quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A CONFISSÃO

A minha mãe morreu quando eu não havia completado nem cinco anos de idade, de maneira que foi o meu pai quem me criou. Ele era um homem simples, engraçado, de hábitos comuns. Não era muito dado às artes, nem às leituras. Gostava de corridas de carros e tudo mais que fosse relacionado a automóveis. Era esse o grande prazer do meu pai.

Éramos amigos. E não havia como ter sido diferente. Tínhamos costumes, rituais, hábitos só nossos. O principal deles era consertar um velho Maverick que o meu pai tinha desde quando era jovem e que havia se transformado num projeto de vida. Reformar o velho Ford era o epicentro de sua existência.

Todos os dias, quando eu voltava da escola, corria para a garagem de casa, onde já encontrava o meu pai deitado no chão, coberto de graxa, fazendo barulho e, eventualmente, xingando alguma bobagem por conta de parafusos e cabos que pareciam ter vida própria. Ele era um homem forte, habilidoso e dedicado. Só não tinha o dinheiro necessário para consertar aquele carro na velocidade que desejava. Seu sonho era rodar com o velho maverick dourado pela cidade, exibindo as listras de corrida com orgulho; aquele carro que haveria renascido de suas mãos. "Meu tesourinho, meu filho, meu tesourinho".

Mas isso nunca aconteceu.

Aos quinze anos, eu consegui o meu primeiro trabalho num frigorífico, o que me rendia mãos inchadas ao final do dia e um salário rizível ao final do mês que eu empregava quase inteiramente no conserto do carro. Meu pai relutou muito no começo, mas foi se acostumando com a ideia. Começamos a dar ritmo à empreitada. O Maverick estava renascendo.

Sentados juntos, no chão da garagem, dávamos risadas, refletíamos sobre banalidades, bebíamos cervejas inocentes e o meu pai contava histórias sobre mamãe, que eu praticamente não havia conhecido. Uma doença a havia levado cedo e meu pai nunca se recuperou dessa perda. Não havia se casado novamente e nem manifestava qualquer desejo sobre isso. Ele era um homem solitário, mas feliz. E gostava de se dedicar ao carro.

Quando eu completei 20 anos, saí da cidade para estudar. Sei que o meu pai não gostou disso mas também não demonstrou resistência. Ele estava orgulhoso e triste. Meu pai não tinha muito jeito em lidar com a saudade, e hoje lembro daqueles dias com arrependimento. Eu não deveria ter deixado ele para trás. A partir dali, eu o veria cada vez menos até perdê-lo por completo.

O Maverick havia ficado de lado, esquecido na garagem. Não que meu pai não quisesse mais consertá-lo. Ele queria, acho que só lhe faltava ânimo. Todas as vezes que voltava para casa eu ía até a garagem, tirava a lona que cobria o carro e tentava estimulá-lo a vir trabalhar. Mas ele não queria. Pelo menos, não queria fazê-lo sozinho, algo que ele deixava escapulir vez ou outra, dizendo "quando você estava aqui, a gente fazia mais rápido".

Repentinamente, meu pai decidiu se casar. Surgiu uma ruiva de meia idade em sua vida e, por medo da velhice, da solidão, ou ambos, em poucos meses os dois já estavam morando juntos em nossa casa. Eu nunca gostei daquela mulher. Não por ciúmes ou qualquer coisa assim, mas porque eu sabia que o meu pai estaria melhor sozinho. Ela era uma mulher implicante, impaciente, intransigente e que, naquela altura da vida, queria mudar todos os hábitos do meu pai. Mas ele se dizia feliz e eu respeitava, contra a minha vontade. Por ele, tolerava aquela mulher quando voltava para casa, algo que, com o tempo, foi ficando cada vez mais raro. Por ela, por causa daquela ruiva de meia idade, de hábitos suspeitos e olhos dissimulados, eu passei a ver meu pai cada vez menos. Algo de que igualmente me arrependo.

Um belo dia, ao voltar para casa, vi que o Maverick não estava mais lá. Havia sido vendido. A mulher havia exigido, já que precisava do espaço que "o carro velho" ocupava. Fiquei surpreso, furioso, não apenas pela perda do carro mas por meu pai ter aceitado aquilo. Aquele carro era nosso, nossa história, nossa vida, o fio condutor de praticamente toda a minha juventude ao lado do meu pai. E, por causa daquela mulher, o carro havia sido vendido. Pior, durante os dez anos que se passaram, ela nunca usou o espaço para nada. Ficou para sempre aquele vazio, aquela ausência, do carro que ela havia obrigado meu pai a vender. Procurei o Maverick, tentei comprá-lo de volta, mas o novo dono não aceitou nenhuma de minhas ofertas.

Anos depois, num dos dias mais tristes de minha vida, descobri que meu pai estava padecendo de Alzheimer. Lembro de me esconder no banheiro de casa, para chorar quieto, sem que ele percebesse. Nem ela. Principalmente ela. Infelzimente, a doença o pegou de assalto e a progressão foi vertiginosa. Cada vez que voltava para casa, encontrava o meu pai mais distante, mais ausente. Mas o que mais me entristecia era ver seu abandono. Eu achava que aquela mulher cuidaria dele. Mas isso não acontecia. Quase nunca eu a encontrava em casa. Meu pai estava sempre sozinho, eventualmente na companhia de um enfermeiro ocasional. 

Ele estava sempre mal vestido, despenteado, com a barba por fazer, o quarto sujo. Eu o abraçava, longamente, afagando sua cabeça enquanto disfarçava os soluços que iam escalando a minha garganta. Ajudava-o a tomar banho, penteava seu cabelo, fazia sua barba, arrumava o quarto e sentávamos juntos na cozinha para comer e conversar. Tentar conversar. Meu pai me olhava, aquele olhar aguado, perdido, que já nem me reconhecia.

Então eu o levava de volta para a sala, onde tentava fazê-lo assistir a alguma fita com as corridas que ele gostava; mas era em vão. Ele nem percebia ou pelo menos não demonstrava. Ficávamos horas na sala até adormecermos. Eu fazia café e ocasionalmente meu pai lembrava de algo, mas esses momentos eram raros e fugazes. Eu segurava em sua mão, do outro lado da mesa, vendo o café dele esfriar lentamente, intocado. O sol ía se pondo vagaroso na nossa janela, sussurrando a lembrança de dias mais felizes.

Na última vez em que vi meu pai, chovia torrencialmente. Eu o abracei, na soleira da porta, e ele me abraçou de volta, pela primeira vez em muito tempo. Senti o vigor dos seus braços ao meu redor e, por breves instantes, ele estava de volta. A mulher nos olhava, sentada na sala, aquele rosto de megera. Até que meu pai sussurrou baixinho em meu ouvido:

"Foi-se embora o meu tesourinho, meu filho, foi-se embora o meu tesourinho".

Sorri, disfarçando minha tristeza sob a chuva. Fiz um último afago em meu pai e voltei para o carro, onde explodi num choro longo e desesperado. Um choro represado, de impotência, de infelicidade, de culpa, de arrependimento. De vontade de voltar no tempo.

Meu pai morreu dois dias depois daquele dia.

No retorno de seu funeral, a viúva me pediu uma carona de volta para casa. Ao celular, conversando com alguma outra velha trágica, ela não parecia se importar muito com os acontecimentos daquele dia. Apertei o couro do volante com uma força que me machucou os dedos. O couro rangia como pele de pescoço. Com os olhos fixos na estrada, voltei para a casa da minha infância, onde olhei a mulher entrar lentamente, fechando a porta atrás de si. Naquela casa que não era dela.

E, confesso, foi naquele momento que fiz algo de que jamais me arrependerei.

Com o dinheiro da casa vendida, consegui enfim comprar o carro de volta. O carro que hoje é meu e que desfilo orgulhoso na cidade. Todos os anos, sem exceção, visito meu pai, para lhe contar sobre minha vida, de meus filhos, dos meus sonhos. E me despeço, trocando as flores da sua lápide, sempre da mesma forma. De um jeito que me dá a certeza que, em algum lugar, ele está sorrindo para mim. Aquele seu riso largo, de quem dorme sem culpas. Aquele sorriso que eu nunca esquecerei.

"O nosso tesourinho voltou, papai. O nosso tesourinho voltou".

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