quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

OS AMANTES

Os dois se encontravam pelo menos três vezes por semana. Sempre no mesmo horário, no mesmo lugar. Embarcavam, com a diferença de uma estação, no mesmo trem que os levava ao centro. Ele subia primeiro; ela minutos depois. Olhavam-se, brevemente, enquanto ela se aproximava da barra onde ele se apoiava todas as manhãs. Sem trocar uma única palavra, ela então repetia o que fazia todos os dias: ajeitava a bolsa firmemente sob o braço e segurava o mesmo apoio, onde as mãos de ambos flertavam casualmente com o toque. Algumas vezes, dedos mais atrevidos cumprimentavam uns aos outros enquanto ele e ela olhavam em direções opostas do vagão. Às vezes, ele lia o jornal enquanto ela mexia no celular. E suas mãos, como seres independentes, continuavam a aproximação contida.

Com o passar do tempo, acabaram encontrando naquele ritual o momento mais aguardado do dia. Os dois eram casados, tinham filhos e viviam vidas confortáveis nas quais "tudo está encaminhado". E eram felizes em seus casamentos. Mas tinham juntos, ali, na cumplicidade daquele vagão anônimo, um país sem governo onde podiam se refugiar. E reinar. Ela gostava de ver a repetição de suas gravatas, adivinhando um padrão para as suas escolhas. Azul clara, azul escura, bordeaux. Ele imaginava, a cada dia, se aquele poderia ser o aniversário dela. Sempre anônimos, sempre olhando em direções opostas, sempre mudos. Apenas mãos se tocando no balanço do trem sobre os trilhos.

E assim seguiam, por 23 minutos, até ela saltar primeiro e ele seguir túnel a dentro. Sem palavras nem despedidas, nunca trocavam olhares e raramente permitiam roçar um no outro. Ficavam apenas ali, segurando a mesma barra de apoio, para o entretenimento de dedos ora tímidos, ora desinibidos. Havia algo de erótico e proibido naqueles encontros propositais de mãos e dedos, escondidos sob o barulho e o anonimato. Os dois sentiam o coração palpitar a cada novo sacolejo do trem, quando mãos esbarravam um pouco mais, e palmas se sobrepunham numa deliciosa dança de acasos que os faziam sentir borboletas na barriga. Eram amantes.

Dias, semanas, meses. E os dois repetiam aquela dança invisível e sem importância para o resto do vagão apenas preocupado em chegar a algum lugar. Eles não. Gostavam do trajeto. Ele acompanhava o cumprimento do cabelo dela, curto no verão, longo no inverno, e a alternância do vermelho ao castanho escuro. Ela notava que ele tinha mais cabelos brancos desde a primeira vez que o viu e que costumava ganhar mais peso nos últimos meses do ano.

Armações de óculos, pastas e sapatos novos. Era como mantinham registro um do outro. Completamente anônimos e estranhos, contentavam-se com aqueles encontros efêmeros em que enroscavam os dedos, ora como algemas folgadas, ora como instrumentos de carinho. Nunca se olhavam, nunca se falavam. Até que ela desembarcava e ele seguia seu destino. Era sempre assim. Dia após dia.

Quando um ano se passou, ele decidiu que faria algo inesperado. Embarcou. Segurou o apoio e aguardou. Como já previa, ela entrou, olhou-o por um canto de olho e segurou o apoio a milímetros de sua mão. Seguiram juntos, sentindo a mistura do calor da mão dele ao frio da mão dela, recém saída da rua. O trem parou, portas se abriram e ela se preparou para sair.

Foi então que ele roubou sua mão e seu olhar inequivocadamente. Não a deixou sair. E ali ficaram, de mãos entrelaçadas, observando-se frente a frente, pela primeira vez, sob o som de seus corações saltitantes. Ele descobriu mais cantos e contornos do corpo dela. Ela desenhou novos traços em seu rosto, novas sombras sob seus olhos. Ficaram ali, pela eternidade de alguns segundos, adivinhando-se.

Mas, simplesmente, não sabiam o que dizer um ao outro.

Ela desembarcou e se perdeu sob a luz que cobria a escadaria que dava acesso à rua. Ele se sentou, enquanto dobrava o jornal calmamente guardando-o em sua pasta. Notou que ela havia deixado cair um lenço lilás, que ele delicadamente retirou do chão e guardou em seu bolso. Não sei antes perceber que havia perfume em sua mão.

Os monitores de TV coloriam o desembarque com manchetes do dia. Aparentemente, choveria ao final da tarde, o governo não sabia o que fazer a respeito do surto de gripe e nunca as taxas de financiamento de automóveis estiveram tão atraentes.

Nunca mais se encontrariam.

Um comentário:

lilian disse...

Ele deveria ter tomado a iniciativa...esperou demais.
Amantes nnão precisam de palavras,mas
de um refugio.
Gostei muito da ilustração,como sempre exata.
Entendo a mensagem sutil do texto,
pode ser o amor não consumado ,mais intenso do que o ardor da paixão?
lembrou-me muito este texto ,o filme
coreano ''a flor da pele''.