quinta-feira, 26 de abril de 2012

MOÇA DE VESTIDO VERDE

Acordei com vontade de escrever na primeira pessoa, dosando eufemismos como alquimia, medindo com cuidado o peso das minhas letras. Desenhando cada uma sob medida para você, feito alfaiate. Acordei meio poeta. Cheio de palavras para você que me pede palavras, como quem pede frutas, como se eu pudesse fabricá-las. Eu, um ourives de inspirações.

Porque esta noite você veio me visitar em meus sonhos.

Você me pedia, sem cerimônia, o mundo. Meu mundo. Eu sorria da sua exigência. Como assim, te entregar meu mundo? Inocente, você parece esquecer que há tanto tempo ele é seu. Você tocava o meu rosto e sussurrava algo em meu ouvido. Algo que ainda agora tento lembrar. As palavras se diluiram no ar. Ficou o arrepio, ficou o cheiro, ficaram os seus lábios roçando o meu pescoço.

Decidíamos sentar sob o sol, juntos, feito namorados. Você com seu vestido de verão, seu vestido verde, e eu desejando ser artista naquele momento e de alguma forma te eternizar além apenas da minha retina. Mas não havia nada em minhas mãos, salvo meus dedos, para te transformar em arte.

Faltaram palavras, sobraram suspiros. Cego, cada pedaço do meu corpo gritava para que eu te descobrisse pelo tato. Tocar seu rosto, seu corpo, sua boca; me envolver nos seus cabelos, no sabor da sua pele, transformar seu vestido na bandeira do nosso país. Ali, orgulhosa, dançando no vento.

Um rio passava não longe de nós. Aquelas árvores, aquelas flores, nós eramos aquarela. Pela brevidade daqueles instantes nós éramos aquarela. Passageiros, flutuantes, feito a água que rugia ali perto. Caminhamos, as mãos desejosas de se encontrarem, esbarrando-se de forma premeditada.

Nós, querendo apenas nos pertencer. Cometendo o crime de nos pertencer.

Livrei os seus pés das sandálias azuis que os envolviam. Você me libertou das minhas roupas de serviço, algo de casaca, algo de soldado. Libertamos os pés, mergulhando-os na água corrente, fria, rindo feito duas crianças. Sentados, um ao lado do outro, decidimos apreciar o silêncio. O silêncio do vento, o silêncio da sombra. Eu arriscava uma palavra, você me calava, dois dedos delicadamente posicionados sobre a minha boca. Eu te beijava as pontas dos dedos, você recuava, fazendo pirraça.

Eu olhava sua silhueta, recortada no sol que se deitava no horizonte. Percebia contornos, curvas, imaginava suas ruas, avenidas, morros e montanhas, ávido por uma meticulosa exploração. O seu cabelo dançando, sem muita ordem, o seu pescoço nu, revelado. Você olhando para longe, investigando.

E então você olhou para mim. Seu olhar penetrante, cortante, pequenino, profundo, que me desnuda por completo; que me tira a patente, que me desarma. Feito musa, feito ninfa, fico ali petrificado, maquinando o que te dizer e sem conseguir dizer nada, apenas o silêncio da minha boca entreaberta que não deseja outra coisa além de encostar na sua. Aquelas duas bocas, ávidas, distantes, atraindo-se de maneira incontrolável.

Você me conta segredos. Eu te conto segredos. E naquele parlamento de intimidades nos aproximamos, não os corpos, que já são como um, ali, pés enfiados no rio. Mas as almas, que parecem se misturar, cunhando-se feito moeda.

Há algo de sonho dentro do sonho. Eu te olho sem ter certeza que é você ali. Você segura a minha mão, com força, me fazendo acreditar. Você sabe que eu quero te segurar pelo pulso e te erguer, te puxar contra meu corpo, te cingir com meus braços, te fazer satélite definitivo. Você, gravitando ao meu redor, tão atraente. Meu satélite que quero atirar ao chão, jogando meu corpo órfão sobre você, cheio de sofreguidão; tudo é calor e choque e nenhuma palavra. Um estranhíssimo balé, provavelmente surdo, cego e cheio de exclamações, gemidos, suspiros, aspirações, desejos.

Você me olha, senhora de mim. Neste sonho sou seu brinquedo, moça de vestido verde. Seu brinquedo, seu patrimônio sem valor, seu refém.

Você me segura pela nuca, eu posiciono minhas mãos ao redor da sua cintura. Há algo ali, aquele "nós cheio de nós" que parece parar o tempo. Somos explosão, colisão, combustão. Somos o chão ao nosso redor, a grama que suja nossa roupa, somos o barulho da nossa respiração ofegante, somos o cheiro, os sabores dos nossos corpos que se descobrem, curiosos. Somos um algo sem nome, sem batismo. Somos uma guerra, um movimento, somos meio música, meio eternos, meio heróis, meio bandidos.

E então somos o suor que pende pesado na pele. Somos o cansaço.

Somos saudade.

Somos o meu sonho desperto, imaginando a noite em que você me visitará novamente.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

PARA VER E OUVIR: SARA BAREILLES ("BASKET CASE")


Chamem-me de superficial, mas eu casaria com a mulher que me serenasse essa música.

terça-feira, 24 de abril de 2012

O ASTRONAUTA - DIRECTOR'S CUT

Até que, para sua avassaladora surpresa, ele sentiu um toque delicado nos seus ombros. Algo familiar. Acordou com um susto, o coração disparado, a garganta seca. Olhou ao redor. Ele ainda estava lá. Queria voltar a sonhar.

Queria saber a quem pertencia aquele toque. Decidiu correr as areias do planeta, investigador de araque. Procurando pegadas, procurando rastros, quem sabe cheiros. Pistas. Sabia que aquele era um toque feminino. Só não lembrava em absoluto de sua dona.

Correu os morros, os cânions, aquele sol mostarda coroando seus pensamentos desconexos. Aquela busca.

Então decidiu sentar-se sob uma sombra. Olhava seus pés. Eles pareciam distantes, como se narrassem uma caminhada que ele mesmo já não reconhecia. "Que pés são esses? Que histórias eles contam?". Olhava sua roupa, suas mãos, tocava-se para verificar que ainda estava lá. Sentado, sob o peso da gravidade.

"Sim, ainda estou aqui", apalpava o seu peito, um quase carinho. "Sim, ainda sou eu".

Olhava para o céu. Sorria. Perguntava-se, curioso, o que ainda haveria por lá. Que segredos escondia aquele céu negro, que mistérios? Melhor, que surpresas? Esticava o braço, feito uma criança, como se tentasse trocar uma lâmpada sem sucesso. Queria tocar o sol com os dedos. Aquela catedral de estrelas, astros e luzes ao seu redor. Aquele teatro do infinito que ainda o comovia imensamente.

Corria, sem rumo, os braços voando em todas as direções.
Aquele pássaro desajeitado.
Aquele pássaro desastrado.

Deitou-se. O chão árido, abraçando seu corpo com carinho. Morno. Sentia cada parte do seu corpo marinando sob aquela atmosfera que durante tanto tempo foi o seu lar. Aquele cheiro agridoce no ar. Ouvia sua respiração coordenando o sobe e desce no seu peito. Suspirava. Enfiava mãos e pés sob a areia, como que lembrando de suas brincadeiras de praia. E, por alguns instantes mágicos, parecia sentir o cheiro do mar. Aquele barulho de sonho, aquela espuma salgada, inebriante. E era como se conseguisse ver o seu avô pescando, distante, o corpo enfiado até a metade na água. Sorrindo, acenando para ele. Ouvia sua vó, chamando ao longe. Aquele tempo de sungas e sorvetes. Via sua mãe, sorrindo, aquele sorriso doce que só as mães sabem ostentar com devida propriedade.

E foi como se tudo tivesse ficado claro. Absurdamente claro. Como se as nuvens no céu tivessem se desfeito, espalhando-se num balé de desaparecimentos apenas com o propósito de iluminar as suas ideias. De olhos fechados, sentia a luz do sol pintando o seu rosto com linhas amarelas, vermelhas, alaranjadas. E, na paz daquele momento, lembrou que havia sido a sua mãe quem momentos antes tinha lhe tocado o ombro. Aquele era o toque da sua mãe.

Levantou-se, com um salto. E, ali, diante dos seus olhos, estava ela. Sua mãe. Não como ele a recordava, aquela mulher carinhosa, de saúde frágil e o maior coração do mundo, com quem ele passou menos tempo do que gostaria e deveria. Mas a sua mãe na flor da idade, linda como uma atriz de cinema. Aqueles olhos profundos, melancólicos, aquele abismo de não ditos. Os cabelos negros, longos, lisos, dançando na brisa leve. A silhueta fina. Sim, era a sua mãe, aquela linda jovem, vindo lhe apontar um caminho.

Ela estendeu a mão, feito um convite. E ele foi ao seu encontro. Abraçaram-se por um tempo que pareceu durar um infinito. Ele depositou sua cabeça em seu ombro, os ossos magros espetando seu rosto de maneira confortável. O coração batendo no peito. Um tambor de compassos descansados, de guardas baixas.

E, sem trocar uma palavra sequer, sua mãe desfez seus labirintos. Feito fada. Tocou seu rosto, acariciou seu cabelo, enxugou suas lágrimas com as palmas das mãos. E mostrou-lhe, então, o caminho. O horizonte que habitava o teto sobre a sua cabeça. Aquele teto estrelado, aquele teto de possibilidades. Sorrindo, mãos dadas, ela parecia guiá-lo aos entendimentos que, durante anos, ele não conseguiu compreender, navegando, errante, ambulante.

Sua mãe apontava para as estrelas.

E foi como se aquela gravidade tivesse se convertido em mito, em lenda, em história. E no raiar daquela constatação, ele notou que também sua mãe desaparecia diante dos seus olhos, não sem antes lhe jogar um beijo. Um último sorriso. E então desaparecendo por completo.

Feito mágica, ele sentiu seu corpo levitar. Flutuando, como se nadasse na água, seu corpo sendo empurrado para cima, aquela anti-gravidade. Sua matéria leve, quase inexistente, ele sentia-se como o vento. Sem peso, sem sombra. E subia, subia, subia, feito um foguete preguiçoso, aquela poeira estelar enamorando cada poro do seu corpo. Aquele balão sem dono.

É que ele havia encontrado o caminho de volta.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

ÍTACA

ÍTACA
CONSTANTINOS KAVAFIS

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posêidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o bravo Posêidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos Fenícios
e belas mercadorias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

PARA VER E OUVIR: HOWIE DAY ("COLLIDE")

DIA DE JORGE

Jorge sentou praça na cavalaria. E eu estou feliz porque também sou da sua companhia.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

15 DE ABRIL

Ela despertou com um susto. O coração na boca, como se tivesse acabado de sobreviver a um sonho ruim. Contemplou o teto do quarto por longos instantes. Suspirava. O seu marido dormia, alheio. Ela o observou por alguns instantes. Olhou aquele quarto, aquele apartamento, aquela vida. E, durante aqueles segundos, não soube responder para si mesma o que fazia ali. Queria fugir. Queria criar asas. 

Então lembrou dele. Aquele pensamento cortante, afiado, que a atravessou feito relâmpago. Pêlos arrepiados, o coração disparado, algo de vertigem, como se ele estivesse ali, do seu lado, sorrindo. Como naquelas lembranças há tanto perdidas. Como naqueles dias, aquelas horas, aquela colcha de lembranças que parecia abraçá-la. Era como se ela pudesse tocá-lo. Sentí-lo. Como se ele estivesse ali do seu lado, mãos enlaçadas, feito namorados. Porque ele diria a ela que estava tudo bem. E colocaria sua cabeça em seu colo e a cobriria de carinhos. E a faria rir.

E, como um passe de mágica, não havia mais nada ali. Fumaça. Apenas a noite. Apenas a janela, os silêncios, ela sentada diante da mesa da sala, contemplando a realidade dos seus próprios pensamentos. Queria ligar para ele, naquele instante, acordá-lo. Queria lhe entregar um ultimato. "Agora ou nunca".

* * *

Lembrou que ele também havia se casado. Lembrou que ela estava ali, nas primeiras fileiras, vendo-o sorrir, aquele dia feliz, festivo, em que suas despedidas pareciam definitivas, escritas em pedra. Aquelas duas criaturas adoráveis, e que poderiam ser tão felizes juntas, mas que haviam se especializado em se despedir. Revezavam-se em se despedir. E era ele quem ia embora naquele momento. 

Ela o observava, em silêncio, e achava-o o homem mais bonito do mundo naquele traje simples que ele escolheu para se casar. Ela sabia que ele odiava "roupa de noivo" e que "jamais vestiria uma no seu casamento"

E lá estava ele. Como prometido. Um terno preto, camisa branca, gravata preta, um botão de rosa vermelha. Ocasionalmente ele olhava para ela, sorria, como se trocassem aquela confidência. E ela chorava, um pranto discreto, quase invisível. Porque mulheres se emocionam em casamentos. Sim. Mas eis que ele voltava os olhos para sua futura mulher. Sob a luz calma daquela capela discreta em que não mais de vinte pessoas testemunhavam aquela cerimônia simples. 

Ela apertava suas mãos. Aquele desejo de fugir. Aquele desejo de desaparecer com aquelas pessoas e dizer a ele aquele caleidoscópio de lembranças, carinhos, palavras, segredos. Aquele baú de lembranças inesquecíveis, que sobreviviam ao tempo; a saudade dos seus corpos órfãos, as imagens mentais, os não ditos, não feitos, não vividos. 

Porque havia tempo. Ainda havia tempo. Haveria tanto tempo mais. Quem ele pensava que era? Onde ele estava com a cabeça? Porque eles pertenciam um ao outro e nada daquilo fazia sentido. Como não fez sentido algum, anos antes, quando ele a olhou se casar. Ali, sozinho, fazendo sua própria despedida. Observando-a da última fileira. Uma lágrima no canto dos olhos, desaparecendo antes que a cerimônia acabasse.

Aquelas pessoas felizes. Aquela simplicidade que a devastava. O jeito dele de fazer as coisas. Porque um casamento é feito de mãos, de beijos, de confidências e de promessas. E depois uma fuga. Discreta. Elegante. À francesa. Nada mais que isso.

Ela o viu partir. Ele sorria, sob o sol, o cabelo bagunçado de uma maneira que ela sempre se impelia a arrumar. Ele acenava, como se fosse uma criança. E parecia ser o homem mais feliz do mundo. Como ela o conhecia. Aquele homem feliz.

E então ele olhou para ela. De longe, pouco antes de entrar no carro. Pela primeira vez um olhar sério, um sorriso de canto de boca, e os dois parlamentaram por horas apenas naqueles olhares. Ele também sentia sua dose de luto. E os dois sabiam disso. Quem ela pensava que era, afinal, onde ela estava com a cabeça, anos antes, quando decidiu ir embora?

Vagarosamente, ele foi ao seu encontro. Atravessando aquelas pessoas que queriam tocá-lo, abraçá-lo. E era como se ele estivesse vencendo uma selva até chegar a ela. Ela. Tão linda. Aquele vestido de verão, aquele lindo cabelo preto, preso ao lado do pescoço, aqueles olhos pequeninos, eloquentes. A boca que por tanto tempo ele venerou. O corpo mais bonito, a pele mais branca, o cheiro de infância que emanava de cada poro dela. Deram-se as mãos, ele segurou seu pescoço por breves instantes, aquele arrepio instantâneo em ambos, aquele arrepio que antecedia seus beijos. Beijou-a no rosto. 

E então ela percebeu que também havia lágrimas em seus olhos. Aquelas lágrimas misturadas, aqueles olhos vermelhos, aqueles soluços discretos. De olhos fechados, despediam-se, sem a necessidade de palavras mundanas. 

Era hora de ele partir. Eis a caótica tapeçaria da vida.

O telefone tinha o peso do mundo em suas mãos. A madrugada sussurrando em seu ouvido, embalada pelo relógio da cozinha, martelando a passagem dos segundos. Ela precisava ligar para ele. Ela sufocava, engasgava. Precisava ouvir a sua voz. Ligava e desligava o aparelho. Não sabia o que dizer. Não saberia. Tantos anos haviam se passado. Tudo estava há tanto tempo para trás. Mas aquilo era mais forte que ela. Como uma onda, uma avalanche, como uma dor sem fim. E ela sabia que a cura era ele. 

* * *

Por um tempo que pareceu infinito, os dois desenvolveram um código, um idioma. Viam-se pouco, em ocasiões planejadas com maestria, feito senhores da guerra. Viam-se, "ao acaso", em cinemas onde matavam a saudade nas últimas fileiras dos filmes que ninguém queria ver. Em supermercados, consultórios médicos, bancas de jornal, lojas de artigos inúteis. Ocasionalmente em pet shops.

Usavam músicas para confidenciar seus pensamentos. Escolhiam eufemismos, brincadeiras de palavras, confidências sussurradas feito mensagens engarrafadas. Encontravam-se, publicamente, como amigos discretos. Cumprimentavam-se, educadamente. E devoravam-se, nas sombras, em algum canto, assim que a oportunidade surgisse. 

Aquela energia represada, desesperada, que às vezes o fazia chorar. 

Viagens à trabalho, cursos, atividades ao ar livre. Inventavam todo o tipo de artifício para viver aquela vida juntos, aquela vida de sonhos, feito espiões, até que pudessem alinhar seus momentos, sincronizar suas vidas de uma vez por todas, até que pudessem resolver todas as pendências do campo da realidade.  

Liam os mesmos livros, combinavam de ver os mesmos filmes e até mesmo de conhecer - separadamente - os mesmos restaurantes. Porque havia algo de inebriante na ideia de que haviam fundado um país. Um mundo secreto do qual ninguém, além deles, tinha as senhas. 

Até que chegou o dia em que seriam felizes para sempre. O dia em que não haveria ninguém na platéia se despedindo. Um dia somente de sorrisos. Um dia de entrega, de completude, o dia em que tudo faria sentido. Aquele dia simples, com talvez nem dez pessoas presentes. O dia em que nenhum coração seria partido. 

O dia em que fugiriam juntos. O dia que, enfim, saberiam que era para valer.

Viveram uma longa vida juntos. E sorriram durante cada segundo.

Até o fim.

CAROLINA E O RATO

Na manhã mais linda do planeta nasceu Carolina. Uma menina linda, pequenina, de olhos azulados e cabelos castanhos clarinhos, quase avermelhados, como o seu pai, que estava há milhares de quilômetros dali. Longe, alheio, distante. Não porque ele fosse um pai ruim. Ele simplesmente não era pai algum. Não sabia da existência de Carolina, sequer da gravidez da sua antiga namorada com que não havia falado mais desde que tinham se separado. Ele seguiu seu caminho solitário, como lhe era habitual. A busca pelas novas aventuras, novos portos, novos ares. Seu mundo deveria caber em seu bolso, sem amarras, sem raízes, sem seriedades. Aquela criança irresponsável de 30 anos. 

Um arco-íris saudava Carolina, na janela do quarto em que ela e sua mãe se conheciam pela primeira vez.

Mas a vida foi dura com Carolina. Ela perdeu a sua mãe cedo e passou a viver com os seus avós. Aos 16, saiu de casa para viver com um namorado em Buenos Aires. Experimentou drogas, decidiu que não precisava estudar e que a vida seria a sua educação superior. Queria ser livre, errante, queria uma mochila nas costas e uma boa máquina fotográfica. E assim viveu por alguns anos difíceis, de grandes privações e perigos.

Aos 19 voltou para a casa dos seus avós. Parecia exausta daquela vida sem rumo. Queria um eixo. Queria cuidar-se. Magra como uma bailarina, fez sua vó chorar escondida. Os cabelos sujos, as unhas descuidadas, as roupas puídas, aquele punhado de objetos que cabiam numa sacola e eram todo o patrimônio de Carolina. Aquela menina linda, aquela menina perdida, aquela menina esquecida. 

Contra a vontade dos seus avós, decidiu procurar o seu pai que, àquela altura, deveria beirar pouco mais de 50 anos. Tinha uma foto antiga, aquele sorriso galanteador de homem metido à estrela de cinema, com óculos escuros e o cabelo cuidadosamente desfeito. Aquele homem que havia feito sua mãe em pedaços, aquele homem que sua mãe jamais havia esquecido. 

Um nome, um endereço, um telefone. Era fácil demais rastreá-lo. Queria encontrá-lo. Confrontá-lo. Dizer a ele uma torrente de ofensas guardadas, de mágoas, de faltas, de ausências. "Onde estava ele quando ela precisou? Onde estava ele para salvá-la, protegê-la dos perigos da noite?". Aquele fantasma. O príncipe. O vampiro. 

Carolina decidiu caçá-lo. Gata e rato.

Com grande facilidade, descobriu que ele havia embarcado num cruzeiro. Com ajuda dos seus avós, comprou passagem e acomodação modesta. Juntou suas coisas e foi atrás de sua presa. Tinha um roteiro muito bem definido de tudo que iria fazer. Tudo que iria dizer a ele. 

Ela o faria em pedaços. 

Encontrou-o no primeiro dia. Galanteador, saboreando drinks exóticos na piscina, flertando até com as gaivotas. E continuou observando-o, dia após dia, até encontrá-lo no bar. Aquele homem sozinho, de meia idade, vivendo um tempo que lhe havia escapado. Bonito, ainda, cabelos brancos, uma alma só. Apresentou-se, sem cerimônia, mas ficou sem reação ao testemunhar aquele homem se desfazer diante dos seus olhos. Aquele homem frágil, que buscou em seu colo um consolo. 

Não havia mais roteiro. Aquele encontro seria fruto de improviso.

Narraram as vidas um do outro, com facilidade. Alguns risos, algumas lágrimas, mãos e abraços desajeitados. Falaram de música, de livros, de arte. Tanto em comum. Discutiram sanduíches e queijos sofisticados; cervejas baratas e vinhos especiais. Falaram de filmes. De fotografias. De viagens inesquecíveis. Do tempo em que Carolina viveu em Buenos Aires, de quando ele visitou a Turquia. Tomaram sorvetes. Fumaram charutos e beberam whisky. Envoltos naquela fumaça saborosa, o oceano azul cortando as janelas atrás de suas costas, estavam ali pai e filha, aqueles dois estranhos com duas vidas tão semelhantes. 

Carolina tinha uma tatuagem no pulso direito, "713". Seu número predileto e justamente aqueles que eram os números da sorte de seu pai, "7" e "13". Assustavam-se. Falaram de amores passados, perdidos, corações partidos. Falaram de sua mãe, por um longo tempo, que ele lembrava com carinho e saudade. Ela mostrou uma linda foto, sua mãe sentada à janela, como uma pintura. Ele segurou a foto por longos instantes, suspiros, falta de palavras. Aquela dor, aquela culpa, aquela impossibilidade de refazer o que foi desfeito. Ele tocava o rosto de sua filha, seu cabelo. Olhavam-se, com espanto e curiosidade e enxergavam-se nos olhos um do outro. Eram pai e filha, não havia dúvida. 

E descobriam, ali, que não estavam mais sós.

Ele planejava. Carolina, aqueles olhos tristes, pequeninos, desconversava. A voz baixa, sussurrada, tímida. Ele queria refazer a vida dela, ajudá-la. Estudos, emprego, o conforto do seu apartamento. Carolina teria tudo, teria o mundo, teria a vida que sempre mereceu. Ele buscara Carolina na queda, não a deixaria cair. E cuidaria dela. 

Feito animal selvagem, ela cedia pouco a pouco. Porque ficou claro para ambos que não havia mentiras ali. Nem charme. Nem tipo. Nem pose. Nem tempo para nada disso. Havia uma menina com quem a vida havia sido muito dura. E um homem de meia idade, sem rumo, que descobria uma filha aos 50 anos. 

Aqueles dois órfãos. 

Carolina queria conhecer a Turquia, disse. Ele sorriu, concordando. "Sim, aquela viagem inesquecível"

Iriam a Disney World, primeiro. 

PARA VER E OUVIR: NORAH JONES ("WHAT AM I TO YOU?")

quinta-feira, 19 de abril de 2012

ILUSTRANDO

Joseph Minton - "Tempestade"

BLAME IT ON BUENOS AIRES

Olharam-se de longe, por momentos breves. Então se aproximaram, vagarosamente, rostos quase se tocando. Mãos e pernas inicialmente desajeitadas. Sem direção, sem papeis definidos. Os dançarinos.

Gradualmente, envolveram-se numa guerra física em que hora agarravam-se apaixonadamente, hora afastavam-se como se desejassem ficar indiferentes um ao outro. Aquela dança de beleza e caos. Aquele tempo fora do tempo, aquele mundo secreto.

Pernas entrelaçadas, dedos curiosos, carinhosos, olhares que gritavam desafios, confidências, segredos. Dançaram por horas, até a exaustão; os cabelos ensopados de suor, a respiração ofegante, e dois corpos que pareciam não querer trégua. Travavam sob os ares de Buenos Aires uma guerra sem fim, rompido um antigo armistício.

Aquele vazio convertido em eloquência, feito alquimia. Blame it on Buenos Aires. Procuravam-se, afastavam-se, aquela sedução meio infantil, de quem brinca com o objeto do desejo. Ou como se aproveitassem algo que fosse durar para sempre. Ou desaparecer como mágica diante dos seus olhos.

Aqueles reis sem reino.

Os dançarinos se entregaram sem medo após algum silêncio educado. Um silêncio elegante. E então destruiram o silêncio com o barulho da cadência dos seus passos, seus corpos, aquele calor, como se causassem combustão juntos. Aquela dança incendiária.

A cidade parecia sorrir para os dois. Aquela ciudad vieja, um personagem mágico que fazia daquela dança um triângulo amoroso.

Abraçados, olhavam-se, sem pressa, como se tivessem todo o tempo do mundo, como se não dançassem sob o martelo das horas que devoravam o relógio com voracidade; aquelas 24 horas, aquela contagem regreessiva, aqueles instantes mágicos, fugazes, saboreados feito vinho; passageiros como a água que corta o Puerto Madero.

Porque eles tinham todo o tempo do mundo e tempo algum. Tudo e nada. Tinham a si mesmos, tinham aquela dança sem fim, tinham seus corpos exaustos, enamorados como se seguissem orientações de Pablo Neruda.

Precisavam se devorar naquela dança. Não poderia haver meio termo. Não seria justo. Era a maneira que tinham de testar-se para constatar que podiam ser um corpo só naquele xadrez de mãos e pés inquietos; daquelas bocas que não queriam perder tempo com palavras; aquelas bocas que eram apenas saliva, apenas língua, apenas promessas flutuantes, seladas sob a névoa da respiração ofegante, do compasso dos dois corpos, que se movimentavam juntos, feito barcos ganhando o oceano. 

Então tocaram-se uma última vez. Beijos tímidos, últimos olhares espremidos na soleira da porta, o dia nascendo preguiçoso na janela, aquelas largas avenidas, cheias de luzes e silêncios. Despediram-se, amantes oponentes, sem vitória nem derrota, aquele empate escrito com a marca dos seus corpos nos lençois desfeitos, ainda mornos.

Porque haviam fragmentado aquelas horas e transformado-as em anos.

E assim disseram adeus, sem saber quando se veriam novamente. Com paixão, com saudade, com desejo. E com olhos de carinho e pecado.

Como se dança o tango.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

terça-feira, 17 de abril de 2012

PARA VER E OUVIR: JOHN MAYER ("NOT MYSELF")


Absurdo o tempo que levei para "descobrir" essa canção há milhões de anos empoeirada no meu iPod. Eu deveria ser multado por isso.

ILUSTRANDO

Henri Gervex - "Le Bal de L'Opera 1886"

O LADRÃO DE MOMENTOS

Os dois eram amigos há mais tempo do que conseguiam lembrar. Inseparáveis, incansáveis, aquelas duas almas refletidas num espelho. Aquelas duas metades de uma mesma pessoa. Ele e ela. Amigos de gostos iguais, opiniões, vontades, aventuras. Sabiam tudo, absolutamente tudo sobre as vidas um do outro. Amores, conquistas, tristezas, decepções, frustrações, sonhos, desejos, segredos. Eram confidentes. 

Apenas um pequeno grande detalhe os separava. Enquanto que para ela ele era um irmão entregue pelo destino, ela era o completo, perdido e desesperado amor de sua vida. Ele colecionava seus sorrisos, como um fotógrafo. Mapeava seu corpo, cada canto, cada imperfeição, cada sinal, feito um cartógrafo. Desenhava seus contornos com dedicação e paciência. Ela era sua religião, seu templo, seu destino, seu horizonte. Sua doença sem cura.

Ele sabia os seus cheiros, suas roupas, seus trejeitos, manias, seus sabores preferidos. Era dono de cada sorriso, cada lágrima de que conseguia lembrar. Ela era seu livro, sua música, sua arte, sua profissão. Sua especialização.

Consolava-a, com paciência, todas as vezes que seu coração era partido em pedaços. Mais, ajudava-a a colá-los todas as vezes. Conhecia todos os seus códigos, suas senhas. O que funcionava, o que não funcionava com ela. E ria, um riso largo, ao testemunhar os passos em falso dos inúmeros pretendentes que tentavam conquistá-la em vão. Eles faziam tudo errado. Ela também. Sofria e ele acabava sofrendo também porque a coisa que ele mais detestava na vida era vê-la chorar.

Aquele álbum de fotos mentais. Sua coleção particular, seu mundo secreto. Aquelas milhares de fotos que ele folheava insistentemente. O dia em que se abraçaram sob um mesmo guarda-chuva. Sua respiração ofegante. A vez em que ela o puxou pela mão, ao atravessarem a rua. O cheiro dela que inundava a sua roupa. Sua cabeça, sobre o seu ombro, quando viam filmes juntos. A sensação do cabelo dela em seu rosto. Aquele cabelo levemente ondulado, com cheiro de infância. Seu choro compulsivo com os filmes românticos. O jeito de comer brigadeiro, feito criança, sem receio de lambuzar cabeça, tronco e membros.

Quando dividiam alguma bebida e ele fazia questão de provar onde ela havia deixado a marca de sua boca. Aquela centena de beijos perdidos. Ele tocava onde ela havia tocado, pisava onde ela havia pisado, feito um fantasma. Gostava de visitar seus lugares preferidos, mesmo só, porque a via em todos os cantos que olhava. Sua amiga, sua senhora. Ele era o barco, ela o vento.

A primeira vez que a viu maquiada. A primeira vez que a viu num vestido de baile. Seu cabelo comprido, feito o de uma princesa. Seu cabelo solto no vento, parecendo ter vida própria, cobrindo seu rosto das formas mais encantadoras. Seu cabelo curtinho, rebelde. Seu cabelo preto, castanho, vermelho, amarelo.

Sua adorável inconsistência. Seus sapatos jogados sobre o tapete da sua casa. As coisas que ela perdia e ele achava. As camisas que ela pegava emprestado. E não devolvia. O primeiro beijo escorregado, quando por muito pouco seus lábios não se encontraram. Sua alegria contagiante com as coisas mais banais. Sua mania de chorar com as coisas mais banais.

Ela era linda, ela era perfeita, sua garota, sua menina urbana. Seu sonho acordado. Inacabado. Mas ela não tinha olhos para ele. Ele, o ladrão de momentos, que tinha de se contentar com os fragmentos deixados pelo caminho. Porque ele não tinha morada em seus olhos. Ele era fugaz, feito paisagem na janela do trem. Ele era levado junto, nunca era o ponto de chegada.

No dia do seu casamento, ela estava linda como nunca. Uma rainha sem coroa, caminhando em passos flutuantes, para aquele altar que, para ele, tinha a dimensão do infinito. Aqueles passos lentos, calculados, para cada vez mais longe. E era como se ela desaparecesse na linha do horizonte. No seu horizonte. Ela sorria, feliz, aquele brilho inconfundível no olhar que as pessoas ostentam quando acreditam que será para sempre. E ele estava lá, seu padrinho ilustre, acompanhado apenas por um botão de rosa na lapela e a mais sincera lágrima entre todas no mundo. 

"Você deve estar tão feliz", sussurravam em seu ouvido. Aquelas pessoas sorridentes.

Ele a observava de longe, um sorriso de canto de boca. Desconversava.

"Estou dizendo adeus".

quinta-feira, 12 de abril de 2012

segunda-feira, 9 de abril de 2012

PARA VER E OUVIR: BILL WITHERS ("AIN'T NO SUNSHINE")

ILUSTRANDO

José de Togores - Desnudos en la playa

sábado, 7 de abril de 2012

VOVÓ E A RAINHA

Desde que era criança, a minha vó tinha o hábito curioso de falar sozinha. Nada demais, "coisa da idade", minha mãe dizia. Curioso, eu perguntava com quem ela falava; ao que ela respondia, aquele sorriso largo, iluminado, que "falava com as flores, os pássaros, o vento, os objetos inanimados, as pessoas que já não estavam mais entre nós". E ria, ria alto, e nos abraçávamos. 

Posso dizer que tive a avó que todos desejariam ter. Uma avó que parecia ter sido escrita como um personagem de história infantil. Os cabelos ondulados, presos à cabeça, os óculos pequeninos e redondos, como uma bibliotecária. Aquele perfume adocicado, o toque leve, a voz quase sussurrada, aquele sotaque engraçado, de quem havia fugido da Alemanha com a roupa do corpo e um diamante no estômago. 

Aquela presença flutuante. Bolos e biscoitos assados quando voltávamos das brincadeiras juvenis. Os natais mais iluminados, os remédios caseiros, os presentes que nem sabíamos que queríamos, os banhos de piscina, as férias de verão mais inesquecíveis. A minha vó, sozinha, é responsável pela quase totalidade das lembranças felizes da minha infância. 

Minha queridinha, minha amiga, minha estrela.

Perdemos meu avô muito cedo, de modo que não tenho muitas recordações dele. Desde que consigo me lembrar, era apenas a minha vó, sozinha naquela casa cheia de quartos onde brincávamos de nos esconder. Aquele ser iluminado ao redor do qual orbitávamos, feito planetas carentes. Aquele sistema solar movido exclusivamente pelo amor de uma mulher que tinha na união da sua família o único objetivo da sua vida. Sua alegria era nos ver felizes. Sua desolação era compartilhar nossas tristezas. Não importasse a vitória, "você mereceu", ela nos dizia. Não importasse a decepção, "isso vai passar", ela nos dizia.

Não houve muito tempo para despedidas, quando vovó começou a adoecer. Subitamente, a senilidade a sequestrou e, por segundos fugazes, ela voltava para nós. Mas, na grande parte do tempo, ela já não se lembrava mais de mim, de nenhum de nós, e isso era devastador. Porque era como se já não a tivéssemos mais com a gente; apenas aquela presença rarefeita, aqueles olhos aguados, distantes, aquelas palavras desconexas, os papeis trocados, os nomes confundidos, a linha do tempo retorcida. 

Não havia mais bolos, nem abraços.

Nos últimos dias da sua vida, nos revezávamos na sua casa. Todos sabíamos que eram os seus últimos momentos, não havia como negar. Vovó começava a partir, feito estrela cadente. E era como se ela estivesse desaparecendo. Aquela luz da tarde cobrindo os seus olhos distantes, o horizonte vazio, ouvindo-nos sem nos escutar. 

No último dia que a vi, uma terça-feira chuvosa, como são os dias de despedidas, vovó balbuciava e ria feito criança. Sozinha, em sua cadeira de leitura, tomava chá e falava alemão sem parar. Falava lindamente, como nos bons tempos. E fico feliz que minha última recordação dela seja justamente esta. Vovó, sentada na poltrona, seu robe de seda, uma xícara de chá em mãos, falando alemão, ainda que estivesse falando sozinha. Aquelas palavras fortes, arranhadas, que eu não fazia ideia o que significavam. Mas ela sorria, demonstrava surpresa, felicidade. "Com quem você tanto conversa, vovó?", eu perguntei. E ela então me disse que conversava com Madame la Dauphine, Marie Antoinette. Ou Maria Antonia, como ela parecia preferir.

Que motivo no mundo, naquele momento, eu poderia ter para repreendê-la? Vovó estava conversando com a Rainha da França, não me cabia interromper a conversa. Então fiquei ali, olhando-a por horas, as lágrimas inconvenientes vindo nublar os meus olhos. Vovó, por longas horas, entretida naquela conversa incompreensível, movida pelo seu cérebro há tanto tempo perdido. 

Ela não acordou mais, na manhã seguinte. Foi embora em seus sonhos, como deve ser. Um a um nos despedimos. Aquele funeral longo, aquele mar de pessoas, aquela nossa avó tão querida. E até hoje me espanto como quão injusta a vida pode ser, porque a gravidade leva sempre os melhores primeiro. E sinto saudade de vovó até hoje, feito uma ferida aberta. 

* * * 

Imagine só, Yolande, que tive o mais peculiar dos sonhos essa noite. Conversava por horas com a mais simpática das senhoras, num alemão engraçado, devo dizer; ela vestia-se de maneira um tanto engraçada, também, e falava de coisas que não me eram muito compreensíveis, confesso. Mas tudo foi tão agradável e real.

Mas a dama de companhia estava entretida demais com sapatos, leques e fitas, para dar ouvidos à rainha. Aquela chuvosa manhã de terça-feira.

ILUSTRANDO

Andrzej Malinowski - Réussite

CLÁSSICO INSTANTÂNEO

Há algo de clássico instantâneo a respeito de "Drive". É um filme que vai envelhecer muito bem, sem sombra de dúvidas. Ryan Gosling dá um show, um silêncio eloquente difícil de se ver por aí. Essa análise, portanto, será exatamente como o filme. Direta, seca, silenciosa, premeditada, utilizando somente o necessário: "Drive" é imperdível.

ILUSTRANDO

Matisse - Mulher num casaco roxo

terça-feira, 3 de abril de 2012

ILUSTRANDO

As fotografias de Amy Hildebrand. Um pequeno grande detalhe: ela é cega desde o nascimento.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A FRÁGIL DAMA DE FERRO

"A Dama de Ferro" (The Iron Lady), filme de Phyllida Lloyd, é supreendente. Confesso que não tinha grandes expectativas e, ainda por cima, havia criado antipatia pelo fato de Meryl Streep ter levado o Oscar de melhor atriz este ano. Em poucos minutos, todos esses preconceitos foram ao chão. O filme é um lindo retrato de uma das mulheres mais importantes da história recente; um relato humano, honesto, que equilibra o poder e a absoluta fragilidade da Dama de Ferro, Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido. Sempre tive grande admiração por mulheres importantes, grandes líderes que conseguiram sobreviver ao universo de poder masculino e Thatcher sem dúvidas é uma destas mulheres. E a interpretação de Meryl Streep, na falta de um adjetivo melhor, é sublime e chegam a assustar as múltiplas caracterizações da atriz para viver a política em diferentes épocas, desde o começo de sua carreira. 

Meryl Streep demonstra, com muita facilidade, porque é a grande dama do cinema

O filme é contado a partir da velhice de Thatcher. A Dama de Ferro é agora uma velhinha de saúde frágil, senil, vivendo sob cuidados intensos em seu apartamento em Londres. Ela sofre alucinações constantes, em que ainda conversa com seu falecido marido e, em muitos momentos, perde a noção da realidade achando-se ainda à frente das decisões políticas da Grã-Bretanha. Caminhando em sua casa, aquele silêncio, aquela solidão, ela vai encontrando objetos que remontam ao passado de poder: a invasão das Malvinas, as crises políticas, o enfraquecimento da economia, greves, protestos e as difíceis decisões que colocaram o país nos eixos: uma vida dedicada ao serviço público. "Não me agradam os sentimentos. É das ideias que gosto", diz ela ao seu médico em um momento.
A maquiagem é um absurdo e ajuda Streep na caracterização inacrediável de Thatcher

Com  muita delicadeza, respeito e admiração, o filme apresenta o contraponto entre uma mulher que sempre transpirou autoridade e uma mulher, no ocaso de sua vida, lidando com os problemas reais da velhice. A jovem obstinada e que não se deixava intimidar, a mãe ausente, a esposa autoritária, a Dama de Ferro dos ingleses, senhora das decisões impossíveis. Neste aspecto, brilham a direção elegante, a maquiagem fenomenal e a atuação comovente de Meryl Streep que consegue comunicar, com olhares, trejeitos, gestos o cansaço de uma mulher que parece ter carregado o peso do mundo sobre os ombros. "O pensamento vira uma palavra. A palavra vira uma ação. A ação se torna hábito. O hábito faz o caráter. O caráter forma um destino". Assim Thatcher conduziu sua vida, suas escolhas, sua história. Decisões que são criticadas no presente mas que são celebradas por gerações no futuro. Lindo, lindo filme.

A IMPORTÂNCIA DOS PÉS


Os teus pés
Pablo Neruda

Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.
Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam 
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram voo
a larga boca de fruta
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água
até me encontrarem.

domingo, 1 de abril de 2012

O ASTRONAUTA

Havia anos ele navegava o infinito oceano especial. Navegava, negava. Um pouco dos dois. Aquela solidão, aquele silêncio ensurdecedor. O sol despontando no horizonte árido, sério, cegando-o deliciosamente por alguns instantes. O nada preenchendo cada canto, cada direção em que ele olhasse. Aquele vazio absoluto em que ele flutuava num balé caótico, sem começo nem fim. Sem coreografia.

Apertava seus braços em torno do peito, com frio. Falso beduíno.
Abraçava-se.

Até pousar, novamente, no planeta que orbitava incansavelmente.
Aquela gravidade que o aprisionava.
Aquele pássaro sem rumo.

Às vezes ele não entendia mais o que fazia ali, após tanto tempo. Não sabia mais quem ele era, qual era o seu propósito. Sua missão. Ele sentia uma saudade. De quê exatamente? Não sabia explicar. Havia algo, mais forte que ele, que o impedia de partir. 

E ele ficava então submetido, seduzido, pela gravidade. Derrotado pela atmosfera. Aquele planeta em que habitava sozinho. O último homem. Seu dono, seu senhor absoluto. O único homem naquele horizonte solitário que ele contemplava todos os dias. Norte e Sul. Leste e Oeste. 

"Eu sou senhor deste silêncio", pensava. Mas tudo que ele mais desejava era vencer a gravidade, romper a atmosfera, voltar para casa. Mas ele não lembrava mais onde ficava a sua casa. Ele não sabia como partir. Ele não conseguia partir. Nem para que casa voltar.

Então ele simplesmente permanecia. Caminhava pelos cânions vermelhos, que o escondiam sob uma penumbra misteriosa, contemplando o céu ao seu redor; brincando de gritar, feito criança.

Mas ninguém o ouvia. "Olá!", ele exclamava a plenos pulmões. "Olá!". Sempre sem retorno. Era o seu artifício para não esquecer da sua voz, como já começava a esquecer do seu rosto. "E se eu esquecer de mim mesmo?", aterrorizava-se, "desaparecerei?". E, no vai e vem do vento, que cobria o seu corpo com aquela mistura de areia e poeira estelar, ele temia, mais que tudo no mundo, enlouquecer.

"Olá!", ele gritava. "Olá!".

Até que, para sua avassaladora surpresa, ele sentiu um toque delicado nos seus ombros. Algo familiar.

Acordou com um susto, o coração disparado, a garganta seca.

Olhou ao redor. Ele ainda estava lá. Queria voltar a sonhar.

PARA VER E OUVIR: SARA BAREILLES ("GRAVITY")


Acho que ando pensando demais na gravidade.

ILUSTRANDO

Pop Art - Astronaut Lion