quarta-feira, 5 de novembro de 2014

NÓS DE GARGANTA



Hoje eu entreguei as chaves do nosso apartamento - descobri que o "Sr. Popeye" (lembra?) não trabalha mais na corretora. Engraçado que, ao sair do prédio comercial, senti todo o peso da nossa despedida nas costas, tomando cada poro do meu corpo como uma onda; algo que me fez sentar, como se a minha pressão estivesse baixa.

Culpei o calor, óbvio.

Mas a verdade é que, talvez só então, eu tenha me dado conta da sua ausência, tão definitiva. Tão séria, tão certa. Parece louco - talvez eu esteja - mas eu tenho certeza que você entenderia tudo. Você tentou com todas as forças me convencer a ficar no apartamento, mas eu decidi que era grande demais, caro demais, vazio demais para mim. Simplesmente, eu e ele deixamos de funcionar juntos. 

Ao fechar a nossa porta, pela última vez, senti um calafrio. Mais um destes entendimentos tardios, que nos ocorrem de forma atemporal. Segurava uma pequena caixa de coisas suas (que irei enviar ao endereço que você deixou) e senti que um pedaço meu, mágico, secreto, especial, intocado, ficaria ali trancado, para sempre entre aquelas paredes recém-pintadas.

Lembrei do seu cheiro, do calor da sua pele, da sensação da sua cabeleira felina, vermelha, cobrindo meu rosto em uma de tantas noites que inventávamos de ser um só. No tempo que passamos enfurnados naquele apartamento, vivendo a nossa fantasia de sobreviventes do holocausto nuclear. Vivíamos a base de "comidas de conforto", filmes, música, sexo, video-games. E tínhamos a completa noção de que tínhamos algo incrível nas nossas mãos. Mas gostávamos de sair, ocasionalmente, para verificar os índices de radioatividade, voltando correndo para a toca quando percebíamos como ainda odiávamos as pessoas.

A gente falava, todos os dias, que aquilo era bom demais para ser verdade. "Vou descobrir que você é algum tipo de criminoso perseguido", você dizia com a escova de dentes pendurada no canto da boca, enquanto eu gargalhava, na cama, te esperando. "E eu vou descobrir que você é algum tipo de molestadora de plantas", eu retrucava com uma de tantas irrealidades que nós habitualmente gostávamos de colecionar.

Plant-fucker! Plant-fucker! Plant-fucker!

Ainda me pego rindo, com a minha caneca diária de café. Sua caneca, aliás, que eu roubei. Aquela da piada sobre o sapo e o esquilo que só você acha graça.

Parafraseando a famosa citação de Camus, você foi um verão invencível, durante meu inverno mais negro. E você nem tem ideia disso, em verdade. Tampouco eu senti necessidade de te explicar a cola fresca nas minhas rachaduras. E muito menos você sentiu necessidade de saber. Nosso acordo não-verbal. 

Nós vivemos os meses mais incríveis que eu poderia imaginar. Nosso reino construído sobre a apreciação dos prazeres simples. E hoje me pergunto se tudo aquilo não foi um sonho; e se de fato você não estaria molestando alguma planta aí do outro lado do mundo. Tudo, qualquer coisa, para amenizar, para aplacar o vazio, sufocar o sentimento aflitivo de querer o seu corpo à noite e não encontrá-lo; de buscar a sua companha, de voltar a rir com você, de criticar o mundo ao seu lado, nós, que brindávamos o nosso mau-humor como se fosse vinho.

"Venha para a Austrália comigo", você disse, sem muita convicção, no nosso último dia juntos. Aquele domingo melancólico, preguiçoso, que antecedeu a nossa ida ao aeroporto. Confesso que eu flertei com a possibilidade, por diversas vezes, mas não havia como. Não era do campo do "querer", pura e simplesmente. Eu te feri, eu sei. E me feri. E tenho a completa noção que pagarei - caro - o preço desta escolha até o último dia da minha vida.

E lá estão os olhos completamente nublados, novamente.

Sinto o coração em galope, ainda hoje, quando lembro dos nossos últimos instantes juntos; você correndo para não perder o seu voo, desaparecendo na multidão, o gosto da sua boca viva na minha enquanto eu caminhava para o estacionamento solitário e descobrir o seu casaco, esquecido, no banco do carona.

"Venha me visitar!"

Você foi a coisa mais rara, mais incrível, mais inesquecível. A mulher mais linda, mais preciosa, mais feminina que qualquer homem poderia sonhar conhecer. A companhia mais sábia, mais engraçada, mais brilhante. A alma mais doce, o coração mais cheio de bondade, alguém que me fazia sentir vergonha da imensidão da minha imperfeição. 

"Nós somos tão cheios de nós", você me disse um dia.

Pois pensar em você, hoje, me deixou assim, cheio deles, engasgando a garganta.

Nenhum comentário: