No dia em que, enfim, ele percebeu que tudo havia chegado ao fim - a um fim verdadeiro, definitivo - ele sentiu desejo de contemplar o mar. Sentia-se aprisionado na terra sem lados, melhor, sem começo e fim. Ele havia crescido com o entendimento de onde acaba a terra e começa o mar e percebeu a importância deste referencial geográfico.
Gostaria desesperadamente de saber voar de avião. Como Saint-Exupéry. Como o príncipe sem planeta, que precisa sequestrar um punhado de pássaros para ir embora, não importa muito para onde. Ele a havia amado perdidamente por longos anos, cheios de dias, semanas e horas. Cheios de páginas, e fotos, de presentes e desejos. Como em filme, como em música, como em livro. Mas percebeu - tardiamente - que caminhara uma estrada solitária que, inevitavelmente, chegaria no beco, no muro gigantesco, decorado com uma enorme placa que brilhava feito néon:
"Volte por onde veio".
Ele aprendera a amar cada detalhe, segundo e centímetro de sua alma, corpo, jeito, gênio. Cada prenda, cada defeito, cada loucura e ato de brilhantismo. Ele a admirava como quem contempla uma musa, como quem admira um quadro, e contava as horas dos seus dias desimportantes para correr para os seus braços à noite. Era ela, e somente ela, quem importava. Como se fossem as duas únicas pessoas no planeta. Sua amiga, sua amante, sua senhora inquestionável.
Quando tudo aquilo se desfez, porém, ele se espantou com a fragilidade daquele tecido que ele julgava ser constituído de elos de aço, feito pele de rinoceronte, feito cota de malha medieval. Um material que resiste a golpes de espada, que resiste ao tempo, que protege na guerra. Não. Engano. A muralha de néon demonstrou que o tecido era, em verdade, papel molhado, que se desfaz diante dos olhos. Como vento, como sombra, poeira, ruína. O castelo se transformando em escombros, feito mágica.
"Eu habitava esse castelo", pensou. "Esse castelo tomado pela grama".
No ocaso daquela história, com olhos atentos ao movimento das águas quebrando na areia, ele refletiu sobre a fina linha que separa o amor e o ódio. Não como dizem os clichês. Ele refletiu, mesmo, honestamente. A paixão e o ressentimento. A confiança e o arrependimento. E não havia mais nada ali. O quadro fora despintado, a foto destirada, o texto desescrito. Sentiu vontade de abrir as caixas de lembraças e espalhá-las pelo ar, feito cinzas mortuárias. Feito ritual.
Porque ele percebeu que odiava tudo a respeito daquela mulher. Seus hábitos, suas roupas, suas músicas, seus vícios. Sua presença. Ele sentia raiva de tudo. E eis que um mundo de coisas, sensações e lembranças desapareceu como fumaça. Como mágica. Feito nuvem que abre caminho para os raios de sol. Feito vento de liberdade. Feito soldado que rompe os cadeados dos campos de concentração.
Sentia-se como o prisioneiro tímido, dos documentários em preto e branco. Um fiapo de gente, escorando-se nas paredes, sem saber se pode realmente prosseguir. Feito bicho que não sabe que a gaiola está aberta. Até que uma voz de conforto diz que está tudo bem. E então o prisioneiro não sabe se ri ou se chora. Porque é difícil compreender plenamente o fim da noite quando se julga que ela será eterna.
Sentiu seu corpo, seu rosto invadido por aquelas linhas mornas que se desenhavam de cima a baixo, das nuvens brancas, infantis, que pareciam carneiros; como se Deus estivesse querendo parlamentar algum segredo. Aquele vento de tarde mexendo com as folhas das árvores, como música. Pássaros voando ao seu redor; e, não fossem os automóveis passando em velocidade não muito longe dali, ele teria certeza de que tudo aquilo era um sonho. Um sonho bom. De reflexão, de resolução.
Levantou-se, sem pressa. A areia pendendo preguiçosa de sua calça, caindo nos seus pés descalços. Limpou-se. Foi o que ele fez naquele dia. Naquele dia em que, enfim, ele percebera que tudo havia chegado ao fim. Limpou-se.
E se descobriu feliz. Obscenamente feliz.
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