domingo, 1 de julho de 2012

A MARCHA DA RAINHA NEGRA

Esta é só mais uma história de ninar, como tantas outras, sobre um tempo de heróis e princesas, castelos e batalhas, grifos e dragões. Fragmentos de lendas, misturadas ao longo dos anos, pela língua comum, de modo que já não se sabe ao certo a essência da sua originalidade. Ou mesmo sua utilidade. Uma história sem moral, sem ensinamento. Apenas uma história. E ela começa assim:

A paisagem árida, cinza, melancólica cercava quilômetros ao redor daquela arena. Esqueletos de árvores espalhados por todos os lados, rochas queimadas, apenas chão, apenas barro, apenas cascalho e um vasto céu negro sobre dois vultos dormentes, lado a lado, como amantes.

O grande dragão negro jazia ali, abatido. A cabeça enorme, imóvel, a língua verde musgo, como uma esmeralda fosca, pendendo feito uma cortina entre os dentes afiados como adagas, pingando um líquido viscoso que fazia fumaça ao encontrar no chão. Os olhos cor de âmbar, paralisados, escondidos atrás de pálpebras semi-cerradas. O gigantesco corpo de escamas cor de ônix, duras feito aço, espalhado como uma noite compacta sobre o chão marrom. Aquele colosso. No peito da besta, uma espada cravada, como um broche. Um vapor forte, um cheiro cortante escapando pela ferida aberta pelo aço. Não havia dúvida que o dragão estava morto.

Logo ali, ao seu lado, pequenino, estava o herói desta história. Deitado, imóvel, o peito arfando vagarosamente sob a armadura chamuscada. Onde antes havia aço reluzente restava apenas rasgos num metal queimado, sujo de terra e de sangue. Onde antes havia uma longa capa, pérola e azul, agora estava um trapo rasgado como uma rede de pesca. O elmo, antes orgulhoso, com duas asas adornando as têmporas, agora parecia uma máscara sem forma, fragmentada. E, centenas de metros dali, seu longo escudo, estampado com um leão orgulhoso e o lema "Graça Plena", jazia como uma bandeja velha e imunda.

Ele olhava para o céu, com lágrimas nos cantos dos olhos, incrédulo do seu feito; sorriria se houvesse um músculo em seu rosto que não estivesse completamente exaurido. Fechava os olhos devagar e voltava a abri-los, absorvendo a luz tênue do sol da manhã que começava a banhar os dois combatentes. Aquela luta que, por seus cálculos rápidos, devia ter se arrastado por semanas. E ele até se levantaria para ir embora, caso a sua montaria ainda estivesse viva e se cada osso de seu corpo não estivesse completamente estilhaçado, feito vidro.

A lenda conta que este cavaleiro foi o único herói que conseguiu encerrar o reino de terror da Rainha Negra que, em sua última marcha, havia tomado para si a forma de Zalfatrax, o grande dragão negro. O rei de todos os dragões. Ela havia sido derrotada, até o dia que voltasse para a nova marcha.

Os dias foram se transformando em anos e a história foi virando lenda. As crianças ouviam a narrativa do herói anônimo e ficavam imaginando que forma a Rainha Negra tomaria quando voltasse. "Ela voltará como uma fada, para enfeitiçar todos os homens do reino", diziam algumas meninas. "Ela voltará como uma grande serpente", arriscavam uns meninos. "Ela não voltará nunca mais", diziam os velhos, antes das velas apagadas e dos beijos sobre as testas inquietas. "Pelo menos rezamos todos os dias que não", pensavam em silêncio.

Mas ela voltaria. Centenas de anos depois.

E rapidamente a história correu entre os vilarejos. A Rainha Negra estava de volta e, pouco a pouco, tombavam as torres e castelos. As fronteiras se estreitando, a sombra cobrindo o reino novamente. "Sob que forma ela voltou?", os aldeões suplicavam aos mensageiros. Mas ninguém havia visto quem comandava as hordas selvagens que aterrorizavam o reino. A marcha ganhava cada centímetro do mapa, feito tinta derramada, inundando todos os cantos sob uma névoa tão grossa que quase podia ser tocada. Estava de volta o tempo de culpas e tristezas.

Os exércitos eram dizimados. Soldados sem pernas, sem braços, sem olhos, moribundos, retornando às cidades para narrar novos episódios da marcha. "Ela tem devorado meninos recém-nascidos", diziam alguns. "Ela escraviza as meninas", diziam outros. "Escondam as crianças", todos pareciam concordar.

Até o dia em que ela se revelou. Sombria, os braços compridos como tentáculos. Olhos negros, profundos, abissais, a pele branca como a neve, os cabelos cor de fogo, lembrando serpentes.

* * *

"Os cabelos cor de fogo, lembrando serpentes...", a voz dela, ao seu ouvido o retirou de um transe profundo. Com um salto, ele se virou ao encontro de sua mulher, que lia sua história do seu ombro, como sempre fazia; contra a sua vontade. Pela milésima vez, ele reclamou do hábito impertinente, que tirava a sua concentração e fazia as ideias desaparecerem. Não gostava que lessem nada antes de concluído. Quebrava a mágica, o encanto se perdia.

Ela sorria, como sempre fazia. Um punhado de beijos carinhosos, cócegas e carinhos que derrotavam todos os argumentos. 

"Deseja salvar o documento?".
Não.

O jantar estava na mesa. E ele a acompanhou, rabugento. 

E feliz. É que ele não sabia como terminar aquela história.

Um comentário:

Anônimo disse...

magia pura...