domingo, 15 de janeiro de 2012

O VENTRÍLOCO



"A lógica o levará de A a B. A imaginação o levará a qualquer lugar" (A. Einstein).


Segunda-feira, 7 de agosto.

À noite, o rádio relógio marcava dia e hora em números vermelhos fortes, brilhantes como sinal de trânsito. Deitou-se, exausto, em sua cama sem nem ao menos olhar o relógio. Não deviam ser nem 10 horas da noite, ainda. Havia um peso, que o puxava para o meio dos lençóis, como uma canção de sereia, como algo hipnótico e irresistível. Escovou os dentes com olhos meio abertos e despencou num abismo de sono.

O sol batia forte em seu rosto, quando amanhecia o dia seguinte. Algum barulho na rua evidenciava que a cidade também já havia despertado. Sentiu fome, muita fome, como se o seu estômago estivesse se contorcendo. Sentiu desespero por uma xícara de café e um cigarro. Providenciou tudo, de forma improvisada sobre a pequena mesa na cozinha. Uma caneca fumegante, torradas, geléia, queijo e um cigarro preguiçoso entre os dedos compondo um caótico festival de aromas, sabores e sensações. Mas era tudo o que ele precisava.

Encostou-se na parede, e sentiu uma pontada de desconforto na nuca, como se estivesse machucado. Viu que deixou uma pequena mancha de sangue na parede e se deu conta que havia um corte atrás de sua cabeça. Tocou-se, incrédulo, e constatou. Estava ferido. Nada grave, como um corte de barba mal posicionado. Depositou a louça na pia e voltou para o quarto, paralizado por segundos na porta. Imóvel, como uma estátua. O rádio-relógio parecia lhe pregar uma peça.

Segunda-feira, 14 de agosto.

"Meu Deus, eu dormi por uma semana".

Desesperado, correu para o seu celular. Fato. Havia se passado uma semana. Dezenas de números estranhos, em horários estranhos, confundiram ainda mais sua busca por entendimentos. Tocou seu rosto, liso, sem um fio de barba como se tivesse barbeado ainda naquela manhã. Cheirou-se. Ainda havia aroma de sabão em suas juntas. Tocou-se, de cima a baixo. Olhou-se no espelho. Usava roupas limpas, cueca limpa, meias limpas. Ele era, sem exageiro, a cópia fiel da última noite de que se lembrava. Com exceção de um misterioso corte em sua cabeça, um celular que aparentemente fez ligações por conta própria e um calendário que o roubou sete dias de vida.

Sentou-se no chão. Olhou os cantos do seu apartamento como se não reconhecesse nada. Mas estava tudo ali, como sempre. Até que seus olhos pararam num objeto estranho. Uma pequena caixa de mogno, sobre a mesa de café, no centro da sala.

"Abra-me".

O coração invadiu sua boca, galopante. Estendeu a mão trêmula e, com gestos desajeitados, abriu a caixa, deixando cair seus conteúdos no chão. Uma chave que não reconhecia e um pequeno cartão com um punhado de coisas escritas. Sua caligrafia. Um endereço desconhecido, seguido de uma instrução misteriosa.

"64, Rua Charles. Para onde aponta Miguel".


Vestiu-se, rapidamente, sem muito critério. Camisa, jaqueta, tênis - nem sabia se havia escolhido os pares iguais. Com a chave do carro na mão, correu as escadas do prédio e seguiu em velocidade para o endereço. Um galpão abandonado, no meio do nada. Diante de um portão imenso, enferrujado, ergueu a chave, encaixando-a perfeitamente na fechadura. A porta rangeu, como se não fosse aberta a centenas de anos. Sentiu um vapor úmido, de poeira e coisa abandonada, e seguiu em frente.

Buracos, dezenas de buracos no teto, criavam um ambiente espectral, como uma catedral fantasmagórica. O lugar estava abandonado, vazio, cortado por centenas de raios de luz de cima a baixo, em todas as direções, como uma cama de gato. Caminhou, lentamente, até parar por completo diante da parede ao final do galpão.

Ali, um grande afresco improvisado. O arcanjo Miguel, de lança em punho, subjugando o mal. Lembrou das instruções e, com olhos ávidos, seguiu a direção da lança do anjo que, de fato, apontava para um ponto no chão. Aproximou-se e encontrou um gravador.

"Aperte-me".


E, pelo que pareceu uma eternidade, ouviu, incrédulo, o som de sua própria voz.

"Se você está ouvindo esta gravação é porque nós conseguimos. Deu certo. Era impossível, mas deu certo. Você está aqui, você está ouvindo essa mensagem. Mas agora é hora de voltar. Brincamos demais com essa coisa. Sabemos que funciona. Desculpe-me pela cabeça".

Sentiu um golpe forte na cabeça, que o fez desabar no chão sujo. Antes de os seus olhos desligarem, pode perceber as imperfeições no assoalho sob seu rosto, já misturado numa selva de poeira, terra e restos de jornais.

Abriu os olhos, como num susto. O coração disparado. O teto do quarto parecendo girar. Sentou-se na beira da cama determinado. Sabia exatamente o que fazer.

Foi até a rua, para uma errância que não lhe tomou mais que uma hora. Posicionou um objeto na sala e caminhou em direção a sala, parando brevemente diante da porta do quarto. Olhou a pessoa dormindo ali, em paz. Talvez não houvesse mais volta, então. Como o que é feito e não pode ser desfeito. Desligou a luz. Trancou a porta e foi embora.

E desapareceu naquela manhã de 8 de agosto, terça-feira.

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