sexta-feira, 30 de abril de 2010

QUEM DISSE QUE LADY GAGA NÃO É COISA DE HOMEM?

Os caras de um grupo de humor da Universade do Oregon (EUA), conhecidos como "On the rocks", provam exatamente isso nesta apresentação de "Bad Romance" totalmente a capella (e extremamente performática). Excelente.

Ficou com vontade de ver o original? Clica aqui.

O QUE HÁ NO FIM DA ESTRADA?

A vida na terra chegou ao fim, por conta de uma hecatombe que a devastou de ponta a ponta, transformando o mundo - como o conhecemos - num grande abismo cinza e sem vida. Incêndios, inundações, pouco a pouco, tudo foi se desfazendo e levando pessoas a morrerem de fome e até mesmo a se matarem por conta do desespero. Mas ainda assim, o pior ainda estava por vir. O impensável: canibalismo. Neste cenário arrasado, um pai e um filho atravessam uma jornada perigosa e solitária pelos Estados Unidos, ao longo de uma estrada que levará ao Sul, onde supostamente há alguma chance de vida.

Cumplicidade na mais profunda solidão marcam o resvalamento em "A Estrada"

Baseado no best-seller de Cormac McCarthy, The Road ("A Estrada"), estrelado por Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee e com participação especial de Charlize Theron, Robert Duvall e Guy Pearce, é um filme impactante e imperdível. Com a direção sensível e precisa de John Hillcoat, vemos na tela - de forma quase documental - a transformação do homem em animal e nesta triste metamorfose, a descoberta dos extremos a que a humanidade pode chegar em nome da sobrevivência.

O mundo é habitado por personagens anônimos, errantes, que vão de ponto a ponto, dia após dia, atravessando vales e florestas de sombras numa luta exaustiva pela sobrevivência. O pai e o filho, igualmente, não tem nomes. Não sabem do tempo, já esqueceram até quem são. Há uma triste cena em que o filho, atônito ao observar um espelho, diz para o pai, "vê, papai, como estamos magros...".

As atuações dos protagonistas são impressionantes. Viggo Mortensen tem algo mágico em seu olhar, ao mesmo tempo determinado e devastado, e é a força máxima que sustenta o filme do começo ao final e nos garante fôlego para aguentar a tensão durante uma série momentos de grande perigo.

A jornada é absurdamente melancólica e perigosa, neste "road movie pós-apocalíptico", mas isso não impede que o filme também presenteie a audiência com momentos adoráveis, como a descoberta do que pode ser a última lata de coca-cola ou uma escotilha que esconde centenas de mantimentos absolutamente impensáveis. Este é um filme que mostra sem pudor o extremo, o limite da vida quando um banho, um raro banho e uma lata de sopa são suficientes para se acreditar em mais um dia.

Viggo Mortensen é pura luz num mundo que parece esquecido por Deus

Não há vida, na Estrada, porque ao longo de seus quilômetros infindáveis, só é possível enxergar o vazio, a maldade e o perigo. Essa história se dedica, de corpo e alma, a nos mostrar (como se fossemos acompanhantes) o trajeto de um homem dedicado em garantir que seu filho possa viver uma vida longe do caos. São dois mendigos, desorientados, caçados como animais e dividindo uma linda cumplicidade que só enxergaremos verdadeiramente nos instantes finais. Quando também descobrimos que, se há desepero e morte na Estrada, nela também pode habitar a esperança.


domingo, 25 de abril de 2010

ONDE REINA O CAOS


"Misógeno", "grotesco", "pretensioso", "arte". Muitos são os possíveis adjetivos ao filme "Antichrist" (Anticristo), de Lars von Trier, e nenhum será justo ou equivocado. Porque este filme é, sem dúvidas, o conjunto de todos esses adjetivos e muitos outros mais. Este é um filme raro, polêmico, forte e profundo sobre o qual apenas um argumento é inequívoco: é impossível ficar indiferente a ele.

Na história, "Ele" (Willem Dafoe) e "Ela" (Charlotte Gainsbourg) perdem um filho tragicamente. Após uma belíssima cena, rodada em preto e branco, Lars von Trier constrói o prólogo perfeito para o seu filme que é, ao mesmo tempo, sonho e pesadelo: ao som de "Lascia la Spina", de Handel, o casal faz amor apaixonadamente enquanto seu filho pequeno caminha para uma janela aberta. Tragédia anunciada e um casal em frangalhos. Devastados, os dois fogem para uma cabana, onde tentam um audacioso processo de cura, enfrentando a dor e a tristeza, ao invés de negá-la ou combatê-la.

Amor e morte caminham de mãos amarradas no novo filme de Lars von Trier

Mas, justamente, ao se depararem com a verdade da dor, os dois também se deparam com a dura verdade da existência humana, que pode ser falha, corrompida, má. E nessa turbulenta jornada de cura e auto-conhecimento, os dois seguem um caminho sem volta onde o desespero e a loucura fazem com que eles se percam nos labirintos de suas próprias mentes. Neste momento, já não é possível distinguir realidade de alucinação, certo de errado, fato e suspeita. Na cabana, cercada por uma região de mata fechada chamada Eden ("Paraíso"), Ele e Ela, como Adão e Eva às avessas, descobrem real e dolorosamente que "o caso reina". 

"Anticristo" é um filme belo e, ao mesmo tempo, horrendo. Com uma cinematografia fantasmagórica e precisa na intenção em retratar duas mentes perturbadas, este é um filme delicado, na mesma proporção em que é explícito e visceral. É arte na igual proporção em que pode ser interpretado como lixo. Porque não é um filme para todos. É, na verdade, um filme para ninguém, como se Lars von Trier tivesse construído seu próprio pesadelo, num exercício pessoal, egoísta, autista e de celebração de sua própria angústia. Dizem que Trier filmou "Anticristo" num momento de grande tristeza pessoal e isso pode ser percebido em cada  segundo deste filme impressionante que destila melancolia. 

Definitivamente, "Anticristo" é um filme arrebatador e com certeza não sou a mesma pessoa de antes de tê-lo visto. Ao mesmo tempo, há em mim uma satisfação - talvez inocente - em ter visto este filme, na medida em que é, na pior das hipóteses, uma peça de arte simplesmente imperdível. Não sei interpretar que impacto, especificamente, este filme provocou em mim além do silêncio. Porque esta é a essência e a beleza genuína deste filme: a sua capacidade de nos silenciar.


Fantasmagórica e brutalmente real é a jornada pelo "paraíso"

Despertei ao final deste filme, como quem acorda de um sonho ruim. Mas, de alguma maneira, quis dormir novamente. Talvez nem o próprio Trier tenha noção do poder de sua obra. Na falta de adjetivos definitivos para este filme, um, pelo menos, não me foge à mente: poderoso. 

O caos reina em "Anticristo". Mas é justamente no caos que nasce a ordem e "Anticristo" transpira esta reflexão com eloquência.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

23

Dia de São Jorge

quarta-feira, 21 de abril de 2010

BRASÍLIA, 50 ANOS


"Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu País e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino". 
Juscelino Kubitschek

Meus sinceros parabéns a minha querida Brasília. 50 anos, horizontal e infinita, e nem um centímetro menos utópica.

sábado, 17 de abril de 2010

LAPSO


Uma bela mulher, de longos cabelos ruivos o acordou com um beijo de bom dia: “levante, preguiçoso! As crianças já estão atrasadas!”. Levantou-se, letárgico. Um pouco de água no rosto, um banho breve, um punhado de roupas escolhidas e dobradas sobre uma cadeira de couro. Vestiu-se. A escada que descia para a sala, coberta com carpete marrom, felpudo, rangia sob os dedos dos seus pés. Meia dúzia quadros na parede, algumas fotografias, um vaso inexpressivo com flores quase murchas. Na cozinha, movimento apressado de pessoas.

“Pai! Anda! Eu não posso me atrasar para a feira de ciências!”, gritou o menino, da porta da casa; as bochechas rosadas e o uniforme pouco arrumado. “Pai, toma seu café com calma, não esquenta”, intercedeu a jovem à mesa, enquanto arrumava os livros para as aulas da faculdade. "Lógica", "Teoria do Caos".

Ele olhava tudo com olhos de vidro, de cansaço e surpresa, como uma máquina obsoleta, incapaz de processar um dilúvio de novos comandos e informações. Mal conseguia levar a xícara de café à boca, enquanto observava aquela cena familiar tão rotineira. A mãe ajudava o filho com uma maquete. O garoto segurava a chave do carro. A garota lia enquanto bebia um suco que parecia ser de maçã, alheia ao barulho da cozinha.

Um cachorro veio à sua perna, lambeu seus pés e ficou aguardando ser afagado. Ele olhou para o cão como quem olha alguma figura mitológica. “Meu bem, você não está atrasado para o trabalho?”, interrompeu a mulher. “Pai, você está bem?”, a jovem completou o inquérito. Ele os olhava inquieto, sem saber o que lhes responder. Pensou em histórias de fantasmas e realismo fantástico. Se é que conseguia, realmente, pensar em algo.

A mulher falava dos preços do mercado. Aparentemente, o suco de laranja nunca esteve tão caro. Ouvindo uma buzina alta, a jovem se levantou e, num salto, despediu-se, correndo para entrar no carro do namorado. Um carro vermelho, com um rapaz bonito, de óculos escuros, esperando, sorridente. Beijaram-se de forma pouco comportada.

O menino correu para depositar a maquete no banco de trás do carro estacionado fora da garagem. Já sentado no banco do passageiro, gritava como uma sirene de bombeiros. “Pai! Pai! Pai! Pai! Pai!”.

“Ei, o que você tem hoje?”, a ruiva interrompeu seus pensamentos, ajeitando-lhe a gravata e fechando a sua pasta. Uma bela pasta de couro de porco com duas iniciais: A. H. “Você esqueceu de pagar o cartão de crédito? Eles ligaram ontem, alegando que estamos atrasados”. Olhou-a como quem vê os créditos de um filme subirem. Através dela. Um perfume esquisito. Um pouco mais de maquiagem do que deveria àquela hora do dia.

A mulher o conduziu para a porta, trancando-a atrás dele. O sol brilhava intensamente, mas a grama estava molhada, como se tivesse chovido à noite. Na casa ao lado, um homem gordo e de roupão vinha em busca do jornal. Acenou para eles, com cortesia. Do outro lado da rua, uma senhora acenou da janela. Sorriu para os dois. Uma jovem deu bom dia, enquanto passava de bicicleta. No final da rua, cruzou uma viatura da polícia em ronda. Aquele silvo estranho. Azul. Vermelho. Azul. Vermelho.

“Você ainda não me disse o que achou das novas cores para as cortinas. Ficamos com lilás ou bege claro?”, perguntou a mulher enquanto caminhava para um outro carro, dentro da garagem. Ele não respondeu. Apenas a observou, emudecido demais. Ela deu de ombros. Ele estava estranho. Insônia, talvez. 

Jogou-lhe um beijo de longe pouco antes de se sentar à direção. Por alguns instantes,  olhou a mulher entrar no carro e retocar a maquiagem no retrovisor. Então, após breve meditação, abriu a porta do seu carro, sentou-se e apoiou uma das mãos ao volante.

Antes de dar a partida no carro, porém, questionou-se com certa preocupação: “quem diabos, afinal, são estas pessoas?”

quarta-feira, 14 de abril de 2010

PARA VER E OUVIR: PARAMORE ("THE ONLY EXCEPTION")

Por motivos muito meus, uma linda música que me proporciona deliciosos calafrios e me faz lembrar da minha "única exceção".

terça-feira, 13 de abril de 2010

E JÁ QUE O ASSUNTO É BEIJO...


"Beijando Jessica Stein" (Kissing Jessica Stein) é um filme adorável, imperdível e um daqueles que eu já perdi as contas de quantas vezes assisti. Os diálogos são ótimos, os personagens convencem e todo o filme é rodado em Nova York, o que promove uma deliciosa atmosfera para cenas hilárias, românticas e tocantes. É uma história completa, que não se apressa em nenhum instante e, nem por isso, também se arrasta. De alguma forma, acabamos esquecendo dos atores e acreditamos, nem que brevemente, que estamos acompanhando as vidas de pessoas reais. Muitos se enganam, ao definir este filme delicado e especial como uma comédia romântica sobre a descoberta do amor entre duas mulheres. Esta é uma forma muito superficial de encarar a história e todas as suas nuances tão interessantes. Beijar Jessica Stein é algo muito mais complexo...

Jessica procura o homem perfeito, mas acaba encontrando a garota perfeita...

Jessica (Jennifer Westfeldt) é uma solitária novaiorquina, neurótica e tímida; dedicada ao trabalho, no seu tempo livre, também é uma talentosa (e desconhecida) artista plástica. Pressionada por sua família judaica a arrumar "um bom partido" e se casar e cansada de desilusões amorosas, Jessica decide dar o passo mais ousado de sua vida ao responder a um anúncio romântico de jornal: "elas procuram elas". Com isso, acaba conhecendo Helen Cooper (Heather Juergensen). Helen é o oposto de Jessica e tudo que ela precisa: altiva, animada, engraçada, destemida e sem medo de experimentar as novidades. Com um punhado de tropeços, mas cheias de vontade de acertar os passos, Jessica e Helen acabam se envolvendo e descobrindo uma vida juntas. Naturalmente, isso envolve um punhado de sacrifícios e sofrimento, sobretudo para a família tradicional de Jessica, que tinha outros planos para ela.

Jessica Stein é como um beijo: intenso ou delicado, sempre guarda surpresas

O filme segue com ótimo ritmo, misturando polêmica e comédia em doses exatas enquanto vamos naturalmente percebendo em que medida Jessica está (ou não) decidida sobre as suas novas escolhas. Ao redescobrir um amor antigo, Josh Meyers (Scott Cohen), Jessica se depara com uma grande confusão e talvez a mais difícil decisão da sua vida: ficar com o homem errado, por quem sempre foi apaixonada, ou continuar com a garota perfeita, mesmo que isso não defina a pessoa que ela é, de verdade?

Por estas e tantas outras razões, "Beijando Jessica Stein" é um filme ideal para se ver no Dia do Beijo. Porque, como um beijo, é algo vivo, cheio de energia, e repleto de surpresas no caminho.

EM LEMBRANÇA DO "DIA DO BEIJO"


Burt Lancaster e Deborah Kerr, em "A um passo da eternidade" (1953)

sábado, 10 de abril de 2010

A DESCOBERTA DE GEORGE

Quando George nasceu, prematuro, na mesma hora recebeu o nome do santo de devoção de sua mãe. Ela havia feito uma promessa ao santo guerreiro que daria o seu nome ao seu primeiro filho caso tudo corresse bem. Apesar de ter crescido num ambiente de profunda devoção religiosa, George se tornou ateu antes mesmo de se tornar adulto. Sentia, desde muito cedo, que não havia necessidade de se apegar a ideias que não fossem concretas e sentia pavor da histeria provocada pelas religiões que, em seu entendimento, desvirtuavam as pessoas das suas próprias decisões. George não aceitava que houvesse um plano maior, além do seu controle terreno. Religião, qualquer uma que fosse, não era o seu negócio. Ele simplesmente não era um homem de fé.

Assim George viveu, por toda a sua vida. Prático, científico, materialista. Como Woody Allen, preferia o ar-condicionado ao Papa e ria, com uma mistura de pena e deboche, da sua mãe, uma senhora adorável, que sempre cheirava a incenso. Quando a visitava, olhava para o altar em destaque na sala, onde uma imagem de São Jorge podia ser vista em esplendor. "Meu Santo vestido", dizia sua mãe, enquanto tocava orgulhosamente a capa de veludo vermelho do santo imponente.

Em situações como estas, George sempre aproveitava a oportunidade para fazer alguma piada sobre os hábitos, as velas, as flores. Todo aquele "teatro" não fazia sentido para os seus olhos de matemático. Mas sua mãe não se incomodava, pelo contrário, olhava para George com um sorriso tenro e dizia, fitando-o nos olhos e acariciando seu rosto: "Ele olha por você, mesmo assim, meu filho".

George era um homem pacífico, de hábitos comuns. Separado, sem filhos, morava só numa casa confortável perto da universidade onde dava aulas de estatística. Ia de bicicleta para o trabalho, gostava de tomar água de coco ao final do dia e, sempre que possível, encontrava um pequeno grupo de amigos para ouvir jazz no centro da cidade.

Além disso, alguns livros e discos antigos traziam novidade para a grande casa que dividia com Crono, seu gato siamês que havia sido castrado há duas semanas e passava dias e mais dias deitado sobre uma grande almofada azul da qual se levantava, ocasionalmente, para comer ou frequentar a sua caixa de areia. Ele gostava de conversar com o gato, que parecia observá-lo com bastante atenção. Fazia carinho em sua cabeça, e ele respondia prontamente, vibrando como um aparelho elétrico a cada novo afago. "Desculpe por ter feito isso com você, mas é para o seu bem. E nunca esqueça: você não é nem um pouco menos homem agora. Pense que perdeu um acessório, só isso".

Aos 49 anos, George se deparou com a maior provação de sua vida. Após alguns exames de rotina, ele descobriu que tinha um câncer nos testículos. Ele viu o seu mundo desabar naquele dia. Era como se estivesse despencando, num abismo sem fim, onde a sua vida parecia se desfazer como névoa e poeira.

Quando contou essa notícia à sua família, sua mãe chorou um choro diferente. Um choro de coragem. Um choro de quem se arma para a guerra. Ao ver o seu filho soluçar, sozinho num canto, aproximou-se e disse, com convicção e veemência: "Não desespere, meu filho, porque nós venceremos essa". George agradeceu o conforto, mas em sua cabeça havia espaço apenas para pensamentos de probabilidades. Causas e efeitos. Ações e consequências.

O tratamento começou e se provou mais doloroso e sofrido do que George podia imaginar. Alternava momentos de esperança e desepero enquanto seguia para as sessões de quimioterapia a que se submetia. Inicialmente, houve um quadro de melhora, mas rapidamente o seu estado piorou a um ponto crítico. George via as horas sumindo por entre os seus dedos enquanto percebia que ficava mais no hospital do que em casa. O tempo, o seu tempo, era cada vez mais fugaz.

Numa tarde especialmente nublada, George se sentiu consumido por pensamentos melancólicos. Sabia que o seu corpo definhava e enxergava um homem de cem anos no espelho. Deixou um envelope pardo sobre a mesa, contendo um bilhete breve com mais instruções do que reflexões. Levou seu gato, Crono, para a casa de sua irmã, beijou-a e abraçou seu corpo com grande demora, como se estivesse dizendo adeus. Ouviu-a dizer palavras de conforto e esperança, enquanto caminhava para a porta da rua, mas nada daquilo fazia qualquer sentido para ele.

George saiu, observou o movimento e a rotina da cidade com olhos de turista. Tentou respirar fundo, mas uma tosse áspera o impediu de continuar. Passou a mão sobre a cabeça quase sem cabelo, olhou para as mãos de centenário e sentiu as roupas ainda mais folgadas. "Que tipo de homem eu acabei me tornando?". Não via mais sentido em nada daquilo ao seu redor e tinha a impressão de ser um observador de si mesmo, coadjuvante em seu próprio corpo.

Atravessou a avenida com algum desleixo, quase invisível para os poucos carros que iam e vinham naquelas primeiras horas do dia. Descalço, andou sem pressa pela areia que massageava seus pés. Gostou daquela sensação e sorriu brevemente enquanto seguia seu caminho em direção ao mar que estava especialmente calmo naquele momento.

A água já começava a esfriar e George sentia cada novo centímetro escalando seu corpo frágil e dormente. Pés, cintura, ombros. Sentia o barulho das ondas, o sal da água e um canto de gaivotas voando não muito longe. O movimento o levava para cima e para baixo, como um barco de papel, e George decidiu fechar os olhos, antes do seu mergulho final. No instante derradeiro de sua passagem na terra, George sentiu vontade de conversar com Deus. "Perdoa-me, Deus, porque eu não consigo mais continuar".

E o mar engoliu George, cobrindo-o rapidamente e deixando-o inconsciente. Subitamente, sentiu o sol nascendo no horizonte e percebeu duas mãos habilidosas erguendo seu corpo, levando-o graciosamente para a areia. "Ainda não, George. Ainda não". Ele não conseguia enxergar o rosto do seu salvador que, naquele momento, era não mais que um vulto gigante ao seu redor. Um bombeiro, um salva-vidas.


"Porque você está me ajudando?", perguntou com palavras tossidas. "Eu não aguento mais, não consigo continuar", completou. Ao que o estranho respondeu, com um sussurro que pareceu ventar em seus ouvidos: "você consegue, sim. E mesmo quando não conseguir, não desespere porque eu vou te carregar em meus braços". E então George apagou num sono profundo.

Quando abriu os olhos, George estava numa cama de hospital. A luz branca feriu os seus olhos, enquanto ele tateva por alguma informação. Viu sua mãe e sua irmã olhando-o radiantes. E aguardou alguma explicação. Sua última lembrança era ter caminhado em direção ao mar. Nada mais.

Sua mãe acariciou sua cabeça e com uma fina lágrima nos olhos explicou ao seu filho tudo o que havia acontecido até ele ser trazido ao hospital. George ouviu incrédulo e pareceu recordar alguns fragmentos de memórias sem conexão.

Seis meses depois, os médicos deram a George a inesperada notícia de que ele estava completamente curado. Não sabiam como, mas ele estava são como se nunca tivesse ficado doente. Algo que, mesmo a medicina em sua infinita sabedoria definia por "milagre". "Deve haver alguém olhando por você lá em cima, George, porque você nunca esteve tão bem".

A brisa salina mexia em seus cabelos de forma muito especial naquela manhã em que decidiu caminhar cedo na beira da praia. Gostava do calor do sol em sua pele e sentia como se tivesse não mais que vinte anos. Achava-se um novo homem. George havia vencido uma batalha que ele sequer tentou ganhar. E como Einstein havia percebido tantos anos antes, descobriu que não havia milagres na vida, mas que todos os aspectos da vida eram milagres.

Emoldurado, na sua sala de jantar, o recorte do jornal que noticiava a história do "homem desaparecido que havia sido encontrado na areia da praia, envolto num grande manto de veludo vermelho".

terça-feira, 6 de abril de 2010

DIA D.

Todas as pessoas, em algum momento das suas vidas, vivem um "Dia D". O dia decisivo, de transformação, da virada da maré. Um ponto de transição na jornada. A curva, a mudança das águas. O meu foi quando eu te conheci. Porque você invadiu a minha Normandia, tomou-me de assalto, no segundo em que os nossos olhares se encontraram. E foi como se o céu gris daquela manhã tivesse sido tingido com o vermelho do seu cabelo. E desde então você passou a cintilar minhas manhãs com fogo, onde ora me queimei, ora me aqueci. Quando eu contar essa história aos nossos netos, acrescentarei sempre algo novo. Você estaria com uma flor no cabelo, eu com uma pena na jaqueta. Quem se importará?

Naquela manhã fria e chuvosa, em que eu julgava inocentemente estar desembarcando para te conquistar, eis que foi você quem saltou, sem aviso, nas minhas areias calmas, com seus ventos de novidade, de modernidade; com seus passos decididos e seus carros de combate. E me mostrou a guerra e a paz. Com seu jeito delicado e belicoso, de bailarina armada, você me pacificou. E mesmo mergulhado em seu bom combate, ou mesmo confuso por ele, descobri que você, como os heróis juvenis 1944, também me resgatava das trevas.

Com você, ingressei de verdade na guerra da vida. Aprendi seu idioma, seus costumes, as leis do seu país. E me rendi sem resistência. Porque você reinventou o meu mundo, como eu o conhecia. Porque você me reinventou. Fui argila e bronze em suas mãos habilidosas que ora moldaram e acariciaram; ora bateram e cortaram.

Você me mostrou novos caminhos, novas cores. Abriu meus cadeados e minhas fechaduras, com paciência gatuna ou com martelo e maçarico. Tudo ao seu jeito. Foi paciente com minhas infantilidades imperdoáveis e implacável com meus deslizes mais casuais. Mas sou seu cativo, seu território conquistado, quem disse que me cabe questionar os seus termos? Porque se você trouxe desafio e regra, também trouxe o progresso. Correndo para acompanhar o ritmo dos seus passos, eu acabei evoluindo como quem deixa a paisagem para trás na janela do trem.

Enquanto você enchia as minhas mãos com as novidades que pegávamos no caminho, nem percebi o que acabava deixando cair. Descobri novas importâncias ao seu lado e me desapeguei de muitas coisas que tinham outro valor antes de você transformar o meu mundo. Disse adeus, para sempre, a parte do menino em mim que já deveria ter me desfeito. Só você me mostrou como. Você igualmente me ajudou a construir o homem em mim e o menino que ficou, e que sempre ficará, acabou se transformando no Peter Pan a quem você mesma recorre quando precisa fugir desesperadamente para a Terra do Nunca. Quando cansamos, juntos, da realidade e nos escondemos dos relógios, crocodilos e piratas.

Somos garotos perdidos. Casados e crianças. Bela e Fera. Dante e Beatriz. Humildes aprendizes e pedantes catedráticos na discussão das nossas ciências. Falamos uma língua que ninguém parece entender, rimos das piadas ocultas, pintamos as horas com cores que só a gente enxerga. Porque, se de um lado temos metades que não se encaixam, de outro parece que somos a mesma pessoa.

O engraçado é que hoje percebo que eu, de invadido, acabei te transformando também, invasora. Lembro com saudade dos seus olhos de menina, quando nos encontramos. E mesmo que de alguma forma eles tenham sumido na passagem dos anos, em algum lugar eles ainda estão refletidos hoje nos seus olhos de mulher. Porque viramos adultos chatos, juntos. E, de alguma forma, também não viramos. São as nossas aventuras diárias, em que vamos das manhãs de calmaria às noites de fogo cruzado. E inventamos armistício, cessar-fogo, paz duradoura. E declaramos independência. E reinventamos tudo, novamente. Todos os dias. Das cinzas, mesmo quando tudo parece perdido. E juntos, mesmo quando separados.

"Porque você nunca está mais longe de mim do que as batidas do meu coração".

E o meu dia D. é você.

sábado, 3 de abril de 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

"O VENTO DA VIDA PÔS-TE ALI"


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda

quarta-feira, 31 de março de 2010

ILUSTRANDO

"O Sonho" - Pablo Picasso

quarta-feira, 24 de março de 2010

TRISTE BORBOLETA

Acordou naquela manhã com uma ideia fixa na cabeça: “preciso me livrar desta angústia que quer me matar”. Sentia-se feia e disforme. Acreditava, dia após dia, que era uma mulher sem graça. Apalpava a pele flácida na esperança de que algum milagre pudesse ter acontecido enquanto dormia e passava a mão pelos cabelos desgrenhados em decepção. Todas as manhãs. Não gostava mais de si. Achava-se uma mulher feia. Sentia-se uma mulher feia.

Ninguém conseguia explicar o seu comportamento. De uma hora para outra, era como se tivesse enlouquecido. Tudo era muito estranho, quase surreal. Num domingo qualquer passou a se vestir daquela forma, com o rosto maquiado como uma pintura abstrata. Raspou a cabeça, as sobrancelhas e todos os pêlos restantes do corpo. Sentia-se uma mulher torta, uma mulher quebrada. Sentia-se como a cria de um quadro de Dalí com um desenho de Picasso.

Eventualmente, todos começaram a se afastar. Por medo, asco, vergonha, estranheza. Ninguém conseguia explicar o que havia acontecido a Joachim para ele agir daquela forma. Nunca havia feito nada errado. Havia sido sempre um menino correto, bem comportado. Terceiro filho de uma família de judeus ortodoxos, nunca deu problemas nem durante a adolescência. Havia se transformado num homem silencioso, é verdade, e notoriamente solitário. Tinha suas excentricidades, mas não incomodava ninguém em sua solidão de jovem velho ermitão de trinta e oito anos.

Morava nos fundos da casa de seus pais. Trabalhava na garagem, o dia inteiro, mexendo em motores velhos e eletrodomésticos condenados. Tinha mais dois irmãos, que moravam em Tel-Aviv servindo ao exército e uma irmã morta num terrível acidente de barco. Era uma família estranha, mas que não demonstrava suas estranhezas a ninguém. Eram extremamente reservados, até. E talvez por isso o menino Joachim tenha sido uma criança isolada. Mas isso não era justificativa. Não para o que estava acontecendo com ele.

E assim continuou, por meses. Perambulava pelas ruas como um louco. Escondendo-se nas sombras das esquinas, com medo de si mesmo, parecendo estar em busca de um destino sequer conhecido por ele. Foi quando se deparou com um cartaz de um salão de beleza maltrapilho, no centro de cidade: “Você é uma mulher linda, não importa o que eles digam”. Olhou fixamente para a placa desbotada, quase em transe religioso. E teve uma epifania.

Correu para dentro e se trancou no banheiro, assustando uma meia dúzia de mulheres tristes que estavam ali, cuidando umas das outras. Assustadas, ouviram o som de um touro numa loja de cristais. Era como se alguém tivesse aberto os portões do inferno, dentro do pequeno banheiro. Ouviam o rapaz urrar com ira, êxtase, dor, cólera. E o escutavam se debater e quebrar o que tivesse ao seu alcance. Sentiram medo e chamaram a polícia.

Joachim se observou perplexo, por horas nos restos de espelho caídos no chão do banheiro. Narciso às avessas, tinha uma confusa atração pelo seu reflexo, que, ao mesmo tempo, parecia odiar visceralmente. Queria se cortar inteiro com os cacos espalhados aos seus pés. Sentia ódio de tudo e vontade de gritar até os pulmões estourarem. Apanhou um longo pedaço de espelho, em formato de foice, acocorou-se no chão e como um samurai de Kurosawa fez de si uma triste madame borboleta, em desesperada metamorfose, naquele obscuro canto de cidade. 

Quando a polícia chegou, meia hora depois, já era possível ver um rastro de sangue correndo por debaixo da porta. Sentiram cheiro de tragédia e chamaram uma ambulância para salvar a sua vida.

* * *

Ela não podia acreditar no que estava acontecendo. Semi-acordada, sozinha naquela cama de hospital, tocou o rosto inteiramente coberto de ataduras. Pulsos, pescoço e ventre enrolados em panos ensopados. Teve vontade de chorar. E chorou silenciosamente, soluçando sob a penumbra de seu quarto, enquanto se  agarrava na fria barra de metal de sua cama. Segurava-se na cama com força para não despencar no abismo que parecia querer engoli-la.

E no limiar de seu retorno à sanidade que ainda era possível, chegou a uma revelação: era, definitivamente, a mais feia de todas as mulheres.

E não tinha mais dúvida alguma. Havia se transformado num homem.

sexta-feira, 19 de março de 2010

NO CALOR DO ALASKA

Após longo confinamento, uma mamãe ursa é vista pela primeira vez com o seu filhote, na costa do Alaska. Linda imagem, de puro calor nos polos, e cada vez mais rara. Em consequência do aquecimento global, os ursos polares correm risco de extinção. Fotografia de Steven Kazlowski.

quinta-feira, 18 de março de 2010

FIDÉLIO E O RÁDIO

Fidélio era um homem comum, de hábitos simples e poucas ambições. Havia sido assim por toda a sua longa vida, mas nem por isso se considerava um homem insatisfeito. Pelo contrário, era altivo e agradecido. Tinha 82 anos, viúvo há oito, pai de três filhos e avô de dois netos. Todos homens. Vivia só, num pequeno apartamento onde era assistido por um jovem enfermeiro, Javier; um cubano muito atencioso, contratado por seus filhos depois que ele quebrou uma perna tentando trocar uma lâmpada. "O senhor ainda vai acabar me matando do coração!", dizia Javier, sempre que corria para evitar que aquele homem tão frágil e sem referência da própria condição se machucasse em alguma aventura doméstica.

A saúde de Fidélio era boa mas, segundo o seu médico particular, ele já estaria desenvolvendo um princípio de Alzheimer. Nada muito grave, porém. Isso só era percebido quando trocava os nomes dos filhos ocasionalmente, esquecia o dia da semana ou repetia alguma história. Não mais que isso.

Seus filhos e netos o visitavam com bastante frequência. E ele sempre gostava de fazer da ocasião um evento. Mandava Javier fazer café e comprar biscoitos, dava notas de 5 para seus netos universitários e criticava o governo de 10 anos antes. Quando todos iam embora, Fidélio gostava da companhia do seu rádio e ficava por horas e horas, tarde a dentro, com ele ao pé do ouvido. Quase sempre acordava Javier, há muito cochilando no sofá, para pedir que o ajudasse a se trocar para dormir. O enfermeiro disfarçava o cochilo enquanto Fidélio lhe dava palmadas carinhosas no rosto. "Javier, você sente sono demais"

No seu aniversário de 83 anos, o sr. Fidélio ganhou dos seus netos um ipod recheado de músicas antigas. Eles viam o avô sempre com o ouvido no rádio e tentaram melhorar de alguma forma a sua vida, tão sem caprichos. Fidélio agradeceu com felicidade comovente, mesmo sem nem saber exatamente o que era a caixinha de acrílico em suas mãos. Nunca nem abriu, guardando-o com carinho na cômoda de sua cama, onde deixava um punhado de importâncias: um terço de prata, fotografias de sua mulher, um livro de Pablo Neruda e dezenas de cartas amarradas com fita vermelha.

Desde que se tornou viúvo, Fidélio encontrou uma calorosa companhia no rádio que ouvia em volume tão baixo que todos pensavam estar desligado. Ele podia ficar por horas, sentado quase imóvel, com o pequeno rádio. Atento, como se ouvisse instruções, Fidélio nem parecia dar bola para os acontecimentos ao seu redor. Apenas o rádio tinha importância. Os médicos disseram que era normal, algo como uma muleta emocional, um autismo temporário, e aconselharam os filhos a observar e respeitar o hábito do pai, sem grandes preocupações. Que mal havia em ouvir um rádio, mesmo em volume tão baixo? Era o que ele queria fazer e todos aceitavam. Mas só Fidélio sabia o quão especial era aquele rádio em suas mãos.

Um dia seu neto mais velho perguntou o que tanto ele ouvia com tamanha concentração. Ao que Fidélio retrucou, sorridente e sem cerimônia, que "ouvia a voz de Deus". Todos se olharam por alguns longos instantes e, desconcertados, julgaram tê-lo interpretado de forma equivocada. E deduziram, num melancólico parlamento de silêncios, que ele estava demente. Por mais quatro anos Fidélio continuou na companhia de seu rádio, sempre sob olhos de comoção de seus filhos e netos.

Chovia forte na manhã em que Fidélio se foi. Era como se o céu estivesse de luto. Javier foi acordá-lo para tomar café e o encontrou deitado, imóvel, em paz. Havia morrido em seu sono. Ao lado da cama, sobre a cômoda, percebeu o velho rádio que Fidélio nunca largava. Sorriu como quem sorri de uma criança inocente, segurou o aparelho por alguns instantes e se surpreendeu de como ele era leve. Sacudiu algumas vezes ao ouvido e constatou que o rádio era oco e sequer possuia pilhas. Depositou então o aparelho sobre a cama, ao lado de Fidélio, e sorriu novamente, com certa tristeza. Sentiu pena de Fidélio como nunca havia sentido de nenhuma pessoa antes. Acariciou os cabelos ralos em sua cabeça, fez uma breve oração e foi até a sala para ligar aos seus filhos. "Ele passava o dia inteiro ouvindo um rádio vazio e sem pilhas".

Fidélio parecia dormir o melhor sono de sua longa vida, com o rosto sereno e iluminado com um sorriso de quem não sente culpa. E o rádio estava lá, próximo ao seu corpo.

Eis que na lateral do aparelho uma pequenina luz azul piscou três vezes e desvaneceu, lentamente, em companhia de um chiado que parecia sussurrar até se transformar em silêncio.

De todos no mundo, aquele era o menos vazio dos rádios.

"ABRACE A VIDA"

Belíssima propaganda sobre a importância dos cintos de segurança. Lindo demais.

terça-feira, 16 de março de 2010

O PESO DA CHUVA

Um assassino está à solta. Suas vítimas são todas crianças, encontradas afogadas na água da chuva, após dias desaparecidas. A marca conhecida dos seus crimes é um pequeno origami deixado sobre os corpos. Em torno deste cenário, orbitam quatro pessoas comuns. Um pai desesperado. Um policial doente. Um investigador com dependência química. Uma mulher insone. Pessoas sem nenhuma ligação aparente umas com as outras e que se veem subitamente envolvidas com a série de crimes promovida pelo "Assassino do Origami". O que poderia ser um roteiro de um interessante thriller policial é, na verdade, um jogo exclusivo do Playstation 3: Heavy Rain, desenvolvido pela Quantic Dreams, já é considerado mais um passo na evolução do entretenimento digital. Heavy Rain coloca o jogador na pele de quatro personagens, reponsável por todos os seus atos, desde escovar os dentes e tomar banho a interagir com outras pessoas ou mesmo morrer. Tudo em caráter definitivo. Não há "continue". O jogo é construído sobre decisões interativas que conduzem a narrativa até o seu desfecho. Cada palava conta. Cada gesto, cada ação. Um jogo que promete levar os jogadores ao limite, testando suas emoções e raciocínio, sob a premissa de "até onde você iria para salvar quem você ama"? Heavy Rain é uma aposta no público adulto, maduro, sendo definido, inclusive, como "filme interativo" e não videogame. Alguns críticos associaram o jogo ao aclamado filme "Seven", tamanha a tensão promovida pelo jogo que, naturalmente, é recomendado para maiores de 18 anos. Em Heavy Rain não há "vidas", "pontos" ou "níveis". Há mistérios, profundos e envolventes, e a curiosidade humana em desvendá-los. E, naturalmente, o preço a se pagar pela curiosidade.

quinta-feira, 11 de março de 2010

SOBRE O RETORNO DE UM AMOR IMORTAL

Eis que surge Andrew Lloyd Webber com a notícia de seu novo musical: "Love Never Dies", a ser inaugurado em Londres. A trama, supreendentemente, será uma continuação direta da idolatrada história do "Fantasma da Ópera". Os eventos se passarão uma década após os eventos de Paris, em Nova York (Coney Island), onde Christine aceita um convite para um trabalho mal sabendo que o seu fantasma também atravessou o oceano para continuar admirando-a nos bastidores. No vídeo, a canção tema, "´Till I hear you sing", é cantada por Ramin Karimloo, que interpretará o Fantasma. Eu que tive a grata oportunidade de assistir ao Fantasma na Broadway por duas vezes só posso acreditar que este novo show, sem a menor sombra de dúvidas - e apesar de toda a controvérsia - será mágico também. É o toque de Midas de Webber. Eis que surge o Fantasma da Ópera, do silêncio e das sombras, quando todos já haviam se conformado com o "fim" de sua história. A história de seu amor desesperado por Christine. Um "amor que nunca morre".

quarta-feira, 10 de março de 2010

TREZE


Após longos anos de espera, atrasos e rumores, 9 de março de 2010 entra para a história como o dia de lançamento (ocidental) do aguardadíssimo Final Fantasy XIII. Pura arte digital, o supra sumo da qualidade narrativa e de entretenimento da mais famosa franquia de JRPGs. Meu lado geek, sempre presente, só tem apenas uma palavra a dizer: celebremos.

terça-feira, 9 de março de 2010

ILUSTRANDO

"São Jorge Guerreiro" - Ed Ribeiro

sexta-feira, 5 de março de 2010

VOZES


Celeste já não compreendia tão bem como antes o que as vozes queriam dizer. Com o tempo, as mensagens foram ficando cada vez mais confusas, como código cifrado, como charadas sem sentido. Só uma coisa permanecia intacta, o fato de que se sentia compelida a obedecê-las. “As vozes são a melhor coisa que nos aconteceu, Beatriz, desde que ele foi embora”.

* * *

O marido a havia abandonado com sua filha ainda pequena. Saiu de casa como um foragido, numa madrugada, sem deixar pistas. Nem bilhete, nem dinheiro, nada. Era como se elas simplesmente não existissem. Em um mês as duas tiveram que ir morar numa pensão, enquanto ela tentava ganhar a vida como garçonete. Quando sentiram fome pela primeira vez as vozes começaram a se manifestar. E a tranqüilizaram, quando ela mais precisou de esperança. “As vozes estão falando comigo, Beatriz. E elas estão dizendo que não devemos ter medo”.

A única coisa que seu ex-marido havia deixado, ou esquecido, era um revólver calibre 38, que ficava escondido numa caixa de cereal, dentro do armário da cozinha. Celeste sempre verificava se a arma ainda estava lá. “As vozes mandam eu checar todos os dias, Beatriz, e ela está sempre lá. Foi a única coisa que seu pai nos deixou”.

Durante o dia, a dona da pensão olhava Beatriz, pelo menos por algumas horas, enquanto Celeste trabalhava. Tarde da noite, voltava exausta para casa e encontrava a pequena Beatriz adormecida. Ás vezes ela chorava, de medo, de fome, de solidão. O desespero sobre o desamparo a fazia ter vontade de gritar. Levava a filha para sua cama onde tentava niná-la, cantarolando algumas poucas músicas que conhecia. Beatriz dormia como um anjo ao seu lado enquanto ela acendia mais um cigarro com suas mãos trêmulas de garçonete desastrada. “As vozes não me falam mais claramente, Beatriz. Gostaria que elas me ajudassem, porque já não sei mais o que fazer”.

* * *

Amanheceu um domingo completamente desorientada. Café escorrendo na pia, leite espalhado na mesa, fatias queimadas de pão. Arrastava-se pelo minúsculo apartamento, fechando as cortinas, letárgica. Ligou a velha televisão e colocou Beatriz sentada, desenhando no chão. Sentou-se à mesa e acendeu mais um cigarro. Os cabelos estavam embaraçados e seus olhos eram negros e profundos como se não dormisse há um século. Vestia uma camisola encardida e suas mãos tremiam enquanto tentava trabalhar. Havia recebido uma revelação. “As vozes me mandaram entalhar duas letras nelas, Beatriz. Para que elas se tornem mágicas. Não precisamos mais temer, assim as vozes disseram”.

Beatriz brincava no chão com um velho urso de pelúcia e observava a televisão ligada num volume ensurdecedor. Sua mãe estava sentada à mesa, fazendo movimentos repetitivos com as mãos, como se lixasse alguma coisa. E estava serena, pela primeira vez na vida.

“Hoje voltei a entendê-las, Beatriz. Ficou claro como a luz do sol. As vozes me disseram para sentar aqui e separar essas duas. Vê como elas são brilhantes, Beatriz? Nesta vou raspar um B de borboleta. Naquela um C de coração”. 

PARA VER E OUVIR: BLOCKHEAD ("INSOMNIAC OLYMPICS")

"PRA QUE PENSAR? TAMBÉM SOU DA PAISAGEM"

I

Mario Quintana - A Rua dos Cataventos



Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!

quinta-feira, 4 de março de 2010

O MENINO QUE SONHAVA EM SER REI


Contam lendas muito antigas, que soberanos do Império Persa mantinham contatos com entidades demoníacas, chamadas Djinns (de onde se origina a palavra "gênio", hoje tão comumente utilizada em histórias infantis).

Segundo as histórias, passadas oralmente de pai para filho ao longo da poeira dos séculos, esses Djinns, ou "Gênios" tinham o poder de garantir aos seus amos a realização de todo o tipo de sonho e desejo.

"Ouro!", e então se erguiam pilhas sem fim de tesouro. "Armas!", e fileiras de homens armados, cavalos e carruagens se encontravam prontos para guerra. "Mulheres!", e as mais belas dançarinas surgiam como mágica, por entre colunas de fumaça azul.

Estas lendas contam, ainda, que uma pedra mágica havia sido criada por um Djinn muito poderoso e, de todos, talvez a entidade mais maléfica: uma pedra pequenina que garantiria ao seu detentor poder e glória sem limites; um presente máximo ao soberano da Pérsia, que desejava viver o céu na terra, com posses, exércitos e riquezas.

A pedra, porém, era amaldiçoada como todos os desejos realizados por um Djinn. Tinha um preço a ser pago: traria conquista e destruição a quem quer que colocasse as mãos nela, além do rei. Mas não demorou até que todos esquecessem disso.

E os séculos foram passando. A história virou lenda e a lenda virou mito. E a pedra, pequenina e insignificante como um pedaço de carvão, acabou chegado à Europa por meio de bandidos que se infiltraram nas missões das Cruzadas ao oriente.

No seu caminho, porém, teria ajudado na tomada de Jerusalém e afundado navios carregados de tesouro roubado. Homens teriam sido assassinados após fabulosas vitórias no jogo. Reis depostos após anos de extravagância. Ascensão e queda de impérios, revoluções e pragas.

E de mão em mão, trazendo fortuna e desgraça aos seus inúmeros donos, a pedra acabou sendo jogada fora pelo seu último detentor, cansado de tragédias. “Maldita seja!”. Perdida, acabou se misturando com pedras normais, no chão, sem valor. E, assim, ficou esquecida, como todas as pedras são.

Mas conta uma outra lenda, esta bem mais recente, que um menino muito pobre e infeliz, numa obscura cidadezinha de fronteira, em mais uma de suas inúmeras andanças sem destino pelo bosque, teria encontrado esta pedrinha. Ele, ainda de calças curtas, pés sujos de lama, mal vestido, melancólico e solitário, encontrava companhia da natureza nas suas caminhadas, enquanto se perdia em seus próprios devaneios e ilusões sobre falanges alexandrinas e canhões da Áustria-Hungria.

Sem posse outra qualquer, além de alguns almanaques de guerra e soldados de chumbo, resolveu ficar com a pedrinha e guardá-la no bolso como um amuleto para trazer sorte à sua vida e sua família.

Mas aquela não era uma pedra qualquer e tampouco era aquele um menino qualquer.

Acabara de fazer doze anos. "Será meu presente de aniversário", pensou o insignificante Adolf, guardando a pedrinha no bolso enquanto um vento forte e sombrio corria por entre as árvores, ao seu redor.

quarta-feira, 3 de março de 2010

PARA VER E OUVIR: NAT KING COLE ("FOR SENTIMENTAL REASONS - I LOVE YOU")


Nat... o que dizer...

ILUSTRANDO

"Auto-retrato com cabelo cortado" - Frida Kahlo

terça-feira, 2 de março de 2010

"EDUARDO E MONICA"


Animação absolutamente adorável sobre esta música inesquecível da Legião que, sem dúvidas, é parte da trilha sonora deste blog. Uma música cheia de devaneios urbanos, reflexões de média superficialidade e efemeridades importantes. Lembranças à minha querida e maltratada Brasília, que tão bem me acolhe.

PASSAPORTE PARA A IDADE MÉDIA

"Azincourt", novo romance de Bernard Cornwell, é simplesmente um livro impossível de largar. Em resumo, oferece um passaporte para a Inglaterra medieval, durante os turbulentos tempos da Guerra dos 100 Anos. O livro é entitulado a partir da famosa Batalha de Agincourt, travada em 25 de outubro de 1415, Dia de São Crispim, quando algumas dezenas de bravos soldados ingleses, exaustos e doentes, conseguiram derrotar o vasto exército francês. O grande trunfo dos ingleses eram os seus arqueiros de arcos longos, a arma mais temida da Idade Média. A passagem histórica foi imortalizada por Shakespeare, em sua peça "Henrique V" (minha predileta) e que foi levada ao cinema por Kenneth Branagh e Laurence Olivier."Azincourt" é protagonizado pelo jovem e intrépido arqueiro Nicholas Hook que, pelas idas e vindas do destino, acaba ingressando nas fileiras do exército do jovem Henrique V a caminho de Harfleur, cidade costeira a ser tomada antes da grande marcha pela conquista da França. O texto é leve, rápido, fluido, orgânico, como se nós mesmos estivéssemos ali, testemunhando toda a beleza, a bravura e a brutalidade daqueles anos escuros da história europeia. Quando me debruço sobre "Azincourt", é como se castelos se erguessem ao meu redor, cercados por bosques em névoa. Percebo pequenos riachos e conversas em tavernas. Sinto como se fosse transportado para os campos de batalha, com flechas voando em todas as direções, cavalos a galope, cavaleiros em combate e fogo, gritos, pólvora e sangue por todos os cantos. E consigo ouvir o jovem Henrique gritar "por Deus, Henrique e São Jorge!", antes de investir novamente na brecha em Harfleur. É uma jornada imersiva ao medievalismo que nenhum aficionado ao tema pode se privar de experimentar. A escrita de Cornwell é de um poder quase místico e este livro é obrigatório para qualquer pessoa que se interesse por romances de fundo histórico. Lamento cada página virada, enquanto vejo o livro definhar sob meus dedos ávidos em saber o que será do jovem arqueiro que, sozinho, parece ajudar a desenhar a história de um país inteiro. Imperdível.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

ILHAS

Desde muito cedo eu soube que havia algo de ilhéu em mim. Lembro que deveria ter uns 8 anos quando uma imagem capturou meu olhar por muitas horas: um anjo, deitado sobre uma nuvem pequena, como se ela fosse um país. Não demorou muito para eu me apaixonar pelo "Pequeno Príncipe", tampouco. O fato é que eu sempre flertei com a solidão - talvez mais até do que eu deveria - como se assim eu conseguisse emular a ideia de habitar um país microscópico, um atol, um planeta, uma ilha. E apreciei os frutos disso em igual proporção que sofri com as suas consequências. É algo meio inevitável, acho. Um quê de antisociabilidade disfarçada sob sorrisos que dão a entender que o que mais desejo no mundo é companhia. Nietzsche disse, certa vez, "odeio quem me rouba a solidão sem me oferecer verdadeira companhia". E acho que ele sabia o que estava falando. Porque imaginamos algum tipo de verdade e conforto na ideia de estarmos cercados por pessoas, mas quem nunca se sentiu imensamente só na multidão? Aprecio o silêncio e a companhia, mas talvez seja rigoroso na combinação perfeita de ambos; deve ser isso. Não sei. É tudo muito subjetivo demais. Sei também que sofro, principalmente pelo fato de que não é algo sobre o qual tenho qualquer sombra de controle. É mais forte que eu. Da mesma forma que tenho rompantes de "abstinência de companhia" igualmente sinto o desejo de subir para a caverna e me entreter com as sombras que a luz de fora projeta nas paredes. Será melancolia? Será "personalidade"? Será que é algo assim, fácil de demonstrar, como uma fórmula? Talvez seja o fato de eu não ter tido irmãos ou ter convivido com muitos adultos desde cedo. E talvez não seja nada disso, porque às vezes tudo o que quero é a carona de pássaros imigrantes que me levem para perto de alguém. Acho, em verdade, que é um ofício. E que algumas pessoas são mais qualificadas do que outras nisso. A verdade é que quando mais me convenço de que sou ilha, eis que me afasto abruptamente deste teimoso comportamento insluar, como quem acena desesperadamente por resgate. E lembro de algo que li, há muitos anos; que, quanto mais eu penso que sou ilha, percebo que sou arquipélago.