde cedo. E talvez não seja nada disso, porque às vezes tudo o que quero é a carona de pássaros imigrantes que me levem para perto de alguém. Acho, em verdade, que é um ofício. E que algumas pessoas são mais qualificadas do que outras nisso. A verdade é que quando mais me convenço de que sou ilha, eis que me afasto abruptamente deste teimoso comportamento insluar, como quem acena desesperadamente por resgate. E lembro de algo que li, há muitos anos; que, quanto mais eu penso que sou ilha, percebo que sou arquipélago.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

FALKLANDS

De repente, como num devaneio que me tomou abruptamente, senti uma necessidade iminente de conhecer as Falklands Islands. Assim, sem explicação.

"PRAIAS"

Sou um entusiasta confesso de filmes femininos, "filmes de mulherzinha". Não tenho nenhum pudor em colocá-los em minhas listas prediletas e de me comover com as suas histórias. Um destes filmes inesquecíveis é o clássico dos anos 80, "Beaches" ("Amigas para sempre"). Estrelado por Bette Middler e Barbara Hershey, "Amigas para sempre" narra a história de duas mulheres, Cecee Bloom (Middler) e Hillary Whitney (Hershey), que se conhecem ainda crianças e atravessam uma vida inteira juntas, seja  se correspondendo por cartas ou voando em socorro uma da outra. Eventualmente, as duas se reencontram e seguem juntas uma série de alegrias, decepções, conquistas e brigas. Como acontece na vida real, afastam-se, sem nunca se esquecerem. E acabam se achando, novamente, por causa de um evento que faz Cecee mover o mundo para reencontrar sua amiga. É um filme "bobo", claro, mas sincero e comovente na adaptação do romance de Iris Rainer. Uma história comovente sobre como tanta coisa se perde, na passagem da vida, e como tantas outras permanecem. É onde mora a beleza e o encanto deste filme. A relação sincera de duas amigas, que se conhecem ao acaso numa praia de Atlantic City, mal sabendo que seriam as pessoas mais importantes de suas vidas. E no ocaso, em outra praia não menos importante, são obrigadas a dizerem adeus. É um filme para se assistir num domingo qualquer, como eu fiz, apreciando os sorrisos e os apertos na garganta sem pressa.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

COMO TODO MUNDO, RITA HAYWORTH SÓ QUERIA SER AMADA

TRANSLUCIDEZ

Ela levantou cedo, como fazia há setenta e nove anos. Abriu vagarosamente a janela e observou a rua por alguns instantes. O dia ainda tinha cor de baunilha e poucas pessoas e carros já podiam ser vistos. Respirou fundo, enchendo os pulmões daquela seiva transparente e sentiu-se viva, cheia de esperança. Tinha certeza de que aquele dia seria especial. Não só porque era o seu aniversário, mas porque estava confiante de que a sua vida seria melhor a cada novo dia. Não tinha mais medos. Não se sentia impotente. De pé, no assoalho daquele quarto em que havia vivido por quase meio século, tomou-se de pensamentos inebriantes. 

“Sou jovem. Tenho tudo ainda pela frente. Sou imortal”.

Lentamente dirigiu-se para o toalete. A camisola, amarelada, era arrastada pelo chão, evidenciando alguns velhos furos de traças e rasgando novos por entre as lascas de madeira no chão desgastado. Descalça de um pé, ela quase desfilava enquanto caminhava. 

“Hoje quero estar linda como uma estrela de cinema. Como Ingrid Bergman”.

Encostou a porta e se despiu vagarosamente. Os azulejos desbotados estavam cheios de rachaduras e limo. Não havia como disfarçar que aquela era uma casa muito antiga. Sentiu frio e procurou pelo outro pé dos seus chinelos, sem sucesso. Sentou-se e começou a pentear os cabelos, quase enamorada de si mesma, deslizando a escova de madeira pelos cabelos brancos e espessos. 

“100 escovadas à noite. E 100 pela manhã. É a minha fórmula secreta”.  

Foi até a pia e molhou os olhos, as bochechas, enxugando-se com uma pequenina toalha. Polia-se com o cuidado de quem limpa porcelana fina. Estendeu a mão e agarrou o frasco de perfume. Uma mistura de cheiros adocicados e cítricos, como laranja, limão e açúcar. Borrifou o pescoço e as mãos. Espalhou cuidadosamente por entre dedos, ombros e atrás das orelhas. 

“Hoje, no bonde, todos os homens só terão olhos para mim”.

Ela queria deixar o melhor para o final, quando chegava o momento de se olhar ao espelho. E tudo precisava estar perfeito. Toda a indústria, toda a ourivesaria, para então poder se encantar de si mesma por horas naquele banheiro cercado de espelhos cristalinos, que a embebedavam de felicidade. De costas e olhos fechados, armava a sua própria surpresa, como quem vai revelar algo sob uma cortina. Vagarosamente, virou seu corpo de frente para o espelho, abrindo os seus olhos sem pressa.

* * *

Sua filha não conseguia compreender aquela cena. Assustada, pensou em teatro grego, em dança contemporânea, em cinema mudo alemão. Olhou para a sua mãe, tão frágil e idosa, ensanguentada, suas mãos cobertas de cortes e estirada no chão como uma rainha deposta. Não sabia o que dizer. Instintivamente, projetou-se ao encontro do seu corpo, já frio e dormente. Tomou-a nos braços e imaginou que ela poderia ter sofrido um derrame ou um infarto. Os seus olhos eram duas pérolas transparentes e sem vida e seu rosto era uma imagem fantasmagórica. Nenhum músculo parecia responder. E ficou sentada no chão, com sua mãe no colo, cercada de estilhaços e fragmentos de espelhos por todos os cantos do banheiro. Um louco poderia jurar que ali havia chovido vidro. Sentiu sua mãe apertar seu pulso num último sopro de vida, tentando se aproximar de seu rosto, como se fosse lhe sussurrar algo.

“Jogue todos os espelhos fora, Angela. Suas mentiras são perigosas demais”.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

DE VOLTA AO CEMITÉRIO DOS LIVROS ESQUECIDOS

David Martín é um escritor que luta por reconhecimento. Doente e desenganado, ele é abordado por um homem misterioso, com um broche de anjo na lapela, que encomenda ao escritor uma obra épica. Em troca, oferece um mundo de possibilidades financeiras, redenção e cura. A partir daí, desenrola-se uma trama misteriosa pelas ruas da Barcelona do começo do século XX, onde as sombras de um passado não muito distante parecem se esconder em todos os cantos e respirar, como se estivessem vivas. Para quem gostou de "A Sombra do Vento", este novo romance de Carlos Ruiz Zafón, "O jogo do anjo", é obrigatório. É uma pena, porém, que o livro não consiga encantar tanto quanto o primeiro, mas ainda assim transpira o estilo apaixonante de Zafón e permite retornar a lugares e pessoas inesquecíveis, como a livraria de Sempere e Filho e o Cemitério dos Livros Esquecidos. É uma viagem graciosa ao futuro de uma história que não poderia ter acabado em "A Sombra do Vento". Ou seria uma visão do começo de tudo? "O jogo do anjo" oferece um passeio adorável, repleto de mistérios, segredos e perigos, com um desejo incansável de surpreender e desleixo - intencional - em não responder questionamentos semeados ao longo de suas páginas. É ainda mais onírico e etéreo, recheado de momentos em que realidade, sonho e pesadelo se entrecruzam. Imperdível.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

ILUSTRANDO

"Autorretrato" - Lucian Freud

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

OS AMANTES

Os dois se encontravam pelo menos três vezes por semana. Sempre no mesmo horário, no mesmo lugar. Embarcavam, com a diferença de uma estação, no mesmo trem que os levava ao centro. Ele subia primeiro; ela minutos depois. Olhavam-se, brevemente, enquanto ela se aproximava da barra onde ele se apoiava todas as manhãs. Sem trocar uma única palavra, ela então repetia o que fazia todos os dias: ajeitava a bolsa firmemente sob o braço e segurava o mesmo apoio, onde as mãos de ambos flertavam casualmente com o toque. Algumas vezes, dedos mais atrevidos cumprimentavam uns aos outros enquanto ele e ela olhavam em direções opostas do vagão. Às vezes, ele lia o jornal enquanto ela mexia no celular. E suas mãos, como seres independentes, continuavam a aproximação contida.

Com o passar do tempo, acabaram encontrando naquele ritual o momento mais aguardado do dia. Os dois eram casados, tinham filhos e viviam vidas confortáveis nas quais "tudo está encaminhado". E eram felizes em seus casamentos. Mas tinham juntos, ali, na cumplicidade daquele vagão anônimo, um país sem governo onde podiam se refugiar. E reinar. Ela gostava de ver a repetição de suas gravatas, adivinhando um padrão para as suas escolhas. Azul clara, azul escura, bordeaux. Ele imaginava, a cada dia, se aquele poderia ser o aniversário dela. Sempre anônimos, sempre olhando em direções opostas, sempre mudos. Apenas mãos se tocando no balanço do trem sobre os trilhos.

E assim seguiam, por 23 minutos, até ela saltar primeiro e ele seguir túnel a dentro. Sem palavras nem despedidas, nunca trocavam olhares e raramente permitiam roçar um no outro. Ficavam apenas ali, segurando a mesma barra de apoio, para o entretenimento de dedos ora tímidos, ora desinibidos. Havia algo de erótico e proibido naqueles encontros propositais de mãos e dedos, escondidos sob o barulho e o anonimato. Os dois sentiam o coração palpitar a cada novo sacolejo do trem, quando mãos esbarravam um pouco mais, e palmas se sobrepunham numa deliciosa dança de acasos que os faziam sentir borboletas na barriga. Eram amantes.

Dias, semanas, meses. E os dois repetiam aquela dança invisível e sem importância para o resto do vagão apenas preocupado em chegar a algum lugar. Eles não. Gostavam do trajeto. Ele acompanhava o cumprimento do cabelo dela, curto no verão, longo no inverno, e a alternância do vermelho ao castanho escuro. Ela notava que ele tinha mais cabelos brancos desde a primeira vez que o viu e que costumava ganhar mais peso nos últimos meses do ano.

Armações de óculos, pastas e sapatos novos. Era como mantinham registro um do outro. Completamente anônimos e estranhos, contentavam-se com aqueles encontros efêmeros em que enroscavam os dedos, ora como algemas folgadas, ora como instrumentos de carinho. Nunca se olhavam, nunca se falavam. Até que ela desembarcava e ele seguia seu destino. Era sempre assim. Dia após dia.

Quando um ano se passou, ele decidiu que faria algo inesperado. Embarcou. Segurou o apoio e aguardou. Como já previa, ela entrou, olhou-o por um canto de olho e segurou o apoio a milímetros de sua mão. Seguiram juntos, sentindo a mistura do calor da mão dele ao frio da mão dela, recém saída da rua. O trem parou, portas se abriram e ela se preparou para sair.

Foi então que ele roubou sua mão e seu olhar inequivocadamente. Não a deixou sair. E ali ficaram, de mãos entrelaçadas, observando-se frente a frente, pela primeira vez, sob o som de seus corações saltitantes. Ele descobriu mais cantos e contornos do corpo dela. Ela desenhou novos traços em seu rosto, novas sombras sob seus olhos. Ficaram ali, pela eternidade de alguns segundos, adivinhando-se.

Mas, simplesmente, não sabiam o que dizer um ao outro.

Ela desembarcou e se perdeu sob a luz que cobria a escadaria que dava acesso à rua. Ele se sentou, enquanto dobrava o jornal calmamente guardando-o em sua pasta. Notou que ela havia deixado cair um lenço lilás, que ele delicadamente retirou do chão e guardou em seu bolso. Não sei antes perceber que havia perfume em sua mão.

Os monitores de TV coloriam o desembarque com manchetes do dia. Aparentemente, choveria ao final da tarde, o governo não sabia o que fazer a respeito do surto de gripe e nunca as taxas de financiamento de automóveis estiveram tão atraentes.

Nunca mais se encontrariam.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

PARA VER E OUVIR: "CLAIR DE LUNE"


David Oistrakh toca lindamente ao violino "Clair de lune", de Debussy, com Frida Bauer ao piano. Paris, 1962. É para se sonhar acordado.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ILUSTRANDO

"Mao" - Andy Warhol

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O HOMEM QUE DESAPRENDEU A DORMIR

O que havia começado como mera insônia, destas que é até possível fazer piada a respeito, acabou se tornando um pesadelo real. Havia um mês, ele vinha dormindo cada vez pior, cada vez menos. Primeiro, um punhado de noites inquietas. Em seguida, seis horas de sono de má qualidade. Dias depois, cinco, quatro horas. Até, então, não pregar mais os olhos. Não conseguia. Ele havia desaprendido a dormir.

Ele tentava disfarçar o desespero de não conseguir dormir, enganando-se com algumas artimanhas pobres. Fingia bocejos casuais, vendava os olhos com uma máscara de feltro e dizia ocasionalmente, a si mesmo, do sono que sentia. Como se isso servisse para alguma coisa. E como se alguém o estivesse ouvindo.

Mas ele sabia que já não conseguia dormir e a visão do ponteiro do relógio encostando na meia-noite começava a lhe causar palpitação. Meia noite. Uma. Duas. Três. E lá estava ele, sentado no parapeito da janela, observando a cidade acordar para mais um dia. Seu café, frio desde as quatro e meia, era um adorno em sua mão. Os cigarros já faziam pilha no cinzeiro. Sempre que olhava os restos, entre bitucas e cigarros praticamente intactos, não conseguia evitar lembrar de uma fogueira dormente.

Artista plástico, trabalhava em casa, o que naquele momento era uma bênção. Porque podia se permitir não se barbear, pentear o cabelo ou mesmo trocar de roupa. Vivia só, num estúdio razoavelmente espaçoso e consumido num vendaval de roupas, livros, material de trabalho e louça sem lavar que, duas vezes por semana, era organizado por sua faxineira. Lourdes, uma guatemalteca de personalidade forte e voz doce, e a sua principal referência de convivência social. De alguma forma, ela lembrava-o de sua mãe.

"Um dia o senhor vai acabar sumindo, se afogando, nesta bagunça!", Lourdes gritava do quarto, enquanto desbravava a selva deixada por ele. De sua poltrona, na sala, ele se resumia em consentir com a cabeça enquanto pensava, "até que não seria uma má ideia". Duas vezes por semana. Era um ritual. Além de limpar o apartamento, Lourdes deixava uma tigela cheia de buñuelos com queijo, uma das poucas comidas que ele ainda parecia sentir desejo.

Estava cansado de si mesmo, como se desejasse se despir de si e vestir algo novo. E se angustiava terrivelmente com a ideia de que sua vida poderia estar escorrendo por entre os seus dedos. Sentia como se vivesse num grande mapa de projetos não concluídos, como se todos no mundo estivessem numa corrida e ele fosse o último colocado, sem chance de reposicionamento. Ainda era jovem, mesmo que quase sempre se sentisse como um destes aposentados adoráveis que passam o dia contemplando a corrida dos outros. Ele só não se sentia adorável.

Não é que estivesse deprimido. Não se sentia assim. Verdadeiramente. Era como se houvesse um vazio. Um grande vazio que ele parecia contemplar, todo o dia. E que, de alguma forma, também o contemplava de volta. O fato é que ele não dormia mais. Esse era o problema. Decidiu se consultar com um médico que, após alguns exames, elogiou sua condição física apenas observando uma leve anemia. Deveria tomar mais sol, caminhar se possível, e ingerir mais frutas e verduras. Não pretendia fazer nada disso, obviamente, e decidiu voltar para o apartamento.

No caminho, parou por alguns instantes diante da vitrine de uma loja de discos de vinil. A preferida da sua ex-namorada. Quase todos os finais de semana eles fuçavam as prateleiras e gavetas em busca de alguma raridade e geralmente sem sucesso. Quando ela foi embora, deixou todos os discos e uma frase que ele nunca conseguiu apagar da cabeça. Era uma lembrança que latejava.

Suspirou, resignou-se, e seguiu em frente. Quando estava próximo de virar a esquina em direção ao seu apartamento, porém, sentiu um impulso repentino de mudança de trajetória. Virou-se, como quem se lembra de algo, como quem ouve alguém gritar o seu nome, e desceu correndo as escadarias do metrô.

Lá embaixo, os sons do mundo eram gradualmente substituídos por outros, mais abafados. Sons acinzentados de quase conversas, quase pensamentos, e música vindo de algum canto. Azulejos grafitados, pôsteres rasgados e latas de lixo urgindo por assistência davam tons de caos ao não-lugar. Sentou-se sozinho, num banco de frente para plataforma. Os trens rugiam sobre os trilhos enquanto ele observava as pessoas que subiam e desciam dos vagões. Quando se dissiparam, do outro lado da plataforma seus olhos encontraram um senhor de idade bem avançada. Sentado num banco praticamente em frente ao seu, o velho parecia fazer exatamente a mesma coisa que ele. Observar as idas e vindas daquela estação.

Ele então se levantou, olhou rapidamente se algum trem se aproximava, e atravessou os trilhos com desleixo corajoso. Subiu, aproximou-se e notou que o senhor comia buñuelos com queijo enquanto contemplava, com tristes olhos de vidro, os passantes anônimos e se sentou ao lado do velho. Os dois se olharam por alguns segundos como quem se olha no espelho.

Eis que o senhor, iluminado como se tivesse resolvido uma charada, olhou para ele com o sorriso mais doce do mundo. E tocou sua mão, como quem toca uma miragem. Era como se estivessem sonhando. Um sonho de nostalgia, um sonho de premonição.

Foi quando ele entendeu tudo.

"O senhor se incomodaria se eu encostasse minha cabeça em seu ombro por alguns instantes?"

E, como uma criança, adormeceu profundamente em meio ao caos da estação.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A ELOQUÊNCIA DAS PEDRAS

"A Partida" (Okuribito) é um lindo filme japonês. E como tudo que é japonês, silencioso, gracioso e belo beirando o etéreo. O filme narra a história de Daigo Kobayashi, um jovem violoncelista que vive com sua mulher em Tóquio. Ele não vê o seu pai desde os seis anos de idade, quando este abandonou sua mãe. Essa mágoa faz com que ele sequer consiga lembrar do rosto de seu pai. A única coisa que restou foi uma memória em que os dois caminhavam na praia e o seu pai o presenteou com uma pedra. Quando, repentinamente, sua orquestra é desfeita, Daigo se vê obrigado a retornar à sua cidade natal, onde viverá na casa deixada por sua mãe. Num acaso do destino e precisando de trabalho, ele arruma um emprego numa agência funerária, onde acaba se tornando um profissional habilidoso. A partir deste momento se desenrola a delicada costura de imagens e sensações provocadas pela história narrada na tela.

Essencialmente, "A Partida" mostra a relação da cultura japonesa com a morte e a passagem. Vemos, ao longo de praticamente todo o filme, a explicação de belíssimos rituais dedicados ao último adeus, onde o silêncio, a calma e a dignidade ensinam as últimas palavras a serem ditas aqueles que se vão. O filme, apesar de seu potencial dramático, carrega no bolso uma alma ensolarada que ajuda a rir, mesmo quando os nós se fazem nas gargantas. Trata-se de uma pequena caixa de surpresas da qual apenas coisas belas e puras podem ser obtidas. Um filme que merece ser visto senão como enriquecimento cultural, como canja de galinha para a alma. Como uma melodia, "A Partida" toca o coração com notas altas e baixas, alegres e tristes e chega à alma com precisão. É um filme sobre acasos. E o acaso, que transforma Daigo Kobayashi num "agente de despedidas", será responsável, justamente, em ensiná-lo que, muitas vezes, o fim é também o começo de tudo.