Você me pediu para te escrever algo bonito. "Escreva algo", assim você me pediu, como se as palavras fossem purpurina, que se joga sobre uma folha desenhada com cola onde magicamente uma imagem se forma. "Escreva algo", assim você me pediu.
A verdade é que não sei se levo jeito - se ainda levo jeito - para escrever esse tipo de coisa. Fiquei meio amargo, acho. Não que me falte sentir, em verdade acho que sinto até em demasia (minha força ou minha fraqueza? Ainda não decidimos).
Então eu me sento diante desta folha branca, digital, contando as piscadas da barra vertical que parece gritar por um punhado de palavras, e deixo os dedos falarem o que quiserem. Depois olho, repreendo, ajeito, faço remendos. Remédios. Costuro a alquimia que você pediu - talvez pelo mero capricho de pedir.
"Escreva algo [para mim]".
E aí me ocorre que talvez escrever algo seja escrever nada. Escrevendo tudo. Simplesmente escrevendo. Fabricando reflexões - não querendo dizer com isso que elas são inventadas. Não levo jeito para isso. É apenas a dificuldade (momentânea?) em lidar com determinadas ideias. Sentir sem falar? Bom, você entende o que quero dizer.
Acho.
Você me perguntou da minha relação com o tempo, com o esquecimento, a espera, o desapego, a despedida. E eu simplesmente te expliquei que são meus temas sensíveis, do campo das coisas que se pensa e não se fala. Meus segredos. Deixemos assim.
E o que eu faria quando nos reencontrássemos 10, 20 anos daqui? Eu poderia não te conhecer, te reconhecer - e vice versa - ou simplesmente gritar do topo de um prédio que, durante todo este tempo, eu estava simplesmente esperando pela minha mulher.
Nossa solidão. Luz da janela batendo sobre os nossos rostos. Gosto de vinho na boca. Eu e você. Sozinhos no mundo. Nós contra "eles".
O que precisamos está aqui no chão, você costuma falar. Olhar demais para a estrelas é bonito, coisa e tal; deixa a gente mais profundo, mais poético. Mas é no chão das coisas que encontramos a realidade das nossas buscas mais verdadeiras. Você está certa.
Eu acreditava que era a gravidade que atraía as pessoas, que costurava as histórias, unia as almas desencontradas. Não é. Isso é coisa inventada. É farsa. E se no céu há o brilho sedutor das estrelas das nossas ilusões, sob os nossos pés descalços há as pedrinhas, sem graça, ainda que ocasionalmente "coloridinhas", que machucam mas que podem também elas esconder seus segredos.
Os segredos sob os nossos pés. Pés enrolados, pés de lençol, pés de chuveiro. Pés de pato, de cabra, de moleque. É onde habitam os nossos melhores segredos. E talvez você seja o maior deles.
Seu cabelo cor de areia. Seus olhos que me guardam numa prisão de vidro. Sua pele, malte e azeite. Especiaria. Sardas fugitivas, escorregadas na linha da sua cintura. Pernas compridas, braços de bailarina. Pescoço, pêlo, pele. Dedos que tocam, boca, beijos, cheiro de nostalgia. Voz, coisa antiga, perdida. Despedida, despida.
Talvez seja esta uma carta de amor, afinal. Como você pediu, como lhe agrada. Um caleidoscópio de ideias, que você pode manipular, brincar com as peças, um mosaico de peças invisíveis. Mensagem cifrada.
"Escreva algo", assim você pediu.
E aqui está: descobri que pertenço a você.
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