sábado, 20 de fevereiro de 2010

TRANSLUCIDEZ

Ela levantou cedo, como fazia há setenta e nove anos. Abriu vagarosamente a janela e observou a rua por alguns instantes. O dia ainda tinha cor de baunilha e poucas pessoas e carros já podiam ser vistos. Respirou fundo, enchendo os pulmões daquela seiva transparente e sentiu-se viva, cheia de esperança. Tinha certeza de que aquele dia seria especial. Não só porque era o seu aniversário, mas porque estava confiante de que a sua vida seria melhor a cada novo dia. Não tinha mais medos. Não se sentia impotente. De pé, no assoalho daquele quarto em que havia vivido por quase meio século, tomou-se de pensamentos inebriantes. 

“Sou jovem. Tenho tudo ainda pela frente. Sou imortal”.

Lentamente dirigiu-se para o toalete. A camisola, amarelada, era arrastada pelo chão, evidenciando alguns velhos furos de traças e rasgando novos por entre as lascas de madeira no chão desgastado. Descalça de um pé, ela quase desfilava enquanto caminhava. 

“Hoje quero estar linda como uma estrela de cinema. Como Ingrid Bergman”.

Encostou a porta e se despiu vagarosamente. Os azulejos desbotados estavam cheios de rachaduras e limo. Não havia como disfarçar que aquela era uma casa muito antiga. Sentiu frio e procurou pelo outro pé dos seus chinelos, sem sucesso. Sentou-se e começou a pentear os cabelos, quase enamorada de si mesma, deslizando a escova de madeira pelos cabelos brancos e espessos. 

“100 escovadas à noite. E 100 pela manhã. É a minha fórmula secreta”.  

Foi até a pia e molhou os olhos, as bochechas, enxugando-se com uma pequenina toalha. Polia-se com o cuidado de quem limpa porcelana fina. Estendeu a mão e agarrou o frasco de perfume. Uma mistura de cheiros adocicados e cítricos, como laranja, limão e açúcar. Borrifou o pescoço e as mãos. Espalhou cuidadosamente por entre dedos, ombros e atrás das orelhas. 

“Hoje, no bonde, todos os homens só terão olhos para mim”.

Ela queria deixar o melhor para o final, quando chegava o momento de se olhar ao espelho. E tudo precisava estar perfeito. Toda a indústria, toda a ourivesaria, para então poder se encantar de si mesma por horas naquele banheiro cercado de espelhos cristalinos, que a embebedavam de felicidade. De costas e olhos fechados, armava a sua própria surpresa, como quem vai revelar algo sob uma cortina. Vagarosamente, virou seu corpo de frente para o espelho, abrindo os seus olhos sem pressa.

* * *

Sua filha não conseguia compreender aquela cena. Assustada, pensou em teatro grego, em dança contemporânea, em cinema mudo alemão. Olhou para a sua mãe, tão frágil e idosa, ensanguentada, suas mãos cobertas de cortes e estirada no chão como uma rainha deposta. Não sabia o que dizer. Instintivamente, projetou-se ao encontro do seu corpo, já frio e dormente. Tomou-a nos braços e imaginou que ela poderia ter sofrido um derrame ou um infarto. Os seus olhos eram duas pérolas transparentes e sem vida e seu rosto era uma imagem fantasmagórica. Nenhum músculo parecia responder. E ficou sentada no chão, com sua mãe no colo, cercada de estilhaços e fragmentos de espelhos por todos os cantos do banheiro. Um louco poderia jurar que ali havia chovido vidro. Sentiu sua mãe apertar seu pulso num último sopro de vida, tentando se aproximar de seu rosto, como se fosse lhe sussurrar algo.

“Jogue todos os espelhos fora, Angela. Suas mentiras são perigosas demais”.

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