quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O HOMEM QUE DESAPRENDEU A DORMIR

O que havia começado como mera insônia, destas que é até possível fazer piada a respeito, acabou se tornando um pesadelo real. Havia um mês, ele vinha dormindo cada vez pior, cada vez menos. Primeiro, um punhado de noites inquietas. Em seguida, seis horas de sono de má qualidade. Dias depois, cinco, quatro horas. Até, então, não pregar mais os olhos. Não conseguia. Ele havia desaprendido a dormir.

Ele tentava disfarçar o desespero de não conseguir dormir, enganando-se com algumas artimanhas pobres. Fingia bocejos casuais, vendava os olhos com uma máscara de feltro e dizia ocasionalmente, a si mesmo, do sono que sentia. Como se isso servisse para alguma coisa. E como se alguém o estivesse ouvindo.

Mas ele sabia que já não conseguia dormir e a visão do ponteiro do relógio encostando na meia-noite começava a lhe causar palpitação. Meia noite. Uma. Duas. Três. E lá estava ele, sentado no parapeito da janela, observando a cidade acordar para mais um dia. Seu café, frio desde as quatro e meia, era um adorno em sua mão. Os cigarros já faziam pilha no cinzeiro. Sempre que olhava os restos, entre bitucas e cigarros praticamente intactos, não conseguia evitar lembrar de uma fogueira dormente.

Artista plástico, trabalhava em casa, o que naquele momento era uma bênção. Porque podia se permitir não se barbear, pentear o cabelo ou mesmo trocar de roupa. Vivia só, num estúdio razoavelmente espaçoso e consumido num vendaval de roupas, livros, material de trabalho e louça sem lavar que, duas vezes por semana, era organizado por sua faxineira. Lourdes, uma guatemalteca de personalidade forte e voz doce, e a sua principal referência de convivência social. De alguma forma, ela lembrava-o de sua mãe.

"Um dia o senhor vai acabar sumindo, se afogando, nesta bagunça!", Lourdes gritava do quarto, enquanto desbravava a selva deixada por ele. De sua poltrona, na sala, ele se resumia em consentir com a cabeça enquanto pensava, "até que não seria uma má ideia". Duas vezes por semana. Era um ritual. Além de limpar o apartamento, Lourdes deixava uma tigela cheia de buñuelos com queijo, uma das poucas comidas que ele ainda parecia sentir desejo.

Estava cansado de si mesmo, como se desejasse se despir de si e vestir algo novo. E se angustiava terrivelmente com a ideia de que sua vida poderia estar escorrendo por entre os seus dedos. Sentia como se vivesse num grande mapa de projetos não concluídos, como se todos no mundo estivessem numa corrida e ele fosse o último colocado, sem chance de reposicionamento. Ainda era jovem, mesmo que quase sempre se sentisse como um destes aposentados adoráveis que passam o dia contemplando a corrida dos outros. Ele só não se sentia adorável.

Não é que estivesse deprimido. Não se sentia assim. Verdadeiramente. Era como se houvesse um vazio. Um grande vazio que ele parecia contemplar, todo o dia. E que, de alguma forma, também o contemplava de volta. O fato é que ele não dormia mais. Esse era o problema. Decidiu se consultar com um médico que, após alguns exames, elogiou sua condição física apenas observando uma leve anemia. Deveria tomar mais sol, caminhar se possível, e ingerir mais frutas e verduras. Não pretendia fazer nada disso, obviamente, e decidiu voltar para o apartamento.

No caminho, parou por alguns instantes diante da vitrine de uma loja de discos de vinil. A preferida da sua ex-namorada. Quase todos os finais de semana eles fuçavam as prateleiras e gavetas em busca de alguma raridade e geralmente sem sucesso. Quando ela foi embora, deixou todos os discos e uma frase que ele nunca conseguiu apagar da cabeça. Era uma lembrança que latejava.

Suspirou, resignou-se, e seguiu em frente. Quando estava próximo de virar a esquina em direção ao seu apartamento, porém, sentiu um impulso repentino de mudança de trajetória. Virou-se, como quem se lembra de algo, como quem ouve alguém gritar o seu nome, e desceu correndo as escadarias do metrô.

Lá embaixo, os sons do mundo eram gradualmente substituídos por outros, mais abafados. Sons acinzentados de quase conversas, quase pensamentos, e música vindo de algum canto. Azulejos grafitados, pôsteres rasgados e latas de lixo urgindo por assistência davam tons de caos ao não-lugar. Sentou-se sozinho, num banco de frente para plataforma. Os trens rugiam sobre os trilhos enquanto ele observava as pessoas que subiam e desciam dos vagões. Quando se dissiparam, do outro lado da plataforma seus olhos encontraram um senhor de idade bem avançada. Sentado num banco praticamente em frente ao seu, o velho parecia fazer exatamente a mesma coisa que ele. Observar as idas e vindas daquela estação.

Ele então se levantou, olhou rapidamente se algum trem se aproximava, e atravessou os trilhos com desleixo corajoso. Subiu, aproximou-se e notou que o senhor comia buñuelos com queijo enquanto contemplava, com tristes olhos de vidro, os passantes anônimos e se sentou ao lado do velho. Os dois se olharam por alguns segundos como quem se olha no espelho.

Eis que o senhor, iluminado como se tivesse resolvido uma charada, olhou para ele com o sorriso mais doce do mundo. E tocou sua mão, como quem toca uma miragem. Era como se estivessem sonhando. Um sonho de nostalgia, um sonho de premonição.

Foi quando ele entendeu tudo.

"O senhor se incomodaria se eu encostasse minha cabeça em seu ombro por alguns instantes?"

E, como uma criança, adormeceu profundamente em meio ao caos da estação.

2 comentários:

Luana Ribeiro disse...

Será que os sonhos estão atrelados ao sono? Não, claro que não! Mas quando a alma é velha, ah! Aí é que deixamos de sonhar porque deixar o vigor da juventude partir com o avançar dos anos é ignorar a beleza de cada uma das fases da vida.

Complexos, seus posts. Ótimo texto!

Lilian disse...

Seu texto está mais e mais amadurecido,voce é um escritor.
Espero ,um dia,numa livraria bonita comprar seus livros.Se é que voce já não os publica.
Metaforas intricadas,simbolismo complexo,a dor de escrever.
Estou maravilhada com este texto.