quinta-feira, 7 de agosto de 2014

PENUMBRA


Meu pai era um homem esquisito. Mas no melhor sentido. Acho. Sei lá. Nós nunca duvidamos que ele nos amava, nem a nossa mãe; ou o seu interesse pela nossa vida, as nossas coisas.

Ele estava lá, sempre estava. Mas a verdade é que hoje eu consigo enxergar claramente o que, naqueles anos passados, eu via de forma embaçada. O nosso pai vivia num mundo dentro dele; e que mundo incrível devia ser, porque nós nunca pudemos entrar.

Ele era um poeta, um filósofo, um homem triste - mas não infeliz. A companhia mais engraçada e interessante que eu e meus irmãos tivemos. Nunca, nunca conheceremos outro homem como ele. Suas histórias, seu jeito, seu humor - e mau humor - nosso pai foi o epicentro da nossa juventude; não por acaso ainda o sentimos tão presente entre nós, tão vivo, após tantos anos. Suas histórias rasgando nossos rostos com risos quase geográficos.

"Ah, aquele homem...", mamãe se limitava em comentar; um suspiro, uma saudade que não passava.

Entre todas as suas manias - e não eram poucas - meu pai tinha o hábito quase religioso de folhear o jornal assim que acordava.

"Já chegou?", ele perguntava, ansioso, ainda vestindo seu pijama puído e predileto.

O que pode haver de estranho nisso?, você me perguntaria. Um homem ansioso pelo seu jornal da manhã.

Mas não é que meu pai estivesse querendo ler as notícias, os resultados esportivos ou a corrupção do governo. Não era nada disso. Meu pai pegava o jornal e se desfazia de todas as páginas, apenas para olhar nos obituários. Apenas isso; podíamos jogar fora o resto. E com a sua fiel xícara de café na mão, lia ávido os nomes ali, diante de uma platéia curiosa. Eu, meus irmãos, nossa mãe. Esperando que um dia aquele mistério fosse explicado.

Nunca foi.

"O que você tanto procura nesses obiturários, papai?", perguntávamos, eternamente intrigados com aquele hábito mórbido e curioso.

Ele ficava em silêncio e apenas sorria; jogava então a folha fora, e todos começávamos os nossos dias.

* * *

Um belo dia, numa manhã qualquer, eu despertei com um grito. Meu pai, na sala, quase saltitando, segurando o seu jornal nas mãos, como se tivesse acertado na loteria. Ele me abraçou, beijando o meu rosto.

"Avise a sua mãe que eu precisei sair", falou, lacônico.

Nunca soube o que meu pai fez daquele dia. E que diabos ele enfim achou naquele jornal.

Naquela noite, daquele dia incrível pelo qual todos esperávamos ansiosamente, o meu pai morreu.

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