terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A CARTA

A folha de papel estava ali, branca, pedindo para ser tatuada. Implorando por segredos compartilhados, por confissões, despedidas, palavras de amor - ou de ódio. Solitária, nua, ela não exigia absolutamente nada. Qualquer coisa, uma palavra que fosse, já bastaria. Que alguém pusesse algo na superfície do seu corpo, fossem ruas quaisquer sem muita elaboração, ela ficaria agradecida. Queria somente ser coberta, desbravada, desenhada. Parecia pulsar, sobre a mesa, sentindo o magnetismo da caneta ao seu lado, logo ali, a poucos centímetros. Uma atração que reverberava por todos os cantos da mesa. Caneta e papel.

Ele ponderou por um longo tempo se deveria ou não fazer aquilo. Sentava-se, a caneta em punho, respirando fundo. E então levantava. Um cigarro, uma taça de vinho, uma música tocando alto no computador. Cantarolando. E voltava a sentar na cadeira. As pontas dos dedos tocando levemente o papel, tamborilando, palavras começando a se desenhar em sua mente. Então expressões, parágrafos, provocações, como uma sinfonia. Os sons da escrita ganhando corpo em seus pensamentos.

Mas não tinha certeza. Hesitava.

Foi ao banheiro pela centésima vez, hipnotizando-se com o barulho da chuva despencando violentamente sobre a pequenina janela acima do chuveiro. Pá. Pá. Pá. Pá. Pá pá. Pá pá pá. Olhos fechados. Longos suspiros. A água da pia escorrendo gelada pelos seus dedos, evitando ao máximo voltar para a mesa. Molhou o rosto, observou-se por alguns minutos, tocando seu rosto, tocando seu reflexo.

Sim, ele deveria escrever aquela carta. Era hora. Passeava pela sala, fingindo não ver os instrumentos ali, esperando por ele. Papel e caneta. Era hora, ele sabia, era hora.

Escancarou a janela do apartamento, deixando seu rosto ser banhado pelo vento gelado, úmido, que vinha da rua. Aquele cheiro de terra, aquelas janelas fechadas ao seu redor, protegendo-se. Sentia as gotas da chuva, os sons, a cidade se movimentando sob suas pálpebras levemente cerradas.

Sentou-se então, com calma, seus olhos se perdendo no horizonte cinzento da sua janela aberta. E então deixou que sua mão agisse por conta própria. As palavras surgindo, gradualmente, fundando famílias, estabelecendo conexões sobre o papel. Primeiro, segundo, terceiro parágrafos. Uma sequência quase elétrica de reflexões, que jorravam das pontas dos seus dedos, como feitiçaria. Havia muito ali, um mundo a ser contado.

E as letras iam perdendo a timidez, como trepadeiras, conquistando cada canto da folha de papel. Ele estava escrevendo. Enfim, de uma vez por todas. Aquela carta. Não havia mais volta. Estava tudo ali, escancarado. Aquela história sendo narrada em detalhes, tudo revelado; sentia o peso das suas costas evaporando com cada gota de tinta que escorregava das suas unhas. Estava liberto, cada vez mais liberto.

Horas se passaram. Ele parava, relia, optava por palavras mais adequadas, movimentava frases inteiras, trocava parágrafos de lugar. Aquela engenharia de ideias. Estava dizendo exatamente o que queria? Da forma como queria? Tinha a impressão que sim. Continuava a escrever, quase em transe, as letras sendo rabiscadas com velocidade, como num medidor de abalos sísmicos.

Uma torrente de palavras caladas. Sua obra-prima.

O dia já havia dado lugar à noite quando ele enfim pôs o papel sobre a mesa. Os dedos doloridos, quase em carne viva, pela pressão ininterrupta da caneta sobre a sua pele. Leu, releu, voltou a ler mais uma vez. Um novo cigarro, as últimas gotas da garrafa de vinho sendo quase espremidas da garrafa, despencando sobre a taça, gotejando como sangue de um corte recente. Feito homeopatia.

Ela estava pronta. A carta estava pronta. E era perfeita. De ponta a ponta. Da primeira vírgula ao ponto final. E dizia, sim, dizia tudo o que ele queria dizer. Comunicava o caos que envolvia os seus pensamentos. Havia uma construção ali, fundada naquela folha de papel. Aquela centena de palavras escritas com letra miúda, algo de lei, algo de religião, algo de política. Um código. Sua alquimia.

Segurou o papel entre os dedos, sorrindo. Feliz. Orgulhoso. Ele havia se superado.

Caminhou a passos lentos em direção à janela. Sorria, enquanto a chuva voltava a beijar o seu rosto. Segurava a carta como se fosse um discurso, erguendo o papel com as duas mãos, em frente ao seu corpo, feito algo sagrado, cerimonial.

E então rasgou-a em dezenas de pequenos pedaços, soprados pela janela, como pombas microscópicas, voando sem rumo, até se perderem na água da chuva que inundava as paredes do prédio.

Suas palavras virando coisa. E então desaparecendo para sempre.

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