terça-feira, 29 de outubro de 2013

REINO E RUÍNA

Ele olhava para o teto do quarto, as sombras da noite projetando desenhos que faziam a sua imaginação voar pela janela. E ela dormia ali, nua, ao seu lado, a respiração leve, os cabelos esparramados no travesseiro. 

Procurava as linhas do seu corpo e sentia vontade de abraçá-la, acariciar as suas costas, correr os dedos entre as suas curvas, caminhos, reentrâncias, mas hesitava, guardava os movimentos para si, voltava ao baile das sombras. Sozinho.

É que ela estava além do seu toque, ela não pertencia a ele, e isso o deixava num limbo que misturava um desejo quase irrefreável de roubá-la, como nas histórias de capa e espada, e o desejo de pura e simplesmente ir embora dali, daquele quarto anônimo, e desaparecer para sempre.

"Eu poderia te roubar, te levar comigo, te reinventar"

Ele sorria.


Fechava os olhos, sem saber se estava dormindo, sem saber se estava acordado e imaginava que quando os abrisse nada estaria ali. Seria sonho. Mas ela estava, adormecida, há poucos centímetros dos seus dedos, entorpecida pelo cansaço do dia e da luta corporal que eles haviam travado pouco tempo antes. 

Ele se virou, de lado, e ficou ali, observando aquela mulher linda que era um abismo de perguntas sem resposta e que ele amava quase proporcionalmente à sua vontade de que nunca a tivesse conhecido. Ele gostaria de não gostar dela. Mas conformava-se diante desta impossibilidade. Afinal, não se faz esse tipo de escolha. 

Virou-se de costas para ela, como se estivesse de birra, cerrando os olhos, forçando-se a adormecer. Mas cada minuto daquela noite que ia escorrendo entre os ponteiros do relógio era um tempo sem volta, que ele deixaria de ter na companhia daquela mulher que era o seu reino e a sua ruína. E ele a queria de novo, a queria de volta, em todos os sentidos e formas imagináveis. Sem censura.

Manteve-se firme, num esforço solitário. "Esta será a última vez que você me verá", ele dizia para si mesmo, "amanhã eu terei outro nome, serei um homem avulso, um homem sem rosto, um homem mau, e você terá perdido o que nunca teve".

Mas sentia o cheiro dela, ali, inebriando os lençóis emaranhados. O cheiro adocicado, misturado ao aroma do seu cabelo desgrenhado, do seu hálito, do sabor do seu suor, as suas sardas, a textura do pêlo, o toque na pele, o gosto de todos os cantos do seu corpo. Uma sinfonia caótica, poesia e veneno, que o fazia afundar, sem rumo, sem controle; aquela mulher imantada, senhora da sua sanidade. 

"Eu me recuso a amar você".

Abraçou-se, como se fosse náufrago, agarrando-se à ideia de que ele deveria saltar daquela nau, nadar para longe, sobreviver. Ignorar aquela luz, aquele som, como um fugitivo de si mesmo. Ela deixaria de existir, e restaria somente o corte, o pulso, a cicatriz que ele ostentaria orgulhoso, como ferida de guerra.

"Eu venci você".


E no emaranhado daqueles pensamentos obstinados, ele sentiu uma perna escorrendo pela sua cintura, e um punhado de dedos delicados avançando pelas suas costas, ombros, pescoço. Ela vinha procurá-lo, sedenta, faminta, pela sua presa. E, naquele instante, as suas bocas se uniram, com sede e umidade, enquanto seus corpos se trancavam como chave e cadeado, mergulhando juntos num vórtice de calor, paixão, tato, suspiro, entrega, saudade.

Solidão.

Afastaram-se, mais uma vez, afundando os seus pensamentos na noite que banhava aquela cama anônima. 

E, enquanto ele ainda saboreava aquela mulher, sentindo-a viva ainda na ponta da sua língua, já não se lembrava mais dos seus planos de batalha. Perdido, esquecido, afogado, inebriado, adormecido.

Seu reino, sua ruína.

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