domingo, 24 de outubro de 2010

O INOMINÁVEL SEGREDO DE GASPAR SOLANO

Gaspar odiava seu trabalho, sua vida, mas especialmente, o plantão da quinta-feira. Odiava. Todos odiavam. Era o notório "plantão solitário". Ninguém, absolutamente ninguém, ficava no Instituto Médico Legal a não ser pelo solitário plantonista. Nem mesmo o idoso segurança, que justamente neste dia tirava a sua folga semanal. O plantão da quinta-feira era uma longa noite de silêncios sepulcrais e barulhos eventuais que, misteriosos, faziam gelar a espinha.

Nunca havia acontecido um dia sequer de ação no plantão da quinta-feira. Nada de atropelamentos na madrugada; corpos baleados, esfaqueados, indigentes perdidos. Nada. Era como se houvesse um acordo com os astros. Na quinta-feira, o solitário plantonista não teria direito a qualquer diversão que não a sua própria companhia, café velho, água quente e uma pequena televisão cheia de chiados e fantasmas.

Gaspar chegou para o plantão e encontrou todos, de maletas e bolsas prontas, despedindo-se com contagiante satisfação. Todos saiam, ele entrava. O velho prédio colonial, de paredes carcomidas, chão de assoalhos soltos e janelas embaçadas tinha um aspecto de mausoléu. Um ouvido mais atento - ou atormentado - juraria que os corredores respiravam, calmamente, por entre as sombras. Curtas passadas de vento davam a impressão que transeuntes anônimos passeavam por ali. Dobradiças rangendo, cortinas puídas dançando, estalos na tubulação velha e um grande salão de armários e geladeiras repletas de corpos. Era preciso muito sangue frio para aguentar o plantão da quinta-feira e Gaspar ainda tinha suas dúvidas se tinha condições para isso. O aluguel ao final do mês, porém, não deixava muita opção.

Chovia forte. Trovões eventuais e um vento mais forte espancando as janelas velhas faziam Gaspar saltar da cadeira como se tivessem jogado água quente em seu colo. Murmurava um punhado de palavrões feios e praguejava contra o emprego como quem faz uma oração. 

A única atividade oficial da noite já havia sido feita: catalogar a última entrada do expediente, um homem de meia idade, cabelos brancos, sem marcas no corpo, sem documentos, bem vestido, encontrado morto na calçada por volta das 23h. Uma comprida etiqueta pendia do dedão azulado, como um mórbido colar. Gaspar deu um pequeno tapa na etiqueta, que balançou rapidamente, enquanto fechava o armário da câmara fria com desinteresse. O fecho estava quebrado e era preciso dar uma pancada forte, que parecia reverberar o edifício inteiro. Não havia nenhuma outra gaveta livre e Gaspar teve a certeza de que a porta não estava devidamente fechada. No dia seguinte, possivelmente, ninguém iria suportar o cheiro e, quem sabe, haveria algumas horas livres longe daquele lugar esquisito e fétido onde um punhado de pessoas infelizes ganhavam a vida.

Desceu, sem pressa, para a pequena sala na recepção, no andar inferior. Encostou-se na cadeira, pôs os pés descalsos sobre a mesa, e em poucos instantes já pestanejava diante de um diálogo monótono num destes filmes da madrugada que só damos algum valor em noites insones. Nem percebeu quando já dormia profundamente.

Barulho. Alto. Forte. Dezenas de objetos derramados no chão.

Gaspar levantou de um salto da cadeira, ainda confuso, sem saber separar sonho e realidade. Praguejou por conta do susto e pôs a mão no lado esquerdo do peito, que metralhava num compasso frenético e embriagado de adrenalina. Não havia nenhuma explicação para aquele barulho no piso superior, como se crianças estivessem brincando num quarto pequeno. E Gaspar sentiu medo. Muito medo. Enxugando um punhado de lágrimas curtas que, surpreendentemente, nasciam no canto dos olhos, teve a certeza, enfim, de que não queria ficar mais naquele lugar. Engoliu seco. Pegou uma lanterna que engasgava e uma vassoura.

E subiu, passo ante passo, pés descalços sobre o assoalho frio, como se houvesse uma gravidade diferente na escada. Ou melhor, como se não quisesse completar o percurso. Do final da escada, avistou uma luz ao final do corredor. De onde guardavam os cadáveres. Sentiu o coração acelerar em sua boca. A saliva desapareceu. As mãos tremiam e orações mal fundamentadas não ajudavam em nada em seu espírito que misturava pavor e curiosidade. Seguiu em frente, a passos curtos, como se a gravidade elevada da escada estivesse contagiando o corredor. Mais barulho de objetos derrubados. Queria e não queria descobrir a origem da luz.

Ao chegar na porta, posicionou o seu corpo como uma criança que tenta espiar aquilo que os adultos não a permitem ver. Esgueirou-se e, ao posicionar o olho esquerdo dentro do cômodo, avistou um homem nu, estirado no chão, ao pé de uma mesa virada, com diversos instrumentos espalhados no chão. O homem balbuciava alguma coisa e, ao ver a presença trêmula de Gaspar à porta, estendeu a mão azulada como que em súplica. "Me ajude...".

Foi quando Gaspar percebeu que aquele era o último homem da noite, que havia sido encontrado logo no começo da madrugada e dado como morto. Possível parada cardíaca. Praguejou novamente a incompetência decorrente do desespero em se encerrar o expediente. Ele havia trancado um homem vivo, entre os mortos, e para o seu azar ou sua sorte, o fecho quebrado permitiu um último suspiro de liberdade aquele homem nu, sem nenhuma dignidade, deitado no chão não como homem, mas como algo.

Gaspar esqueceu do medo, do pavor, do susto. Havia se tornado um homem prático naquele instante. Correu ao encontro do homem, segurou o seu braço e o ajudou até uma cadeira. O corpo gelado tinha uma textura diferente ao toque; parecia realmente segurar um pedaço de carne num frigorífico. O homem continuava balbuciando coisas sem sentido e sem responder a nenhuma de suas perguntas práticas. "Nome?", "família?", "o que houve?". Enrolado num lençol amarelado, o homem voltava à razão quando Gaspar percebeu sinais de embriaguez. 

Num lapso curto de pensamentos encadeados e concretos, o homem explicou o pedido urgente de ajuda. Falou sobre uma intriga confusa de homens e dinheiro que levou Gaspar a pensar em filmes sobre a máfia, enquanto o homem falava sem parar à sua frente. Mas voltou a atenção rapidamente ao narrador quando ouviu as palavras "carro, mala, duzentos mil dólares, chave, escondida". O homem estava pedindo auxílio para recuperar o dinheiro guardado num carro na rua e fugir. Naturalmente, Gaspar seria remunerado por sua ajuda providencial. 

Breve silêncio. Os dois homens se entreolhavam com a chuva espancando a janela atrás deles. Gaspar olhou-o, com olhos de gato, olhos amarelados, de cálculo e pensamentos distantes, assentindo vagarosamente. Apontou um avental para o homem, jogado no chão ao lado dos refrigeradores. "Para você cobrir o corpo". E caminhou, lentamente, para a vassoura encostada na porta. Segurou-a como quem empunha um instrumento de esporte enquanto o homem se curvava com dificuldade, expondo ainda mais a sua frágil nudez. 

* * *

Não havia jeito, a porta da gaveta só fechava com um solavanco forte, que fazia o prédio tremer. Último cadáver da noite. Possível parada cardíaca. Sem documentos.

Na manhã seguinte, Gaspar não foi mais trabalhar.

Um comentário:

ione gonzalez disse...

Gostei muito...senti um gostinho do mestre Stephen King...finalização moderna e inesperada..muito bom.