domingo, 5 de maio de 2013

ALGUMAS HISTÓRIAS

Após alguns minutos de silêncio, ele percebeu que a fumaça que pairava sobre o seu café começava a dissipar. Foi só então que ele notou que não estava bebendo, apenas segurando o copo descartável em suas mãos.

"Seu café está frio", o monge lhe disse. 

Era uma manhã ensolarada, com cheiro de mato e barulho de pássaros; e um vento frio que despertava vontade de cobrir o pescoço. Ele sentou com o seu amigo, o monge, num banco de frente para uma pequena lagoa, onde um punhado de patos desfilavam suas alegrias inocentes. Ele gostava daqueles momentos em que passava com o seu amigo; era quando conseguia administrar a confusão dos seus pensamentos que, vez ou outra, vinham embaralhar a sua mente.

"É possível amar alguém de quem não gostamos?", ele perguntou ao seu amigo, o olhar fixo no horizonte, bebericando o café sem muito interesse.

"Claro que sim", seu amigo respondeu, com um daqueles sorrisos sapientes. "Da mesma forma que é possível gostar de alguém que não amamos". Mais algum silêncio. "As relações humanas não são tão complexas; a gente é que torna tudo tão difícil".

Ele riu, consigo mesmo, bebendo um último gole de café e se levantando rapidamente para jogar o copo descartável no lixo. O monge tinha razão; para variar ele tinha razão. 

A verdade é que ele vinha sofrendo, obcecado com pensamentos relacionados à finitude das coisas. Ou melhor, a falta de finitude, de encerramentos. Ultimamente, ele tinha a sensação de que muitas coisas ficavam no ar, pairando pendentes, órfãs de resolução e esse era um pensamento que o aterrorizava.

"O seu problema é que você se obriga a dar um final a tudo", o monge o olhou nos olhos de forma penetrante. E, sério, continuou o seu raciocínio. "Algumas histórias possuem finais felizes; outras finais trágicos", pausou brevemente. "Algumas histórias simplesmente não possuem final algum". Sorriu, as mãos entrelaçadas sobre o seu colo. 

Raios de luz cortavam as copas das árvores ao redor dos dois, construindo uma catedral de silêncios que tornava aquele o mais aconchegante de todos os lugares.

Ele ainda lembrava o dia em que ela fora embora. Aqueles pensamentos em preto e branco, cada vez mais borrados, com costuras cada vez mais folgadas, prontas para arrebentar. Ele dedilhava o violão de forma preguiçosa enquanto a acompanhava com os olhos, disfarçando; ela arrumava as últimas sacolas, fechava um punhado de caixas e, nas poucas vezes que trocavam alguma palavra era basicamente para combinar o momento ideal para ela vir buscar as suas coisas e ir embora, de forma definitiva.

E ele ia colando, por cima daquela realidade infeliz, simulações de momentos vividos nos mesmos cantos em que ela transitava. Quando eles cozinhavam juntos, rindo, bebericando algum vinho. Ou quando dançavam na sala, embriagados pela felicidade. 

Quando se abraçavam diante da televisão, vendo algum filme marcante ou quando faziam amor sobre o tapete felpudo da sala, alheios ao barulho que faziam, tomados pelo sentimento de serem as únicas pessoas do mundo. Quando tomavam banho juntos, no pequeno banheiro ou quando ele a via entrar pela porta, equilibrando sacolas e correspondências demais, gargalhando com a sua falta de coordenação. 

Os dois sujos de tinta, da cabeça aos pés, quando decidiram pintar a sala; os móveis que compraram aos poucos, naquela vida repleta de privações. Eles eram jovens, não tinham dinheiro mas, ao mesmo tempo, eram as pessoas mais felizes do mundo.

De repente, tudo aquilo tinha sumido; apagado, como arquivo de computador. Todas aquelas lembranças substituídas pela imagem dela, caminhando apressada pelo apartamento; os olhos baixos, a cara amarrada, impaciente, ansiando por ir embora dali. Ele observava o decote na blusa e o cumprimento da saia, as pernas dela, tão bonitas, escondidas ali. Aquela pele que não o pertencia mais. 

Não é que ele ainda gostasse dela; os dois, há muito tempo, não se gostavam mais. Era apenas a ideia de vê-la embora, do seu apartamento, da sua vida; do seu país, em verdade. Há muito tempo os dois não falavam a mesma língua e, quando se deram conta que toda aquela vida havia ruído, era tarde demais. Aquele momento perdido, terrível, onde os amantes se descobrem inimigos.

Bam! A porta fechou com um barulho alto. E ele voltou para a realidade.

"O fim de um casamento", ele se virou para o amigo, "o fim de qualquer relacionamento é um pouco como a morte, acho". O monge o observava, parecendo concordar com um leve aceno de cabeça. 

"Porque fica o resíduo", ele continuou. "Fica um espólio melancólico que não pertence a ninguém, uma herança que ninguém quer".

O monge continuou em silêncio.

"O que a gente faz com aquele monte de fotografias?", ele prosseguiu. "Os discos, livros, tudo que se compra juntos?". "Com que amigos cada um permanece?". Ele pausou por um instante. "Mais, hoje em dia, o que fazer com todas as implicações sociais, reais e virtuais?"

Suspirou.

"A vida tem ficado cada vez mais difícil", continuou olhando para o horizonte. "Quanto mais a gente inventa, quanto mais longe a gente vai, mais difícil é reinventá-la quando isso é algo praticamente obrigatório".

O seu amigo interrompeu os seus pensamentos. "Onde você quer chegar com isso? Honestamente?".

Ele se virou para o monge, um sorriso sincero e desarmado no rosto. "Não tenho a menor ideia"

Os dois riram, juntos. "Talvez algumas perguntas realmente não tenham resposta", ele disse.

Ao que o monge rebateu. "Talvez algumas perguntas nem devessem ser feitas". 

A verdade é que ele estava cansado daquilo. Daquela... angústia burguesa. Algumas histórias tem finais felizes; outras finais tristes. Algumas simplesmente não tem final algum

Era isso. 

* * *

Abraçou o seu amigo por alguns instantes. O barulho das folhas envolvendo o parque numa sinfonia nostálgica. O sol aquecia o seu rosto e ele gostava de estar ali, cercado por toda aquela vida perfeita e caótica, com cheiro de mato e barulho de patos. 

De olhos fechados ficava mais fácil se fazer acreditar que as coisas não eram tão complicadas quanto pareciam ser. Ficava mais fácil se sentir feliz. Mesmo que isso não fosse verdade.

"Obrigado, meu bom amigo", disse ao monge. "Obrigado"

E, enquanto uma lágrima solitária despencava, irrefreável, pelo seu rosto, imaginou o rosto do monge, aquele sorriso sabichão de quem tinha todas as respostas. Ele estaria sorrindo, ele pensou. Ele estaria sorrindo. Como sempre fazia.

Achou por bem fechar os olhos novamente. De olhos fechados ficava mais fácil esquecer do barulho, dos vidros estilhaçados, dos pneus cantando no asfalto, do gosto do sangue em sua boca. De olhos fechados ficava mais fácil acreditar que o seu melhor amigo estaria para sempre ali. 

Acendeu um cigarro, saboreando por um instante fugaz a névoa acinzentada que tomava o seu rosto, garganta e pulmões. E seguiu seu caminho.

"Algumas histórias simplesmente não tem final algum".

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