sábado, 25 de maio de 2013

CHUVA SOBRE O VALE

"Onde está o meu filho, meu bom senhor?", a mulher perguntava, quase aleatoriamente  aos transeuntes daquele vale desolado. Caminhava, lentamente, os pés descalços quase em carne viva, sobre a lama molhada, imunda, vermelha, onde muitas vezes tinha que lutar para desenterrar as canelas.  Atrás dela, conseguia ouvir um punhado de homens com seus tambores.

Rat, tat, rat, tat, rat. Rat, tat, rat, tat, rat.

Homens caminhavam em todas as direções, com suas roupas em farrapos, ensopadas de terra, água de chuva e sangue. Olhos vazios, tapados de forma artesanal com ataduras, braços cortados em todas as alturas.

Alguns vinham sem mãos, outros rastejando; centenas, milhares, espalhados sem vida em cada canto que ela olhava. Aquele cenário cinza, terrível, onde vivos e mortos disputavam o espaço com cães, cavalos, bois, ladrões, mulheres em prantos, carroças em pedaços, flâmulas de todas as cores e desenhos amarradas em estacas. 

"Onde está o meu filho, meu bom senhor?", ela segurava um pelo ombro, sem resposta. Aqueles milhares de meninos, alguns tão mais novos que o seu filho, pavimentando o chão daquela batalha recente. O cheiro de carne apodrecendo azedava em seu nariz mas ela seguia em frente, a barra do vestido puído se arrastando no solo imundo.

Ela lembrava do dia em que ele havia partido para defender uma causa da qual ela mesmo não sabia ao certo a essência. O menino vestia um gibão velho, calças de fazendeiro e botas furadas. E uma lança de madeira lascada. E ele sorria, contaminado pelo desejo pueril pela batalha.

E acenava, feliz, ao longe, até se perder no horizonte daquela marcha enorme que rasgava o vilarejo como uma serpente.

"Onde está o meu filho, meu bom senhor?", ela tentou um homem que serrava a perna de um outro já desacordado. Sem resposta. Continuou caminhando, por entre uma dezena de cavalos com as barrigas abertas, muitos soterrando os seus senhores. Aqueles rostos sem nome, aquele resto do que um dia foi a marcha orgulhosa.

A chuva molhava os seus cabelos ralos, que escorriam pelo rosto como um véu amarelado. A camisa remendada, repleta de furos, colando no corpo magricela que há semanas era sustentado por biscoitos de aveia e pão velho. Ela não se lembrava, havia muito tempo, de outro gosto que não aquele. Eram tempos difíceis.

E ela caminhava pelo campo desolado, como um fantasma.

Gritos ecoavam pelos lados, alguns próximos, outros tão distantes. Não muito longe, um homem entoava tristemente uma canção numa flauta, ao redor de uma pequena fogueira. Outros abraçavam-se para caminhar juntos, outros tantos despencavam no chão como torres emplodidas.

Aquele cenário absurdo que ela não conseguia ao certo fazer juízo a respeito. Homens de bom nascimento, com roupas coloridas intactas, vinham à cavalo na direção contrária a ela, com suas espadas brilhantes e estandartes orgulhosos. Agarrou-se ao estribo de um cavaleiro de meia idade, a barba vermelha cobrindo o seu rosto como um urso.

"Onde está o meu filho, meu bom senhor?", ela perguntou. Ao que o homem simplesmente ignorou, retomando a marcha. Os cavalos enormes passavam por ela e, por um momento, ela imaginou como seria bom ser pisoteada por aqueles animais gigantescos, até o seu corpo desaparecer sob a lama, a chuva e o sangue. 

Ela poderia enfim descansar os seus ossos. "Ah, como seria bom".

Seguiu os seus passos tortos e exaustos até que encontrou um corpo afogado numa poça vermelha. Um rapaz, regiamente vestido, com uma armadura de peito tão polida que ela podia ver o seu rosto. Uma calça grossa de algodão, com listras amarelas e vermelhas, e uma capa onde um leão orgulhoso mostrava as garras num campo de estrelas. Um príncipe, sem dúvidas, com a cabeça afundada em sangue mercenário.

Trovões tamborilavam no céu e raios rasgavam o ar ao seu redor. 

Ela correu ao encontro do rapaz, retirando-o da sujeira e limpando-o com um lenço puído. O rosto, sem vida, era jovem, imberbe, com lindos cabelos negros, lisos feito seda, cascateando sobre uma máscara branca feito leite, imóvel, marcada por penetrantes olhos azuis. 

"Que rapaz lindo", ela disse, ajoelhada, com a sua cabeça sobre o seu colo. 

E ficou ali, sentada na lama, embalando o corpo do jovem príncipe, ninando-o com canções antigas.

"Eu encontrei o meu filho, meu bom senhor", ela dizia aos homens que passavam, sorrindo. 

"Eu encontrei o meu filho"

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