segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A FLOR NO CONCRETO

"Eu acho que nunca aprendi a ser feliz", ela dizia, quase sussurrando, da sua janela insone. Os olhos úmidos, escondidos sob as mãos cheias de dedos finos e compridos. As unhas roídas, os pulsos finos. Os braços decorados por uma penugem que refletia a luz que invadia o quarto bagunçado.

E ele ficava ali, em silêncio, entre os lençóis desfeitos, observando a sua mulher. Disfarçando a sua própria tristeza. Ela era linda e frágil como uma flor de porcelana. A pele delicada, fina e branca como papel, os cabelos dourados despencando pelos ombros nus, as linhas daquele corpo magro de quem se alimentava tão mal. A voz rouca, sussurrada, e aquela dificuldade em concatenar os pensamentos, entrecortados pelo abdômen que parecia engasgá-la em angústia. Aquela alma triste, sua bailarina. 

Era era tão linda. Deus, ela era tão linda. E tão frágil.

Eles tentaram inventar uma vida naquele apartamento minúsculo, encravado no barulhento bairro boêmio, onde sustentavam aquelas certezas falhas de quem ainda está longe de completar 30 anos. Precisavam de tão pouco, pensavam, enquanto riam os seus sorrisos de vinho. Aqueles sorrisos raros.

Ela tentava, também. A dança que deixava aqueles pés imundos cheios de feridas. A música que a deixava em transe, quando ela não se importava em escorregar todas as lágrimas represadas. Ela tentava.

Havia também o crochê, os livros por terminar, a bulimia, a cocaína. Aquela alma fragmentada, em pedaços, desde o primeiro dia em que seus olhos pararam nela. Ele sabia, ele admitia - e lembrar de tudo aquilo era como um soco em seu estômago; as fotos espalhadas pela cama, os abraços, os sorrisos, perdidos no tempo. Ela era tão infeliz. Mas ela era feliz com ele, ele sabia. De alguma forma ela era.

"É como diz a canção", ela dizia, enquanto eles viam o sol nascer na janela. "O amor é o que nos destrói". E ele fingia concordar, abraçando o seu corpo pequenino contra o seu, beijando a sua testa, fazendo carinhos em suas costas, escondendo o seu choro. Aquele desejo desesperado, impotente, de curá-la.

De consertá-la. 

"Vamos ver os fogos de artifício", ela disse um dia, puxando-o pela mão. Subiram como crianças as escadas de ferro para o topo do prédio, os olhos arregalados diante do brilho que tomava o céu daquela noite qualquer. A vida era boa, naqueles minutos fugazes a vida era boa.

Abraçaram-se, por tanto tempo, como se tivessem desaprendido a descolar os corpos. Ela olhou nos seus olhos, fazendo carinhos em seu rosto. Um beijo úmido, um suspiro.

A verdade é que ele nunca entenderia ao certo a cadeia de eventos que unia aquelas lembranças. Mesmo após tanto tempo. Aquele ilusionismo terrível, onde o mundo vira de ponta cabeça com um piscar de olhos. Primeiro está ali; depois não está.

Ele lembrava de tê-la em seus braços, do aroma do seu hálito, do toque dos seus dedos em seu rosto e de ela mencionar a sua barba por fazer. Ele lembrava do seu casaco vermelho e da cintura entre as suas mãos. Ele lembrava, aqueles pensamentos rasgados, aquelas imagens órfãs, que vinham sufocar a sua garganta.

Ela era tão linda. Deus, ela era tão linda.

Ela só não sabia voar.                               

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